====13.1. A resposta do Direito brasileiro às ações de organizações criminosas==== No Brasil, onde a ousadia crescente das organizações criminosas tem sido bastante sentida, como explicitado, produziram-se, nessa ordem, a primeira lei do crime organizado (Lei nº 9.034/95, hoje revogada), de interceptações telefônicas (Lei nº 9.296/96), de lavagem de dinheiro (Lei nº 9.613/98), de proteção às testemunhas (Lei nº 9.807/99), introdutora do regime disciplinar diferenciado (Lei nº nº 10.792/2003), do “Juiz sem Rosto” (nº 12.694/2012), e, finalmente, a nova Lei de Crime Organizado (Lei nº 12.850/2013). Tal a situação em que se acha, atualmente, o conjunto das normas legais que servem de fundamento à repressão às ações perpetradas por organizações criminosas, vê-se que se pretendeu, com as leis mais recentes, superar a grande confusão e vácuo legislativo até bem pouco tempo existente sobre o tema. É que, não mencionando a Lei 9034/95, que disciplinava os meios operacionais admitidos à repressão às organizações criminosas em que consistiriam tais organizações, restaria admitir, como absurdamente parecia propor seu art. 1º, que poderiam ser empregados na investigação e processo de crimes, quaisquer que fossem eles, praticados por bandos ou quadrilhas. Nessas circunstâncias, importante avanço representou o advento das Leis nº 12.692 e nº 12.850, a primeira de 2012 e a segunda de 2013, que, desviando-se do modelo obsoleto inicialmente proposto, conceituaram organizações criminosas, ao mesmo tempo em que, modernizando a disciplina de institutos, tornaram viável seu emprego. De fato, agora em observância, embora não integral, à Convenção de Palermo, prevê a Lei nº 12.850 sejam suas disposições aplicáveis às associações estruturadas de quatro ou mais pessoas, caracterizada pela divisão de tarefas, que tenham por objetivo obter qualquer vantagem através da prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a quatro anos ou que tenham caráter transnacional. Melhor adaptada a legislação vigente, agora, à realidade e às práticas internacionais, permite ela o empregos dos institutos da colaboração premiada, da captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos, a ação controlada, o acesso a registros de ligações telefônicas e telemáticas, a dados cadastrais constantes de bancos de dados públicos ou privados e a informações eleitorais ou comerciais, a interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas, o afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal, a infiltração policial e a cooperação entre instituições. Não se constituindo em inovações, especialmente se considerado o plano internacional, representaram as normas postas em vigor, contudo, importante evolução no tratamento dado pelo Direito brasileiro à repressão a crimes da espécie. Com efeito, no que respeita, por exemplo, à colaboração premiada, tímida e pobremente antes prevista pela Lei nº 9.034/95, a transformação foi profunda, pois viu-se ampliado o seu escopo, a par do que chega-se a permitir, ao colaborador, não apenas a substancial redução da sua pena, mas mesmo a sua substituição, se privativa de liberdade, por restritiva de direitos, e até o perdão judicial. Além disso, como importantes e até mesmo imprescindíveis estímulos à colaboração, antes inexistentes, estabeleceram-se a necessidade de homologação judicial do acordo de colaboração, a possibilidade de não ser sequer ofertada denúncia e, ainda, de não serem as provas autoincriminatórias utilizadas em prejuízo do colaborador, em caso de retratação do quanto acordado. Foi assim que, se a colaboração premiada, tal qual definida no passado, sob o nome de “colaboração espontânea”, consistia em verdadeira garantia de condenação de quem se inclinasse a cooperar com o Estado, embora com redução da pena, hoje, ao contrário, transformou-se em poderoso estímulo à infringência, pelo integrante de organização criminosa, da //omertà//. Observe-se, porém, que limites foram postos expressamente pela legislação à colaboração premiada, consoante exigem a gravidade e importância de sua utilização. Daí que, para sua concessão, devem ser consideradas a personalidade do colaborador, a natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato