====2.3.2. A intervenção policial em questões possessórias==== As movimentações de trabalhadores rurais com a nítida intenção de pressionar o estado a concretizar a tão sonhada reforma agrária não se consubstanciam em ilícitos penais, podendo converter-se em ilícitos civis, a serem eventualmente judicializados. O desforço imediato, ou legítima defesa da posse, previsto no art. 1.210, § 1º, do Código Civil, pressupõe o uso da própria força, ou seja, sem apelar para a autoridade. Lado outro, os delitos atribuídos aos sem terra são, em regra, de menor potencial ofensivo, não se admitindo, portanto, a prisão em flagrante. Por isso, conclui-se: >>a) os conflitos possessórios, em regra, não apresentam aspectos penais, razão pela qual, em princípio, não demandam a intervenção policial, já que se situam no âmbito do direito constitucional de exercício de legítima pressão para a implantação de políticas públicas e concretização de princípios norteadores do Pacto Social de 1988; >>b) a intervenção policial, nesses casos, somente poderá ocorrer havendo ordem judicial, ainda na hipótese do desforço imediato previsto no art. 1.210, § 1°, do Código Civil. Sobre o tema, indica-se a leitura do artigo jurídico “A Intervenção Policial em Questões Possessórias”, da lavra de Afonso Henrique de Miranda Teixeira, aprovado como tese no XVI Congresso Nacional do Ministério Público, publicada às fls. 499/507 dos //Anais – XVI Congresso Nacional do Ministério Público – Ministério Público e Justiça Social//. Pressupondo, portanto, a existência de ordem judicial, ainda assim a ação do Oficial de Justiça e eventual auxílio da força policial devem ser revestidos de cautelas e procedimentos especiais. A esse respeito, em informações prestadas no Agravo de Instrumento nº 1.0024.07.593.983-5/001, 18ª Câmara Cível do TJMG, o Juízo Agrário da Comarca de Belo Horizonte pontuou: >>No campo da //experiência//, de cuja //vivência// poucos têm podido, com autoridade, doutrinar ou especular, pois seu conteúdo é de data nova, sabemos que o cumprimento de decisões drásticas como a de desocupação liminar de grupos sociais organizados não é tarefa que se exaura no tempo de secar a tinta do comando inscrito. É lida para mais de mês ou meses, conforme a recalcitrância do movimento. É tarefa delicada a que a força policial se garante de pormenorizado planejamento e cuidadosa execução. Está em risco a incolumidade física e a dignidade humana de uma coletividade – mesmo que uma coletividade de ‘invasores’. Nisso não há revelado nenhum particular prestígio à conduta de qualquer das partes isoladamente, mas objetiva fazer cessar a violência ínsita ao conflito, no exercício das próprias razões. Para o cumprimento de decisões judiciais, convém serem observadas as Diretrizes Nacionais para Execução de Mandados Judiciais de Manutenção e Reintegração de Posse Coletiva, formuladas em decorrência de reuniões realizadas no Departamento de Ouvidoria Agrária e Mediação de Conflitos, nos dias 22 de fevereiro e 11 de abril de 2008, que contaram com a participação de diversos representantes dos Estados Federados e que atuam na resolução de conflitos, nos seguintes termos: • Da Autoridade Competente para Execução das Medidas Havendo necessidade do uso da força pública para o cumprimento das ordens judiciais decorrentes de conflitos coletivos sobre a posse de terras rurais, os atos deverão ser executados com apoio da Polícia Militar e/ou Polícia Federal, observada a respectiva esfera de competência, em virtude da sua função institucional e do treinamento específico. • Das Providências Iniciais Ao receber a ordem de desocupação, o representante da unidade policial articulará com os demais órgãos da União, Estado e Município (Ministério Público, Incra, Ouvidoria Agrária Regional do Incra, Ouvidoria Agrária Estadual, Ouvidoria do Sistema de Segurança Pública, Comissões de Direitos Humanos, Prefeitura Municipal, Câmara Municipal, Ordem dos Advogados do Brasil, Delegacia de Polícia Agrária, Defensoria Pública, Conselho Tutelar e demais entidades envolvidas com a questão agrária/fundiária), para que se façam presentes durante as negociações e eventual operação de desocupação. • Dos Limites da Ordem Judicial O cumprimento da ordem judicial ficará limitado objetiva e subjetivamente ao que constar do respectivo mandado, não cabendo à força pública, responsável pela execução da ordem, ações como a destruição ou remoção de eventuais benfeitorias erigidas no local da desocupação. A força pública limitar-se-á a dar segurança às autoridades e demais envolvidos na operação. Se o Oficial de Justiça pretender realizar ação que não esteja expressamente prevista no mandado, o comandante suspenderá a operação, reportando-se imediatamente ao juízo competente. Trata-se de ato administrativo vinculado. O comandante da operação tem direito de ter acesso ao mandado judicial que determinou a manutenção, reintegração ou busca e apreensão para conhecer os limites da ordem judicial. • Da Documentação dos Atos de Desocupação As operações deverão ser documentadas por filmagens, o que deve ser permitido pela polícia aos representantes de qualquer das entidades presentes ao ato. • Do Planejamento e da Inspeção A corporação responsável pelo cumprimento dos mandados judiciais de manutenção, reintegração e busca e apreensão promoverá o