=====2.1.3. Ação civil pública e controle difuso de constitucionalidade: a vinculação dos pedidos===== \\ Muito se discutiu – e ainda, em alguns setores, discute-se – sobre a possibilidade de se arguir a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo primário com ação civil pública (ACP). Gilmar Ferreira Mendes assim expõe a questão: >>"É que, como já enunciado, a ação civil pública aproxima-se muito de um típico processo sem partes ou de um processo objetivo, no qual a parte autora atua não na defesa de situações subjetivas, agindo, fundamentalmente, com escopo de garantir a tutela do interesse público. Não foi por outra razão que o legislador, ao disciplinar a eficácia da decisão proferida na ação civil, viu-se compelido a estabelecer que 'a sentença civil fará coisa julgada //erga omnes//'. Isso significa que, se utilizada com o propósito de proceder ao controle de constitucionalidade, a decisão que, em ação civil pública, afastar a incidência de dada norma por eventual incompatibilidade com a ordem constitucional acabará por ter eficácia semelhante à das ações diretas de inconstitucionalidade, isto é, eficácia geral e irrestrita".((MENDES, Gilmar Ferreira. O controle incidental de normas no direito brasileiro. **Revista dos Tribunais**, São Paulo, ano 88, n. 760, p. 32-33, fev. 1999.)) E conclui seu pensamento afirmando: >>"Nessas condições, para que se não chegue a um resultado que subverta todo o sistema de controle de constitucionalidade adotado no Brasil, tem-se de admitir a completa inidoneidade da ação civil pública como instrumento de controle de constitucionalidade, seja porque ela acabaria por instaurar um controle direto e abstrato no plano da jurisdição de primeiro grau, seja porque a decisão haveria de ter, necessariamente, eficácia transcendente das partes formais". ((MENDES, 1999, p. 33.)) Com o devido respeito ao entendimento acima, ousamos dele divergir. Pensamos que toda celeuma que o tema provoca se resume à distinção que deve ser feita entre //pedido e causa de pedir//. Com efeito, em artigo de doutrina, já afirmava, há muito, Almeida: >>"A primeira tese a ser analisada mais detidamente concerne ao fato de os tribunais asseverarem ser impossível a declaração de inconstitucionalidade de lei municipal que institui 'taxa de iluminação pública' em sede de ação civil pública, utilizando-se, em regra, da argumentação segundo a qual a decisão proferida nesta seara possui efeito //erga omnes//. >> >>No particular, entendo que nada mais correto porquanto uma decisão no sentido do reconhecimento da inconstitucionalidade não possuirá efeitos tão-somente //inter partes// e, sim, por força expressa de lei, //erga omnes//. >> >>De efeito, consubstancia-se inconcebível a tratativa de inconstitucionalidade nas ações civis públicas. Todavia, o //punctum dolens// aí não reside, //permissa venia//. A argüição de inconstitucionalidade realizada em sede de ação civil pública, na maior parte das vezes, é trazida como mera causa de pedir, motivos que irão animar e dar base ao pedido. Este difere daquela posto que se restringe à condenação do Réu a obrigação de não fazer. >> >>Portanto, incorre em profundo desvio de perspectiva o pensamento segundo o qual acoimar de inconstitucional uma lei seja a mesma coisa que pedir o reconhecimento ou declaração de sua inconstitucionalidade. Dessarte, faz-se mister, primeiramente, distinguir //pedido// e //causa de pedir//, para a determinação de uma linha de raciocínio estreme de obscuridade".