e a eficácia da colaboração. Igualmente importante se revela ainda, como estímulo à colaboração a garantia, prevista no parágrafo 15 do art. 4º, de ser o colaborador em todos os atos da negociação, confirmação e execução da colaboração, assistido por seu Defensor. Noutro giro, pondo em destaque importante aspecto, que de outro modo poderia produzir graves controvérsias, que ao fim e ao cabo poderiam resultar em desprestígio para tão eficaz meio de investigação, estabeleceu expressamente o parágrafo 16 do art. 4º a insuficiência das declarações isoladas do colaborador para a prolatação de sentença condenatória. Igualmente importante, seja para permitir o eficiente desenvolvimento das investigações, seja para dar ao colaborador a necessária tranquilidade de que depende sua disposição em cooperar, foi a previsão, contida e disciplinada no art. 7º, de revestir-se de sigilo, até o recebimento da denúncia, o acordo de colaboração premiada. Também já permitida na lei revogada, referiu-se a nova lei, sem porém regulamentá-la, à possibilidade de utilização de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos. Tal instrumento, valioso na investigação das ações perpetradas por organizações criminosas, merece, como os demais, algumas considerações. Inegável o valor de imagens e sons (estes, especialmente, quando determinada, por confissão ou perícia, a identidade de interlocutores) na formação do convencimento, é ele muito frequentemente elemento decisivo para a afirmação de fatos negados (encontros, condutas praticadas, relações com pessoas, permanência em locais, etc.). Sua captura, todavia, exige equipamento adequado (nem sempre disponível) e capacitação do operador, que deve, a um só tempo, cuidar de executar a atividade de coleta e ocultá-la dos que sejam seus //alvos//. Além disso, a escolha do equipamento deve merecer especial atenção. Outro ponto que merece destaque é que tais ações, realizadas de forma sempre sigilosa (afinal, o alvo não pode, em nenhuma hipótese, descobrir-se investigado), dependiam, na legislação anterior, de circunstanciada autorização judicial. E, conquanto não nos pareça exigível tal autorização em todos os casos, parece no mínimo de boa cautela sua prévia obtenção, especialmente ante a possibilidade de inutilidade de complexa investigação em consequência de eventual aplicação da teoria da nulidade da prova por derivação. Outro mecanismo já presente na lei revogada e mantido na Lei nº 12.850 é a ação controlada, denominada na Convenção de Palermo //entrega vigiada//. É o que vinha sendo entre nós denominado //flagrante retardado//, que consiste em permitir que pessoas, coisas ou valores que devam ser arrestados ingressem, permaneçam, atravessem ou saiam de locais (ainda que seu arresto já tenha sido determinado), sempre com a finalidade de fazê-lo em momento que se revele mais conveniente (seja para identificar mais ou mais importantes componentes de organizações criminosas, produzir melhores provas ou causar, às organizações criminosas, danos mais significativos). É técnica bastante difundida e consolidada fora do país, já tendo sido, inclusive, objeto de referência feita pela Convenção de Viena contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes de 1988, atendendo às sugestões de Estados que com êxito já o vinham empregando. No que respeita aos crimes de tráfico de entorpecentes, por sua vez, foi a medida objeto de regramento, através da Lei nº 11.343/2006. Merece registro, por outro lado, a circunstância de que, embora inspirado para utilização em crimes transnacionais, nada impede, em face dos termos da Lei, a utilização do instrumento nos casos de tráfico circunscrito ao território nacional. Inserida na Lei nº 9.613/98, através da Lei nº 12.683/2012, a possibilidade de acesso, pela “autoridade policial e Ministério Público, exclusivamente, aos dados cadastrais do investigado que informam qualificação pessoal, filiação e endereço, independentemente de autorização judicial, mantidos pela Justiça Eleitoral, pelas empresas telefônicas, pelas instituições financeiras, pelos provedores de internet e pelas administradoras de cartão de crédito”, foi ela reproduzida na vigente lei de crime organizado, nos