Tabela de conteúdos

1.10.1. Desafios jurídicos


Logo no início da vigência da Lei nº 11.340/2006 nos deparamos com vários questionamentos jurídicos que estão sendo enfrentados quanto pelos doutrinadores tanto pelos tribunais. Tais questões são relativas à constitucionalidade dessa lei, à constitucionalidade específica do seu art. 41, à questão relativa à ação penal nos crimes de lesão corporal leve praticado em violência doméstica contra a mulher e à interpretação do art. 16 da lei, que se refere à renúncia à representação da vítima. Essas questões serão abordadas a seguir de forma a orientar o promotor de justiça na sua atividade profissional. Procuramos expor os diversos pontos de vista, e o que adotamos na nossa atividade diária na promotoria especializada, esclarecendo os motivos de nosso posicionamento. Buscamos nos orientar interpretando a lei, conforme expresso em seu próprio texto, de forma a sempre favorecer a mulher vítima de violência. Nas questões polêmicas e controversas contidas no texto legal, a Promotoria Especializada no Combate à Violência Doméstica e Familiar contra Mulher de Belo Horizonte entendeu por bem optar pelo caminho que favorecesse mais a mulher vítima de violência doméstica. Aliás, é assim o comando legal contido no art. 4º da Lei nº 11.340/2006: “Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar”.


Constitucionalidade da Lei nº 11.340/2006


O § 8° do art. 226 da Constituição Federal prevê, literalmente: “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos quais a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”. Assim, temos que a Lei nº 11.340/2006 vem, de acordo com o estabelecido na Constituição Federal, criar mecanismos para coibir, combater e erradicar a violência doméstica e familiar contra a mulher.

A constitucionalidade da Lei nº 11.340/2006 é bastante clara, uma vez que obedece ao preceito constitucional previsto no art. 226, § 8º, da Constituição Federal, propondo medidas que visam coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, que é, sem dúvida alguma, parte integrante da unidade familiar.

A Lei nº 11.340/2006 busca atender:

“[…] os mecanismos de ação afirmativa que tem por objetivo implementar ações direcionadas a segmentos sociais, historicamente discriminados, como as mulheres, visando a corrigir desigualdades e a promover a inclusão social por meio de políticas públicas específicas, dando a estes grupos um tratamento diferenciado que possibilite compensar as desvantagens sociais oriundas da situação de discriminação e exclusão a que foram impostas. (exposição de motivos do Projeto de Lei nº 4.559/2004)”

Poder-se-ia dizer que a Lei nº 11.340/2006 é inconstitucional por ferir o princípio da isonomia entre homens e mulheres. Porém, o que se busca é justamente corrigir as desigualdades gritantes que ainda estão presentes na moderna sociedade brasileira. Por fatores sociais e culturais, as mulheres ainda estão em condição de inferioridade em relação aos homens, em que pesem os avanços já alcançados nos últimos anos, fruto de batalhas de mulheres incansáveis. Dessa forma, além de se tratar de lei constitucional, ela não fere o princípio da isonomia entre homens e mulheres, mas busca o equilíbrio social.

Há muitos exemplos, já absorvidos pela nossa cultura, em que sujeitos em situação de inferioridade social estão protegidos por leis específicas, que nada têm de inconstitucional. É o caso das cotas reservadas para negros em escolas e universidades públicas, bem como para deficientes físicos em serviço público. Esses são exemplos claros e recentes de leis que tentam diminuir as desigualdades sociais, buscando o equilíbrio social, sem que sejam contra a Constituição Federal, estabelecendo igualdade de todos os brasileiros, independentemente de raça, cor, idade, condição social, etc.

A Lei nº 11.340/2006 introduziu o diferencial da violência de gênero, ou seja, aquela praticada contra mulheres. Basta fazer uma analogia histórica para se concluir que se trata de uma norma justa e constitucional.

Um dos fundamentos de se reservar uma cota para os negros terem ao acesso às escolas públicas é o de pagar uma dívida social referente à escravatura, que imperou no Brasil durante muitos anos no passado. Da mesma forma, se observarmos a evolução dos direitos da mulher ao longo da História, temos que, há algum tempo, a mulher casada era subjugada à vontade do marido, devendo-lhe obediência total, inclusive para exercer atividade profissional. Até o direito ao voto é concessão recente no nosso ordenamento jurídico. Assim, a Lei nº 11.340/2006, que busca a proteção à mulher em situação de violência doméstica, também pode significar o resgate de uma dívida histórica da sociedade brasileira para com as mulheres.

