=====3.10. Obrigatoriedade da manifestação ministerial para expedição de mandados de busca domiciliar===== \\ O assunto sob análise aborda questão altamente controvertida; existem 02 (duas) correntes doutrinárias a respeito da possibilidade de se conceder a autorização judicial para execução de mandado de busca domiciliar, atendendo à representação da autoridade policial, sem que seja aberta vista ao órgão ministerial. O nosso CPP não exige a manifestação prévia do Ministério Público antes da expedição do mandado de busca domiciliar, diversamente do que ocorre para expedição de prisão temporária (art. 2º, § 1º, da Lei nº 7.960/1989); isso não é de se estranhar, já que tal diploma legal é de 1941, razão pela qual seus dispositivos, para serem recepcionados e terem validade, devem ser interpretados conforme nossa normatização maior. Assim, apesar de o art. 241 do CPP expressamente dar permissão à autoridade policial para realizar pessoalmente a execução da medida, tal parte deste dispositivo foi considerada não recepcionada pela nossa Constituição Federal. Alertam para esta circunstância as palavras de Cleonice Bastos Pitombo: >>“A autoridade policial, agora, não pode mais, de ofício, realizar busca salvo em caso de flagrante delito. Assim, sempre que demonstrar, de forma induvidosa, a indispensabilidade do ato para a investigação criminal, deverá pleitear a ordem à autoridade judiciária”((PITOMBO, Cleonice Bastos. **Da Busca e da Apreensão no Processo Penal**. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 188.)). Discorre no mesmo sentido a doutrina de André Nicolitt: >>“Sendo o domicílio asilo inviolável da pessoa, é imprescindível a autorização judicial expressa no mandado de busca. A previsão do art. 6, II, do CPP, que autoriza a busca e apreensão pela autoridade policial, não compreeende locais que estejam cobertos pela inviolabilidade do domicílio (art. 5º, XI, da CRF/1988). Caso seja necessário, deverá o delegado de polícia requerer o competente mandado judicial de busca domiciliar”((NICOLITT, André. **Manual de Processo Penal**. 4. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013. p. 508.)). Nessa toada, a análise dos dispositivos processuais penais deve sempre levar em conta os princípios constitucionais consagrados em nosso ordenamento jurídico. No que tange especificamente ao assunto sob análise, muitos doutrinadores passam ao largo de tal discussão; outros, por sua vez, apesar de não se posicionarem claramente sobre tal questão, acabam por transparecer seu posicionamento e, por fim, já surgem entendimentos mais sólidos a respeito de tal questão, dada a sua importância. Assim, podemos afirmar que duas correntes são esboçadas a respeito de tal questão, as quais passaremos a expor. A primeira corrente analisa a questão sob o ponto de vista de que, apesar da similaridade da busca domiciliar com um processo cautelar, dependendo, portanto, da existência das condições da ação, o requisito da legitimidade da parte é atendido, mesmo que com a representação da autoridade policial. Nesse sentido a doutrina de Eugênio Pacelli de Oliveira e Douglas Fisher: >>“Trata-se de uma medida processual de fundo essencialmente instrumental, que tanto pode ser utilizada para a coleta de material probatório quanto para o acautelamento de outros bens jurídicos, como ocorre, por exemplo, com a busca e apreensão de pessoas. Por certo, mesmo nestes casos se poderá pretender prevalecer o caráter probatório da busca e apreensão, diante da certeza obtida relativamente a determinados fatos ali envolvidos (autoria, local do cárcere etc.) >>Mas essencialmente, do ponto de vista da aproximação da medida com os institutos e categorias do processo penal, a busca e apreensão se caracteriza como medida de natureza cautelar. E ainda que não se possa dizer que se trata de um //processo cautelar//, com os contornos que lhe dá o processo civil, ou seja, condicionado pela legitimidade de parte (também a polícia pode requerer a providência em nosso processo penal), interesse de agir e possibilidade jurídica do pedido - condições da ação, portanto - e por elementos que caracterizam os pressupostos processuais (citação, competência, capacidade processual etc), a sua finalidade e suas conseqüências se assemelham com aquele (processo cautelar)"((OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de; FISCHER, Douglas. **Comentários ao código de processo penal e sua Jurisprudência**. 