termos do inciso IV do art. 3º, que autoriza, além do “acesso a registros de ligações telefônicas e telemáticas”, também “a dados cadastrais constantes de bancos de dados públicos ou privados e a informações eleitorais ou comerciais”. Não se trata, pois, de instrumento novo, mas de nova redação dada em nova lei, pelo que não se vê substancial alteração no seu alcance. De fato, o acesso a tais dados cadastrais, por não importarem, na visão do legislador, em levantamento da garantia constitucional do sigilo das comunicações nem tampouco da intimidade, já podia ser alcançado, sem ordem judicial, nos termos da lei de lavagem de dinheiro. A opção do legislador, portanto, de manter a inexigibilidade de ordem judicial prévia para o acesso a tais dados foi, a nosso sentir, providência que encontrou o justo equilíbrio entre a necessidade de maios rápida e eficaz repressão a infrações de reconhecida gravidade, a de proteção ao que se pode adequadamente denominar “direito à intimidade” (observe-se que o acesso é aos dados, apenas, não ao conteúdo das comunicações), bem como à circunstância de não se dever alimentar o anseio de “judicializar tudo”, especialmente num país em que é notória a morosidade da prestação jurisdicional. Relaciona em seguida a Lei 12.850/13, entre os meios de obtenção de prova, a interceptação telefônica. Regulada em lei específica, é a interceptação telefônica um dos instrumentos de grande valia na apuração de infrações de imputáveis a organizações criminosas. Prova eloquente disso é seu largo emprego (que é estimulado, porém, também por um mito: o da sua eficiência ou satisfatividade) em investigações de variada espécie. De fato, multiplicando-se o seu emprego desde o advento da Lei nº 9.296/96, deu-se, igualmente, ampla difusão de que tal técnica vinha sendo utilizada. Isso se traduziu, evidentemente, na adoção de cautelas redobradas por parte de delinquentes, que, de modo geral, passaram a empregar (quando possível) outros meios de conversação e, mesmo ao telefone, a utilizar expressões de sentido somente compreensível para os interlocutores. Em consequência, a eficiência da interceptação de conversações telefônicas (que não se confunde, é claro, com a gravação de seus diálogos por um dos interlocutores) reduziu-se, exigindo a cada dia mais tenha o agente dela encarregado os mesmos e prévios conhecimentos dos fatos suspeitados e de seus autores que os possuídos por quem a requer e quem a determina. Não se pode olvidar, por outro lado, que a interceptação telefônica, por isso só, muito raramente produz prova bastante para a demonstração de ilícitos, especialmente os mais complexos, como os praticados por organizações criminosas. Bem por isso, a realização de interceptações telefônicas exige a correspondente realização de diligências destinadas a confirmar a identidade de pessoas, os lugares e os fatos que sejam objeto de conversação. Assim, a observação, a vigilância, a pé ou motorizada, o emprego de fotografia e filmagem são instrumentos comumente utilizados em complemento às interceptações. Forçoso concluir, portanto, que há, no curso das interceptações, inúmeros momentos em que o sigilo das investigações é posto em risco, com todas as graves consequências disso decorrentes. Por isso que, no emprego das interceptações telefônicas, algumas cautelas são rigorosamente indispensáveis. Nesse tema, como de resto em todos os instrumentos antes mencionados, vale a conhecida regra de proteção do conhecimento segundo a qual //sabe quem precisa saber//. Em outras palavras, ninguém, senão o //público// absolutamente indispensável, deve ter conhecimento da medida. Em decorrência disso, algumas cautelas, recomendadas pela experiência, devem ser adotadas. Consiste uma delas em submeter o requerimento de interceptação a despacho pessoal e reservado com o juiz competente, a quem se deve, igualmente, requerer permaneça o expediente sob segredo e sua guarda até o término da diligência. Pela mesma razão, deve-se requerer que a ordem judicial dirigida à concessionária seja exarada tão laconicamente quanto possível, isto é, dela constando, simplesmente, o número do telefone ou telefones que devam ser objeto de interceptação, com os respectivos