As iniciativas que levaram à edição da Lei nº 11.340/2006 são, portanto, ações afirmativas que visam corrigir a defasagem entre o ideal igualitário predominante nas sociedades democráticas e um sistema de relações sociais marcado pela desigualdade.

A Constituição Federal bem como os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário preveem como necessária a edição de lei que proteja as mulheres, e tal necessidade se vê reforçada pelos dados estatísticos que comprovam sua ocorrência no cotidiano da mulher brasileira. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) do final da década de 1980 constataram que 63% das agressões físicas contra as mulheres acontecem dentro de casa e são praticadas por pessoas ligadas a elas por laços afetivos. Outro dado alarmante é que, segundo tal pesquisa, cerca de 11% das brasileiras vivas já foram espancadas pelo menos uma vez, e do total investigado, 31% das mulheres relataram agressões nos doze meses anteriores à pesquisa, ou seja, trata-se de agressões relativamente recentes. Assim, é justamente contra as relações desiguais que se impõem os direitos humanos das mulheres, buscando-se a igualdade social.

Nesse ponto nos esclarece Celso Antônio Bandeira de Melo que a igualdade prevista constitucionalmente deve ter como base o tratamento igual para situações iguais e desigual para situações desiguais. Assim, havendo a presença de fatores que estabelecem desigualdades entre as pessoas, estas devem ter tratamento desigual.

No entender de Alexandre de Moraes, para se saber se uma norma é discriminatória ou não, deve-se analisar a justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos. Deve-se ter em vista a finalidade e os efeitos da medida considerada. No presente caso, a norma em comento visa à busca da igualdade social, e não ao privilégio de gênero.

Portanto, temos que a Lei nº 11.340/2006 é constitucional, já que pretende a proteção da mulher e a igualdade social, previstas na Constituição Federal.


Constitucionalidade do art. 41 da Lei nº 11.340/2006


Muito se tem questionado sobre a suposta ofensa à Constituição também das disposições contidas no art. 41 da Lei nº 11.340/2006, o qual prevê que a “crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995”.

A melhor doutrina, por Guilherme de Souza Nucci, defende a constitucionalidade do art. 41 da Lei nº 11.340/06 e considera que essa lei firmou o entendimento de que os crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher não são de menor potencial ofensivo, independentemente da pena, motivo pelo qual não se submetem à Lei nº 9.099/95.1)

Entretanto, aqueles que questionam a constitucionalidade se apoiam em duas premissas: a de que os juizados especiais seriam competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos nas hipóteses previstas em lei, e a de que a Lei Maria da Penha é discriminatória de sexo.

Tais considerações são equivocadas, na medida em que a Constituição Federal de 1988 estabeleceu, no art. 98, inciso I, a criação dos juizados especiais competentes para julgar infrações penais de menor potencial ofensivo, permitida, nesses casos, a transação penal. Ao legislador ordinário restou a incumbência de definir quais seriam os crimes de menor potencial ofensivo. Assim foi feito pela Lei nº 9.099/95, que no seu art. 61 considerou como crimes de menor potencial ofensivo aqueles com pena máxima não superior a um ano e não sujeitos a procedimento especial, o que a Lei nº 10.259/2001 modificou posteriormente, ampliando esse limite, e considerando crimes de menor potencial ofensivo aqueles a que se comina pena máxima de dois anos. A Lei nº 11.313/2006 deu nova redação ao art. 61 da Lei nº 9.099/95, em observância à posição jurisprudencial pacífica que se firmou com a Lei nº 10.259/2001, quando estabeleceu que as infrações penais de menor potencial ofensivo da alçada do Juizado Especial Criminal seriam as de pena máxima de dois anos.

Válida a transcrição do atual art. 61 da Lei nº 9.099/95, com a redação dada pela Lei nº 11.313/2006:

“Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, cumulada ou não com multa”. (grifo nosso)

Entretanto, na Lei nº 11.340/2006, os critérios do legislador para definir o que era menor potencial ofensivo basearam-se na defesa constitucional dos Direitos Humanos, através da retificação da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. A Lei Maria da Penha – que prevê, quanto ao processo, ao julgamento e à execução das causas cíveis e criminais decorrentes de atos de violência doméstica, a aplicação dos outros dispositivos legais, no que não conflitarem com o estabelecido na Lei nº 11.340/2006 – deixa evidente que não há conflito normativo.