((ALMEIDA, Renato Franco de. O //parquet// na defesa dos direitos individuais homogêneos. **Revista dos Tribunais**, São Paulo, v. 790, p. 115, ago. 2001.)) E ainda: >>"A questão prejudicial, como é de grande sabença, é aquela que interfere no mérito da questão, no conflito de interesses posto a julgamento e que, por isso, é questão prévia logicamente relacionada ao litígio. Miranda (1998, p. 128) verbera, sobre o assunto sob comento, que 'Na questão prejudicial, há comunicação de conhecimento, a ser apreciada pelo juiz, que funciona como antecedente lógico, sem ser preciso, ou sem ser provável formar processo separado. Pois bem. A inconstitucionalidade de uma lei quando argüida como mera motivação, causa de pedir, não faz coisa julgada, ou seja, não pertencerá ao comando da sentença posto que é //quaestiones praeiudiciales//. Dessarte, não é impossível ou processualmente incorreto o pedido da ação civil pública proposta porquanto não há pedido de reconhecimento de inconstitucionalidade da lei que instituiu a referida taxa".((ALMEIDA, 2001, p. 116.)) E, concluindo, asseverou Almeida: >>"Vislumbra-se, portanto, que a tese da impossibilidade de argüição de inconstitucionalidade de lei em sede de ação civil pública está escorreita, não merecendo qualquer reparo. Porém, não menos certo é que o fato de ser cogitada como questão prejudicial naquela ação não terá, tal entendimento, as qualidades de imutabilidade e indiscutibilidade, próprias dos assuntos que estão sob o manto da coisa julgada".((ALMEIDA, 2001, p. 118.)) Portanto, quando a matéria é tratada à luz dos ensinamentos da processualística, com concepções rigorosas de //pedido// e //causa de pedir//, não há como se negar a possibilidade de arguição incidental de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo primário no bojo de um processo subjetivo, instaurado através da ação civil pública. Nesse diapasão, o Supremo Tribunal Federal tem dado agasalho à tese acima exposta, na medida em que deixou consignado, no Recurso Extraordinário n° 424.993-6/DF, Relator Min. Joaquim Barbosa, ratificando precedentes anteriores, que: >>"RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE. OCUPAÇÃO DE LOGRADOUROS PÚBLICOS NO DISTRITO FEDERAL. PEDIDO DE INCONSTITUCIONALIDADE //INCIDENTER TANTUM// DA LEI n° 754/1994 DO DISTRITO FEDERAL. QUESTÃO DE ORDEM. RECURSO DO DISTRITO FEDERAL DESPROVIDO. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL PREJUDICADO. >>//Ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Distrito Federal com pedidos múltiplos, dentre eles, o pedido de declaração de inconstitucionalidade 'incidenter tantum' da Lei Distrital n° 754/1994, que disciplina a ocupação de logradouros públicos no Distrito Federal//. >>Resolvida questão de ordem suscitada pelo relator no sentido de que a declaração de inconstitucionalidade de Lei n° 754/1994 pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal não torna prejudicado, por perda de objeto, o recurso extraordinário. >>//A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reconhecido que se pode pleitear a inconstitucionalidade de determinado ato normativo na ação civil pública, desde que 'incidenter tantum'. Veda-se, no entanto, o uso da ação civil pública para alcançar a declaração de inconstitucionalidade com efeitos 'erga omnes'. No caso, o pedido de declaração de inconstitucionalidade da Lei n° 754/1994 é meramente incidental, constituindo-se verdadeira causa de pedir.//". (grifo nosso). No mesmo sentido, temos os seguintes arestos: Rcl. n° 2.224-2/SP; AI n° 476.058-3/MG; AI n° 504.856-1/ DF; RE n° 227.159-4/GO. Divisa-se, destarte, que é possível, segundo a reiterada jurisprudência da nossa Suprema Corte, a arguição de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo primário por meio de ação civil pública. Adicione-se a tal assertiva que a natureza do interesse que se protege por esse meio processual é irrelevante para a plena possibilidade da arguição concreta de inconstitucionalidade, podendo figurar no conflito posto em juízo interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos, uma vez que a constitucionalidade de lei ou ato normativo é questão prévia concernente ao ato com densidade normativa objetivamente considerado, nada interferindo diretamente na qualidade do interesse que se protege. \\