códigos de áreas e o órgão responsável pela execução das operações técnicas (dela não deve constar, por exemplo, o nome do assinante). Além disso, para evitar desnecessária exposição de conhecimento sensível, deve ser exarada uma ordem para cada concessionária, nunca uma só para todas. Por fim, tratando-se de investigação que objetive apuração de atividades de organização criminosa, deve-se ser especialmente criterioso na observância do que dispõe o art. 8º, parágrafo único, da Lei nº 9.296/96, retardando-se ao máximo permitido a apensação do procedimento aos autos. Ainda que sejam adotadas tais cautelas, destinadas a preservar a eficiência e utilidade das interceptações, não é incomum a discussão, por parte dos acusados, acerca de sua legalidade. Algumas vezes, de fato, insurgem-se os acusados contra a circunstância de terem sido as operações técnicas conduzidas pela Policia Militar e não pela Civil, exigindo outros a realização de perícia de voz, sempre dispendiosa e demorada. A primeira das questões, porém, já se acha superada, conforme se pode ver no recentíssimo acórdão unânime proferido pelo TJMG nos autos da apelação criminal 1.0525.06.086290-7/001, em que destacou que não é ilícita a interceptação requerida e realizada pela Policia Militar se decorrente de decisão devidamente fundamentada, ciente o Ministério Público para seu acompanhamento. A segunda, por sua vez, encontra sua solução no princípio do livre convencimento motivado, não sendo defeso ao juiz, obviamente, emprestar à prova o valor que possa ter no cotejo com os demais meios de prova. Admitido não somente na repressão às organizações criminosas, mas ao crime de um modo geral, figura o acesso a dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais como medida das mais comumente empregadas. Necessário é, porém, para seu uso na investigação e instrução criminal, observar que não se vem admitindo a sua apropriação direta pelo Ministério Público, tratando-se de sigilo fiscal e bancário. Deve-se, com efeito, obter, para o acesso, a imprescindível autorização judicial. Por outro lado, deve-se salientar que o acesso a tais dados é de extrema utilidade, nas investigações que se voltam para organizações criminosas, o que se explica por dois distintos motivos. De fato, muito frequente é que seja a movimentação bancária e fiscal o único vestígio deixado por práticas criminosas. Mas há um outro aspecto em que se revela de fundamental importância o acesso aos dados bancários e fiscais: é no interesse da investigação financeira destinada a privá-la do que lhe dá vitalidade, isto é, seus recursos financeiros. Registre-se, finalmente, no tocante ao assunto, que a experiência recomenda que, cercada de completo sigilo, deva tal vertente investigatória preceder, o quanto seja possível, a decretação ou execução de qualquer medida constritiva pessoal. Outro interessante meio, introduzido na Lei 9.034/95 pela Lei 10.217/01, e mantido no ordenamento jurídico pela Lei 12.850/13, é a infiltração de agentes Esbarra o emprego da infiltração de agentes contra obstáculos de variada espécie. Dentre eles, deve ser mencionado o elevado risco, por vezes inaceitável, a que se expõe o agente infiltrado, potencializado, no caso brasileiro, pela ausência de treinamento específico e pela falta da cultura, especialmente no Poder Judiciário e Ministério Público, da //compartimentação sigilosa//. Além disso, não estabelecendo a Lei 9.034/95 parâmetros quaisquer a serem observados por ocasião da infiltração, restava ainda incerteza completa acerca das consequências suportadas, pelo agente infiltrado, pelos atos praticados durante ela. Tais dificuldades, que vinham fazendo com que, ainda nos dias de hoje, optassem os órgãos encarregados da investigação pela cooptação de informantes, recrutados muitas vezes entre testemunhas do fato criminoso ou, talvez mais frequentemente, entre seus autores, possa porém mudar. É que, a partir do advento da Lei nº 12.850/2013, passou a existir diferentemente o que sucedia com a Lei nº 9.034/95, um conjunto de parâmetros a que se subordina o emprego, sempre dependente de ordem judicial, da infiltração de agentes, agora subordinada, ainda, ao estabelecimento de um prazo máximo, à