2. tiragem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 451.)). Tal posicionamento, embora não perpasse sobre o ponto nevrálgico da questão, conduz ao entendimento de que o ato estaria legitimado com a representação da autoridade. A segunda corrente, à qual se filia este artigo, vê na busca domiciliar uma medida cautelar probatória cujo escopo é a futura instrução de uma atividade jurisdicional e, por consequência, apesar de ocorrer na fase inquisitorial, possui uma relação acessória com o futuro processo, como qualquer outro meio de obtenção de prova. Em razão de tais circunstâncias, está sujeita aos mesmos critérios de validade a que devem se submeter as demais provas, inclusive ao princípio da comunhão das provas, mesmo que o contraditório neste caso, por óbvio, seja analisado a //posteriori// pela defesa, sob pena de se frustrarem os objetivos buscados pela medida. Nesse diapasão, o Ministério Público, em razão da interpretação constitucional que deve ser dada aos postulados processuais existentes no ordenamento jurídico brasileiro, //OBRIGATORIAMENTE// deve ratificar o pedido da autoridade policial que representou pela produção da prova, que não possui legitimidade //ad causam// e, portanto, é pessoa alheia à lide processual. Entendimento em contrário levaria ao raciocínio de que o promotor de justiça estaria obrigado a acatar a produção da prova encetada pela autoridade policial que, muitas vezes, não corresponde às necessidades que o titular da ação penal julga pertinentes para o deslinde do processo. Por sua vez, o magistrado, apesar de fazer parte da relação processual, não pode atuar de ofício na produção de prova, antes do ajuizamento da ação, sob pena de perder a sua imparcialidade, além de ferir o princípio acusatório. Nesse sentido o magistério de Marcellus Polastri Lima: >>“Em se tratando de busca e apreensão determinada pelo Juiz na investigação, entretanto, entendemos que, em vista dos princípios da imparcialidade e do sistema acusatório, esta medida só deve ser determinada se requerida pela parte, sob pena de um atuar inconstitucional, já que o Juiz na fase inquisitorial deve se manter eqüidistante, só atuando no caso de provocação”((LIMA, Marcellus Polastri. **Manual de Processo Penal**. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 529.)). A atuação da polícia judiciária deve ser executada para prestar auxílio ao promotor de justiça na obtenção das provas que este repute necessárias para o ajuizamento da ação penal. Por sua vez, a execução da atividade tipicamente policial, utilizando-se das técnicas especiais de investigação, cabe à autoridade policial, que possui o preparo técnico para consecução de tal medida. Neste sentido a doutrina de Marcelo Batlouni Mendroni: >>“O cumprimento de mandado de busca e apreensão é atividade tipicamente policial. Os agentes da Polícia é que são devidamente treinados para esse tipo de tarefa, de modo a realizar de forma mais criteriosa a operacionalização da diligência. Enquanto a avaliação da pertinência do pedido de busca diz respeito à necessidade de coleta, vale dizer, da necessidade da realização da atividade probatória, corresponde de forma predominante à atuação do Ministério Público, que deve analisar ‘o que necessita’(‘o que fazer’), a execução da busca corresponde diretamente à atividade policial, é própria da atividade policial, que deve organizar o ‘como fazer’. Melhor explicando, se a questão da análise probatória é atividade típica de Promotor de Justiça, quando tenha informação da existência de material probatório em determinado lugar e decida por agir na tentativa de recolher esse material, sela (sic) execução da busca, decidindo horário de ingresso, quantidade de policiais, material a ser levado, quantidade de viaturas, estudo prévio do local, etc., se configura um atividade policial”((MENDRONI, Marcelo Batlouni. **Provas no Processo Penal**: estudo sobre a valoração das provas penais. São Paulo: Atlas, 2010. p. 120.)). Insta observar que o mandado de busca e apreensão faz parte do rol das diligências policias que, modernamente, utilizam-se das técnicas especiais de investigação, conforme orientação da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional de 2000, promulgada no Brasil pelo Decreto nº 5.015/2004, que, em seu art. 11, item 2, estabelece: >>“Cada Estado Parte diligenciará para que qualquer poder judicial discricionário conferido por seu direito interno e relativos a processos judiciais contra indivíduos por infrações previstas na presente Convenção seja exercido de forma a otimizar a eficácia das medidas de detecção e de repressão destas infrações, tendo na devida conta a necessidade de exercer um efeito cautelar a sua prática”((BRASIL. Decreto nº 5.015, de 12 de março de 2004. Disponível em: . Acesso em: 2 jun. 2014.)). Assim, ao se retirar do titular da ação penal a análise da conveniência