Assim, o legislador quis definir os delitos cuja violência é doméstica ou familiar contra a mulher como de maior potencial ofensivo porque ocorridos no seio da família, cuja proteção do Estado está garantida pelo art. 226 da CF/88, sobretudo quanto ao cumprimento do seu § 8º, que prevê que o “Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”. A interpretação do art. 98, inciso I, da Constituição Federal deve ser feita conjuntamente ao art. 226, § 8º, sendo vista a lei que combate à violência doméstica como uma garantia da família de proteção do Estado.

Não há que se falar na inconstitucionalidade do art. 41 da Lei nº 11.340/2006, visto que inaplicável o art. 98, I, da CF/88 aos delitos decorrentes de violência doméstica, dado o seu caráter de maior potencial ofensivo.

Dito isso, torna-se óbvia a impossibilidade da aplicação da Lei nº 9.099/96, inclusive quanto ao seu procedimento, condições da ação e dos institutos despenalizadores e a transação penal, já que todas as especificidades dessa lei são privilégios inerentes à individuação da pena típicos aos que cometem delitos de menor potencial ofensivo. São benefícios constitucionalmente garantidos aos que cometem crimes que não sejam considerados tipicamente como violência doméstica. Não se trata só de agravar a satisfação dos requisitos para sua concessão ou de atribuir condição particularmente mais gravosa – trata-se de individuação da pena de acordo com a gravidade do crime. A violência doméstica é reconhecidamente violação aos direitos humanos e, portanto, merece seja apenada de forma mais gravosa, não fazendo jus o agressor no lar e na família aos benefícios típicos dados àqueles que cometem crimes de menor potencial ofensivo à Justiça Pública.

Torna-se explícito, pois, que a Lei Maria da Penha não se configura discriminatória, na medida em que foi constitucionalmente prevista a especial proteção do Estado aos materialmente desiguais. O Princípio da Igualdade precisa ser usado relevando a condição das minorias e as particularidades de cada segmento, e amortecendo as desigualdades, as quais, na relação homem/mulher assim considerados na sociedade, são inúmeras.

Portanto, a Lei Maria da Penha se mostra um instrumento normativo cujo escopo é a nivelação material entre os gêneros, fazendo com que a parcela de mulheres que prescindem de proteção seja resguardada pelo Estado e tenha instrumentos para o alcance de sua dignidade, não ficando sob o jugo da vitimização, da vulnerabilidade nem da violência doméstica.

O que fez a Lei nº 11.340/2006 foi afastar os crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher, modificando com isso a definição de crimes de menor potencial ofensivo. Ao considerar os crimes de violência doméstica contra a mulher como de maior potencial ofensivo, afasta a aplicação da Lei nº 9.099/95. É, portanto, perfeitamente constitucional o art. 41 da Lei nº 11.340/2006.

Quanto ao crime de lesão corporal leve em situação de violência doméstica, independentemente de quem o cometeu, se o homem ou a mulher, já está afastada a aplicação da Lei nº 9.099/95, visto que a pena máxima ultrapassa o limite dos dois anos, que é limite legal para o entendimento de crime de menor potencial ofensivo. Entendemos que, se se tratar de vítima mulher, pela Lei nº 11.340/2006, fica totalmente afastada a aplicação da Lei nº 9.099/95. Se a mulher for a agressora, ainda a socorre o benefício da suspensão condicional do processo, uma vez que a pena mínima não excede a um ano.

Uma das consequências imediatas da constitucionalidade do art. 41 da Lei nº 11.340/2006 é que o crime de lesão corporal leve volta a ser de ação penal pública incondicionada, conforme sempre foi, até o advento da Lei nº 9.099/95. Não se aplicando mais a Lei nº 9.099/95, por proibição expressa no art. 41 da Lei nº 11.340/2006, temos que tudo volta como era antes, sendo esse o entendimento dos doutrinadores e a jurisprudência de vários estados brasileiros.


O afastamento da Lei nº 9.099/95


A realidade brasileira, pautada na compreensão geral de que a violência doméstica e familiar é um ônus a ser suportado pela mulher, dentro de um contexto social em que o homem foi erigido a uma condição de superioridade, levou ao estado atual de banalização da violência doméstica. A situação é tão séria, que chega a ser um problema de saúde pública a ser enfrentado pelas autoridades de forma mais efetiva.

