=====4.6.1. Os direitos transindividuais===== \\ Na obra “A Era dos Direitos”, Bobbio desenvolveu uma teoria acerca da constitucionalização dos “direitos do homem”: >>”Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”.((BOBBIO, Norberto. **A era dos direitos**. Tradução de Carlos Nélson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 5.)). Para aprofundar o conhecimento sobre como se dá a evolução na positivação e a concretização dos direitos, some-se a isso o conceito elaborado por Foucault atinente à microfísica do poder: o poder não é exercido apenas pelo governante de maneira verticalizada, como se fosse um vetor que se desenhasse de cima para baixo. Muito ao contrário. Existem vários outros polos que exercem poder, que se organizam de forma reticular, horizontal e, portanto, influenciam decisivamente os negócios da //polis//. Tal mecanismo é recrudescido nos dias atuais em razão da facilidade de comunicação e de expressão desses grupos. Bonavides sugere que a terminologia “geração de direito” deveria ser substituída pela expressão “dimensão de direito”, uma vez que a expressão ‘geração’ designa ordem cronológica, sugerindo a decadência do direito invocado na geração anterior, enquanto o termo ‘dimensão’ possibilita uma compreensão mais abrangente, de incorporação dos direitos com o avanço dimensional: >>[...] Força é dirimir, a esta altura, um eventual equívoco de linguagem: o vocábulo ‘dimensão’ substitui, com vantagem lógica e qualitativa, o termo ‘geração’, caso este último venha a induzir apenas sucessão cronológica e, portanto, suposta caducidade dos direitos das gerações antecedentes, o que não é verdade. Ao contrário, os direitos da primeira geração, direitos individuais, os da segunda, direitos sociais, e os da terceira, direitos ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à paz e à fraternidade, permanecem eficazes, são infra-estruturais, formam a pirâmide cujo ápice é o direito à democracia; coroamento daquela globalização política para a qual, como no provérbio chinês da grande muralha, a humanidade parece caminhar a todo vapor, depois de haver dado o seu primeiro e largo passo. Os direitos da quarta geração não somente culminam a objetividade dos direitos das duas gerações antecedentes como absorvem – sem, todavia, removê-la – a subjetividade dos direitos individuais, a saber, os direitos de ‘primeira geração’. E continua dizendo que ‘tais direitos sobrevivem, e não apenas sobrevivem, senão que ficam opulentados em sua dimensão principal, objetiva e axiológica, podendo, doravante, irradiar-se a todos os direitos da sociedade e do ordenamento jurídico’ ((BONAVIDES, Paulo. **Do Estado Liberal ao Estado Social**. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 525.)). A história do reconhecimento dos direitos fundamentais será tratada neste manual pelo termo “dimensões”, tendo em vista a proposta de Bonavides, em vez de “gerações”, termo criado por Bobbio e acolhido por quase toda a literatura política e jurídica. A ideia de direitos fundamentais do homem origina-se a partir do pensamento cristão e da concepção de direitos naturais, estes últimos, frutos do jusnaturalismo, compreendidos como direitos inerentes à natureza humana – “direitos inatos que cabem ao homem só pelo fato de ser homem” , independentemente de estarem positivados ((SILVA, José Afonso da. **Direito constitucional positivo**. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 176)). O jusnaturalismo rompeu com a tradição do direito medieval, sobretudo a partir das ideias dos filósofos contratualistas. Alguns historiadores apontam a Constituição Inglesa de 1215 como marco inicial da positivação dos direitos do homem. Entretanto, a corrente dominante entende que a primeira positivação de direitos fundamentais ocorreu apenas após a Revolução Gloriosa na Inglaterra, que instituiu em 1668 um sistema de governo monárquico parlamentar por meio da “Declaração de Direitos” (//Bill of Rights//). Vários movimentos revolucionários se seguiram e alcançaram status internacional, como, por exemplo, a Revolução Francesa (1789 a 1799) e a Independência dos Estados Unidos (1776). No entanto, se de um lado, essas revoluções influenciaram o sentimento de valores fundamentais do homem, de outro, por serem produto do século XVIII, possuíam cunho nitidamente individualista, subordinando a vida social aos interesses do indivíduo, demandando do Estado a finalidade de preservação dos direitos individuais ((DALLARI, Dalmo de Abreu. **Elementos de teoria geral do Estado**. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 215.)). Nessa linha, intimamente entrelaçados à tradição liberal, surgem os direitos fundamentais de primeira dimensão, cujo núcleo limita-se aos “direitos de liberdade”, correspondentes aos direitos civis e políticos. Nessa primeira dimensão ((BONAVIDES, 2002, p. 517.)), o Estado restringe-se à edição da lei, não intervindo ou promovendo diretamente as garantias dela decorrentes. Com a queda do Absolutismo, ascendeu o sistema de produção capitalista e, com ele, a edificação de uma muralha entre duas classes sociais: de um lado, uma pequena elite burguesa; de outro, uma enorme massa de miseráveis. Os direitos fundamentais, até então com matriz na liberdade do indivíduo, se mostraram incapazes de resolver os problemas recém-surgidos. O conceito de liberdade da época estava condicionado às decisões arbitrárias do Estado e, às vezes, mostrava-se como o direito a morrer de fome. Se as revoluções dos séculos XVII e XVIII lutavam em nome de garantias individuais e contra a intervenção estatal sobre a esfera particular, agora o anseio do povo era de que o Estado interviesse e diminuísse as desigualdades socioeconômicas. Surgem nesse contexto os ideais socialistas, originados da luta dos jacobinos da Revolução Francesa, ao reivindicarem direitos além da liberdade, o que inspirou movimentos populares ao longo dos séculos XIX e XX. Ao fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), que devastou sobretudo países europeus e rebaixou as condições de vida da população ao nível de barbárie, observou-se o levante da segunda dimensão de direitos fundamentais – os direitos sociais, proclamados na declaração das Constituições socialistas e na Constituição de Weimar((A Constituição de Weimar, que instituiu a República Alemã em 1919, surgiu como um produto da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Ao sair de uma guerra perdida, que lhe custou ao cabo de quatro anos de combate cerca de dois milhões de mortos e desaparecidos (quase 10% da população masculina), o povo alemão passou a descrer de todos os valores tradicionais e inclinou-se para soluções extremas. A Carta de Weimar exerceu decisiva influência sobre a evolução das instituições políticas em todo o Ocidente. O Estado da democracia social, cujas linhas-mestras já haviam sido traçadas pela Constituição mexicana de 1917, adquiriu na Alemanha de 1919 uma estrutura mais elaborada, que veio a ser retomada em vários países após o trágico interregno nazi-fascista e a Segunda Guerra Mundial. A democracia social representou efetivamente, até o final do século XX, a melhor defesa da dignidade humana, ao complementar os direitos civis e políticos — que o sistema comunista negava — com os direitos econômicos e sociais, ignorados pelo liberal-capitalismo. De certa forma, os dois grandes pactos internacionais de direitos humanos, votados pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1966, foram o desfecho do processo de institucionalização da democracia social, iniciado por aquelas duas Constituições no início do século (COMPARATO, Fábio Konder. Rede de Direitos e Desejos Humanos. **A constituição alemã de 1919**. Disponível em: .Acesso em: 21 jul. 2008.).)). A declaração desses direitos obrigou o Estado a adotar condutas específicas para cumprir suas atribuições. Infelizmente, a maior parte dessas condutas não se concretizou naquele momento histórico, levando os direitos sociais a serem qualificados como meras diretrizes e remetendo-os à esfera programática. Bonavides explica que esses direitos de segunda dimensão: >>”[...] atravessaram, a seguir, uma crise de observância e execução, cujo fim parece estar perto, desde que recentes constituições, inclusive a do Brasil, formularam o preceito da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais. De tal sorte, os direitos da segunda geração tendem a tornar-se tão justificáveis quanto os da primeira; pelo menos esta é a regra que já não poderá ser descumprida ou ter sua eficácia recusada com aquela facilidade de argumentação arrimada no caráter programático