planejamento prévio à execução da medida, inspecionando o local e colhendo subsídios sobre a quantidade de pessoas que serão atingidas por ela, como crianças, adolescentes, mulheres grávidas, idosos e enfermos. Considera-se iniciada a execução da ordem judicial a partir do momento em que forem levantados os dados para o planejamento. As informações serão repassadas aos demais órgãos envolvidos com o cumprimento da medida, reportando-se ao Magistrado responsável pela expedição da ordem sempre que surgirem fatores adversos. O responsável pelo fornecimento de apoio policial, com o intuito de melhor cumprir a ordem judicial, adotará as seguintes providências, com a participação dos demais envolvidos na solução do conflito:\\ I - contactar os representantes dos ocupantes, para fins de esclarecimentos e prevenção de conflito;\\ II - comunicar à Ouvidoria Agrária Regional do Incra para tentar viabilizar área provisória para a qual os acampados possam ser removidos e prédios para eventual guarda de bens, bem como os meios necessários para a desocupação;\\ III - comunicar ao Juiz eventual presença, no local, de pessoas estranhas às identificadas no mandado, requerendo-lhe orientações sobre os limites da ordem. • Da Efetivação da Medida As ordens judiciais serão cumpridas nos dias úteis, das 6 às 18 horas, podendo esse horário ser ultrapassado para a conclusão da operação. A autoridade policial responsável comunicará o cumprimento da medida judicial aos trabalhadores, ao requerente e aos demais envolvidos com antecedência mínima de 48 horas. A comunicação deverá conter:\\ I - a comarca, o juízo e a identificação do processo em que foi determinada a medida;\\ II - o número de famílias instaladas na área a ser desocupada;\\ III - a data e a hora em que deverá ser realizada a desocupação;\\ IV - a identificação das unidades policiais que atuarão no auxílio ao cumprimento da ordem judicial. • Do Uso de Mão-de-Obra Privada para a Remoção A polícia não permitirá, nem mesmo com utilização de mão-de-obra privada, desfazimento de benfeitorias existentes no local ou desmontagem de acampamento durante o cumprimento da ordem judicial, salvo pedido de retirada voluntária de objetos pelos desocupados da área objeto da lide. • Do Uso de Meios Coercitivos para a Desocupação A tropa responsável pela desocupação restringirá o uso de cães, cavalos ou armas de fogo, especificamente ao efetivo encarregado pela segurança da operação, controle e isolamento da área objeto da ação, devendo todo armamento utilizado na operação ser previamente identificado e acautelado individualmente. Os policiais que participarem da operação devem estar devida e claramente identificados, de maneira que se torne possível sua individualização. O uso de tropa dependerá de prévia disponibilização de apoio logístico, tais como assistência social, serviços médicos e transporte adequado, que deverá ser solicitado, por ofício, à autoridade judicial competente. A tropa deverá ser orientada quanto aos limites do poder de polícia, com base no interesse social e na preservação dos direitos fundamentais dos indivíduos, nos termos do art. 5º e seus respectivos incisos da Constituição Federal, observando-se que o direito de propriedade somente estará assegurado quando estiver cumprindo a função social (CF/88, art. 5º XXII e XXIII). • Da Transparência das Informações Toda informação sobre a execução de mandados judiciais de manutenção e reintegração de posse coletiva deve ser fornecida de forma clara, objetiva e concisa. As perguntas que forem feitas aos policiais deverão ser respondidas adequadamente. • Da Conotação Social da Ação O efetivo policial a ser lançado no terreno deve ser esclarecido sobre a ação a ser desenvolvida, com observação de que, apesar de ser de natureza judicial, tem conotação social, política e econômica, necessitando, em decorrência, de bom senso do policial para que sejam respeitados os direitos humanos e sociais dos ocupantes. Os policiais devem ainda ser orientados sobre os limites do poder de polícia, com base no interesse social e na preservação dos direitos fundamentais dos indivíduos, nos termos do art. 5º e seus respectivos incisos da Constituição Federal. • Do Relatório Final Cumprido o mandado de manutenção, reintegração de posse ou busca e apreensão, o comandante da operação encaminhará ao Poder Judiciário, ao Ministério Público, à Defensoria Pública e a Ouvidoria Agrária Regional do Incra relatório circunstanciado sobre a execução da respectiva ordem. De ressaltar a impertinência e inadequação formal da tentativa de atribuir-se o crime de desobediência (art. 330, CP) aos policiais instados pelo Poder Judiciário a cumprir ordem judicial, em face de eventual demora na execução, geralmente em decorrência do imprescindível planejamento. Isso porque tal delito está previsto no capítulo dos crimes perpetrados pelo //particular// contra a administração, o que, por óbvio, não ocorre. Poder-se-ia, em tese, incidir o delito de prevaricação (art. 319, CP), para o qual é exigido o elemento subjetivo consistente na satisfação de sentimento ou interesse pessoal, o que dificilmente ocorrerá em se tratando de cumprir ordem contra trabalhadores rurais sem terra. A propósito, confira-se //Ocupação coletiva em imóvel rural que não cumpre sua função social//, de Fernando A. N. Galvão da Rocha. \\