impossibilidade de produção de prova por outro meio, a elaboração de relatório periódico circunstanciado e à demonstração das tarefas de que encarregado o agente infiltrado. Ademais, mantido o imprescindível sigilo da infiltração (cuja violação passou a ser definida como crime), definiram-se os direitos do agente infiltrado, bem como a exigência de proporcionalidade em sua atuação e a não punibilidade de condutas típicas alcançada pela inexigibilidade de conduta diversa. Tal conjunto de regras, postas em vigor desde há quase três anos, se não tornaram, ainda, o emprego da infiltração um fato comum, tendem todavia torná-la frequente, em futuro próximo. Além dos instrumentos mencionados, previstos na Lei nº 12.850/2013, inseriu ainda a Lei 12.694/2012 disposição, inspirada em experiência internacional, por meio da qual se pretendeu despersonalizar a prestação jurisdicional em certos casos, reduzindo-se assim o risco pessoal a que sujeito o magistrado. De fato, inspirada na experiência colombiana, em que numeroso magistrados foram eliminados em virtude de terem descontentado, com suas decisões, violentas organizações criminosas, permitiu a lei brasileira, nas hipóteses mencionadas nos incisos do seu art. 1º, a instauração, pelo Juiz, de órgão colegiado. Assim, instaurado tal órgão, com competência limitada ao ato para o qual tenha sido convocado, suas decisões, sempre fundamentadas e firmadas, serão publicadas sem referência a eventual voto divergente. Além dos instrumentos examinados, especial importância na repressão a organizações criminosas tem a aplicação das disposições da Lei nº 9.613/98, que passou a incriminar prática ordinariamente cometida por organizações criminosas e que constitui, em realidade, condição imprescindível à sua subsistência. Com efeito, perseguindo organizações criminosas proveito econômico, e sendo tradicionalmente prevista pelo ordenamento jurídico, como já mencionado, a perda dos proventos havidos com a infração, ocultá-los se transformou, em dado instante, numa prática corriqueira entre elas. Foi tal a percepção que culminou, em 1988, com a elaboração, em 20 de dezembro de 1988, da Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, de Viena (aprovada, no Brasil, pelo Decreto Legislativo nº 162, de 14/07/91). Embora voltada para o tráfico de entorpecentes, como o indica seu título, a Convenção, já em seu preâmbulo, acusava a compreensão de que tráfico e organizações criminosas são questões entrelaças, afirmando necessário enfrentá-las com a supressão das vantagens econômicas delas decorrentes. Por isso ter a Convenção sugerido (art. 7º) aos que a subscreveram até mesmo que considerassem >>[...] a possibilidade de inverter o ônus da prova com respeito à origem lícita do suposto produto ou outros bens sujeitos a confiscos, na medida em que isso seja compatível com os princípios de direito interno e com a natureza de seus procedimentos jurídicos e de outros procedimentos. Como se vê, pois, traduz a Lei nº 9.613/98, internamente, a adesão do Brasil à ideia de que a repressão às atividades criminosas organizadas deve buscar também a supressão das vantagens econômicas delas decorrentes. E, conquanto não tenha chegado ao ponto, reclamado por muitos, de inverter o ônus da prova no tocante à origem do patrimônio, submeteu-se o crime de lavagem de dinheiro a uma disciplina cujo rigor é compatível com sua gravidade. Com efeito, como o proveito financeiro é o que move organizações criminosas no sentido da prática dos graves crimes que o precedem, ali se previu causa especial de aumento de pena (art. 1º, § 4º, da Lei nº 9.613/98) em tais casos, prevendo-se, ainda, expressamente, nessas infrações, a inaplicabilidade do disposto no art. 366 do CPP. Desse modo, a ocorrência da revelia não é, em crimes da espécie, obstáculo à marcha do processo (art. 2º, § 2º), que independe, por outro lado, até mesmo da propositura da ação penal pelo crime antecedente. Permite-se, de fato, que a denúncia seja ofertada com indícios suficientes da existência do crime antecedente, ainda que desconhecido seu autor (art. 2º, § 1º). Outras importantes inovações introduzidas, por outro lado, foram a ampliação do prazo para a propositura da ação penal (quando se decretar, cautelarmente, no curso do inquérito, a apreensão ou o sequestro) para 120 dias e a exigência de comparecimento pessoal (art. 4º, § 3º) para conhecimento de pedido de restituição. Ali também se previu, sob inspiração de ordenamentos jurídicos estrangeiros que o haviam empregado com êxito, colaboração processual de maior extensão, pois passou-se a admitir até mesmo a concessão do perdão judicial ao que auxilie a apuração de infrações, a identificação de autores ou a localização de bens, direitos ou valores que sejam seu objeto. Ainda no campo da colaboração processual, deve ser objeto de registro o advento, em 1999, da Lei nº 9.807/99, que veio a introduzir meios de proteção à testemunha e aos réus colaboradores. No que se refere às vítimas e testemunhas, pode o pedido de sua inclusão no programa ser encaminhado (art. 5º) pelo interessado, pela autoridade policial, por órgãos públicos ou entidades com atribuições na defesa dos direitos humanos ou pelo Ministério Público. Ao Ministério Público é que toca, por outro lado, a atribuição de manifestar-se sobre a inclusão ou exclusão no programa, que deve levar >> [...] em conta a gravidade da coação ou da ameaça à integridade física ou psicológica, a dificuldade de preveni-las ou reprimi-las pelos meios convencionais e a sua importância para a produção da prova (art. 2º). Como depende o ingresso no programa de anuência do interessado, é imperativo seja previamente cientificado das providências que isolada ou cumulativamente podem ser adotas (art. 7º), do prazo máximo de sua duração (art. 11) e da possibilidade de exclusão por conduta incompatível (art. 10). No que concerne ao réu colaborador, por sua vez, permite a Lei até mesmo a concessão de perdão judicial (art. 13) em casos em que a colaboração permita a identificação de outros concorrentes do delito, a localização de vítima com integridade preservada ou a recuperação total ou parcial do produto do crime. Ademais, ainda que impossível, no caso concreto, em atenção ao disposto no art. 13, parágrafo único, a concessão do perdão judicial, prevê-se diminuição da pena (art. 14), em caso de condenação, bem como as medidas protetivas a que se refere o art. 15. Por fim, entre as normas legais que de algum modo favorecem o enfrentamento às organizações criminosas, figura a Lei nº 10.792/2003, que pôs termo a enorme controvérsia então existente acerca da possibilidade ou não de aplicação, por meio de resolução, do Regime Disciplinar Diferenciado. Por isso que, desde o seu advento, sujeitam-se às restrições previstas nos incisos I, II, III e IV do art. 52 da Lei nº 7.210/84, entre outros, aqueles sobre os quais //recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando//. Representou a inserção do preso no Regime Disciplinar Diferenciado entre as sanções disciplinares admitidas no direito brasileiro um importante avanço, que se encontra historicamente vinculado ao incremento das ações de organizações criminosas nascidas e abrigadas no interior de presídios brasileiros. De fato, embora em alguns casos fossem bastante conhecidas suas lideranças, muito pouco se podia fazer contra organizações criminosas instaladas em estabelecimentos prisionais, tendo em vista que consideravelmente facilitadas se achavam suas comunicações com o mundo exterior. Esse, aliás, foi o maior ganho produzido pela adoção do RDD no direito brasileiro: tornar possível inibir a comunicação de líderes presos de organizações criminosas com seus componentes livres, inibindo-se assim o pleno funcionamento de suas cadeias de comando. É, em consequência, instrumento que pode, em casos específicos, produzir excelentes resultados. Finalmente, registre-se que ao fenômeno do avanço das ações de organizações criminosas deve dedicar-se grande atenção. Suas ações impulsionam numerosas outras práticas criminosas, comprometendo, assim, a eficiência e, por consequência, a própria credibilidade do Ministério Público e do Poder Judiciário, em especial, e do Estado, de um modo geral. Em decorrência disso, é provável que, em breve tempo, a matéria venha a ser objeto de novo regramento, convertendo-se em lei algum dos projetos que no Congresso Nacional presentemente têm curso. \\