da norma”((BONAVIDES, 2002, p. 518.)). Os direitos de terceira dimensão surgiram no final do século XX, sob a bandeira do direito à fraternidade, e representam os direitos transindividuais - direito à solidariedade, ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente equilibrado, entre outros. Os direitos transindividuais (ou metaindividuais) podem ser divididos em três espécies: direitos individuais homogêneos, direitos coletivos e direitos difusos, inseridos na legislação brasileira pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990), nos seguintes termos: >>”Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo. >>Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: >>I. interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstância de fato; >>II. interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base; >>III. interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum”. Os titulares de interesses individuais homogêneos são passíveis de determinação. A natureza jurídica desses direitos é divisível; mesmo que sejam homogêneos, podem ser identificados e tutelados singularmente por seu titular. A possibilidade de tutela coletiva de tais interesses, conferida pelo legislador, tem por escopo apenas facilitar o acesso à Justiça, evitando-se o ajuizamento de diversas ações judiciais com causa de pedir idêntica. Os titulares dos direitos coletivos são pessoas determinadas ou determináveis, todas pertencentes a determinada classe ou categoria. O objeto jurídico do direito coletivo tem natureza jurídica indivisível, pois ficam adstritos a um direito nascido na coletividade, mesmo que tenham surgido da soma de direitos individuais. Os direitos difusos, por outro lado, situam-se numa órbita bastante ampla. Assim como ocorre nos direitos coletivos, os direitos difusos têm natureza indivisível; todavia, alcançam um número indeterminado e indeterminável de pessoas ligadas tão-somente por uma situação fática. Numa decisão proferida em Recurso Extraordinário, o Supremo Tribunal Federal assim os definiu: >>”Interesses difusos são aqueles que abrangem número indeterminado de pessoas unidas pelas mesmas circunstâncias de fato e coletivos aqueles pertencentes a grupos, categorias ou classes de pessoas determináveis, ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base. 3.1. A indeterminidade é a característica fundamental dos interesses difusos e a determinidade a daqueles interesses que envolvem os coletivos. (**Supremo Tribunal Federal**. Recurso Extraordinário nº 163231/SP. Relator: Min. Maurício Corrêa. Julgado em: 26.02.1997)”. Os direitos de terceira dimensão estão situados para além do conflito de classes dentro de uma nação, pois se inserem no contexto da sociedade globalizada, em que decisões de cunho político podem provocar consequências no mundo todo. Assim, em meio a guerras, mortes, genocídios, etnocídios, pandemias e tantas outras atrocidades, surgem os direitos de fraternidade, que, no entender de Bonavides, manifestam-se de três formas: >>”1. O dever de todo Estado particular de levar em conta, nos seus atos, os interesses de outros Estados (ou de seus súditos); >>2. Ajuda recíproca (bilateral ou multilateral), de caráter financeiro ou de outra natureza para a superação das dificuldades econômicas (inclusive com auxílio técnico aos países subdesenvolvidos e estabelecimento de preferências de comércio em favor desses países, a fim de liquidar déficits); >>3. Uma coordenação sistemática de política econômica”((BONAVIDES, 2002, p. 524.)). O constitucionalista advoga também a tese da existência de uma quarta dimensão de direitos fundamentais, decorrentes da globalização econômica e do crescimento do sistema neoliberal: >>“o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo”((BONAVIDES, 2002, p. 524.)). Ele assim o define: >>“os direitos da quarta geração compendiam o futuro da cidadania e o porvir da liberdade de todos os povos. Tão somente com eles será legítima e possível a globalização política”((BONAVIDES, 2002, p. 524.)). Outros doutrinadores classificam como quarta dimensão os direitos relativos a manipulação genética, biotecnologia e bioengenharia, que envolvem discussões acerca da vida e da morte. Há, ainda, quem fale em quinta dimensão, representada pelos direitos advindos da realidade virtual. \\