da produção da prova (necessidade, mérito e legalidade da expedição do mandado de busca domiciliar), além de se ferirem os princípios acusatórios, da comunhão das provas e, por decorrência, do devido processo legal, redundando na nulidade processual do ato, estará o poder público atuando de forma ineficiente, com isto maculando o postulado maior buscado pelo nosso art. 37 da CF para a administração pública, que é proibição de insuficiência no exercício da atividade jurisdicional. A respeito da obrigatoriedade de se colher o parecer favorável do Ministério Público nas representações formuladas pela autoridade policial disserta Vladimir Aras, em seu artigo “Técnicas Especiais de Investigação”: >>“De igual modo, deve haver formas de controle prévio (prevenção), simultâneo (monitoramento) ou posterior //(ex post facto)//, ou uma combinação deles, sobre os órgãos autorizados a empregar as TEI, com supervisão por autoridades judiciais ou por órgãos independentes como o Ministério Público, o que constitui o principio da //sindicabilidade ou controlabilidade//. Nesse tema do controle do procedimento, inclui-se o direito de o próprio investigado verificar sua legalidade e questioná-lo em juízo, no contraditório, na via recursal ou por meio de //habeas corpus//. >>O //princípio da inércia// e o //postulado acusatório// também marcam o tema. Como estamos no campo de restrição a direitos individuais, com grave risco de ofensa à privacidade, não deve o juiz, especialmente na fase de investigação criminal, determinar a aplicação de tais TEI //ex officio//, sob pena de envolver-se demasiadamente na atividade pré-processual de seleção da prova e macular sua isenção, tão necessária ao devido processo legal. Ao fazê-lo o magistrado pode comprometer-se com a tese da acusação. Esse risco foi antevisto pelo STF quando lançou no limbo o art. 3º da Lei de Crime Organizado, repudiando com todas as letras a figura do juiz-investigador. Em se tratando de TEI, ao juiz cabe controlar rigorosamente os pedidos do Ministério Público, isto é, tanto os que sejam de iniciativa do próprio Parquet quanto aqueles que veiculem 'representações' policiais. Em área tão sensível de proteção de direitos fundamentais, a Polícia deve estar sob o estrito controle judicial e do Ministério Público (art. 129, inciso VII, CF), de sorte que as TEI que dependam de alvará de autoridade jurisdicional na fase do inquérito só devem ser empregadas com o aval prévio do órgão de acusação. No modelo acusatório, a Polícia não tem capacidade postulatória em juízo Só há juiz se houver autor (//nemo iudex sine actore//). As normas que permitem à Polícia “representar” são inconstitucionais ou não recepcionadas, resquícios do modelo inquisitório do século XIX. A Polícia não pode recorrer, não pode ofertar contrarrazões, não é parte, não postula. Logo, não pode provocar diretamente decisão judicial, ainda mais em tema tão sensível (//privacy//). Suas representações devem ser dirigidas ao Ministério Público que, se verificar a necessidade da medida para a futura persecução criminal (art. 129, inciso I, CF) formalizará a pretensão em juízo, com o ônus e prerrogativas de parte. Este procedimento é uma decorrência lógica do principio da necessidade e do //due process of law//. Daí não se conclua, porém, que o juiz deva permanecer alheio a tudo conforme ensina Moro, nas investigações dos delitos de lavagem, o 'juiz não é um mero espectador de diligências probatórias'. >>A busca probatória também se rege pelo principio da causalidade ou //serendipidade// de modo que são admissíveis as provas casualmente encontradas como resultado do emprego de uma TEI. A descoberta inesperada pode ter uma relação qualquer com a prova procurada. Se a investigação tiver como objeto um crime grave, os fatos que forem descobertos durante a utilização da TEI – ainda que não pertençam a essa categoria de gravidade, ou ainda que não sejam alvo da apuração – poderão ser perseguidos com base nas provas casualmente encontradas, no que se chama de encontro fortuito de prova”((ARAS, Vladimir. Técnicas Especiais de Investigação. In: DE CARLI, Carla Veríssimo (Org.). **Lavagem de dinheiro**: prevenção e controle penal. 2. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2013. p. 510-511.)). Desse modo, com a devida vênia àqueles que discordam de tal entendimento, a ausência de manifestação ministerial, ou a desconsideração da manifestação contrária do promotor de justiça, no procedimento adotado para concessão de mandado de busca domiciliar pela autoridade judicial, gera nulidade do procedimento cujo prejuízo decorre da inobservância dos postulados constitucionais. \\