Em 1995 foi editada a Lei nº 9.099/95, que tratou os crimes de lesão corporal leve e ameaça, os principais crimes praticados contra mulheres dentro da relação familiar, como de menor potencial ofensivo. Naquela época buscava-se a justiça rápida, com a imediata aplicação da lei penal, de forma a dar uma resposta à sociedade, lei essa que se pensou fosse a mais eficaz. A Lei nº 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais) primou por ser conciliadora, pois por meio dela se busca o entendimento entre as partes, sem a intervenção direta e radical da Justiça. Ela atua, evidentemente, em muitos casos, homologando acordos feitos entre as próprias partes envolvidas diretamente. Nos casos em que o acordo não é possível, há a atuação direta da Justiça.

Contudo, após mais de dez anos de vigência da Lei nº 9.099/95, com os Juizados Especiais instalados em todos os cantos do Brasil, chegou-se à conclusão de que, para os casos de violência doméstica, que representam parte expressiva dos procedimentos da competência do Juizado Especial, tais procedimentos se mostraram ineficazes. A violência contra a mulher se intensificou e continua com índices alarmantes, chegando a ser um problema de preocupação do poder público.

Essa questão foi amplamente discutida pela sociedade civil organizada, pelos órgãos públicos e privados, na busca da solução desse grave problema social.

Após grandes debates e lutas empreendidas por pessoas engajadas na busca por políticas públicas que pudessem proteger a mulher brasileira contra seus agressores diretos, editou-se a Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), que afastou por completo a Lei nº 9.099/95 dos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.

Para entendermos melhor os caminhos que levaram à edição da Lei Maria da Penha, busquemos as origens das discussões e dos pontos levantados pelos responsáveis por todo esse processo, até mesmo do processo legislativo. Como a Lei Maria da Penha cria mecanismos protetivos para a mulher em seu ambiente doméstico e familiar, de forma específica, e é uma lei recente, que vem sendo bastante analisada e discutida por estudiosos do Direito, pretendemos neste trabalho esclarecer os caminhos pelos quais os textos de lei passaram para chegar ao texto legal final aprovado pelo Poder Legislativo. Pensamos que, nesta pesquisa, conseguimos entender a vontade do legislador e os motivos que o levaram ao texto final da lei como hoje está editada e publicada, e que deve ser cumprida.

Para a discussão do texto legal e confecção desse importante trabalho, foi criado o Grupo de Trabalho Interministerial, formado pelos seguintes órgãos: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) da Presidência da República (coordenação); Casa Civil da Presidência da República; Advocacia-Geral da União; Ministério da Saúde; Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República; Ministério da Justiça e Secretaria Nacional de Segurança Pública.

Como consequência do esforço desse grupo seleto, em 2004 foi formulado o Projeto de Lei nº 4.559, que foi encaminhado pelo Presidente da República em 03/12/2004.

O Projeto de Lei nº 4.559/2004 propôs muitas inovações no combate à violência doméstica contra a mulher e já representou um avanço em relação à Lei nº 9.099/95. O PL nº 4.559/04 definiu o que é violência doméstica e familiar contra a mulher sob diversos aspectos: físico, sexual, psicológico, moral e patrimonial, além de prever que esse tipo de violência representa violação dos direitos humanos. Previu ainda alteração nas providências policiais a serem efetivadas quando se tratasse de caso envolvendo a violência doméstica e familiar contra a mulher. Outra inovação já trazida pelo PL nº 4.559/2004 foi a previsão de estabelecimento de amparo à vítima, que deveria ser atendida por equipe multidisciplinar formada por psicólogos, assistentes sociais, médicos. Previu ainda a participação efetiva e direta do Ministério Público nestes casos diretamente ligados à proteção à mulher, bem como a ampliação das medidas cautelares em relação ao agressor e de medidas protetivas à vítima, já antecipando efeitos civis e penais. O PL nº 4.559/04 já considerava a possibilidade de prisão preventiva quando se tratasse de crime praticado mediante violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena aplicada.

O projeto original previa expressamente a aplicação de mecanismos e procedimentos estabelecidos na Lei nº 9.099/95, adequados aos casos de violência doméstica, mesclando uma rápida solução judicial e extrajudicial. O rito procedimental, porém, foi alterado para os casos de violência doméstica.

O PL nº 4.559/2004 já previa a abolição do Termo Circunstanciado de Ocorrência, voltando-se ao Inquérito Policial, para uma apuração mais aprofundada dos fatos. Numa clara manifestação de se buscar uma resposta mais gravosa para os casos da violência doméstica, o anteprojeto de lei já permitia a prisão em flagrante delito, bem como a decretação da prisão preventiva do agressor, independentemente da pena cominada ao crime.

Uma mudança processual prevista pelo anteprojeto de lei era a de uma audiência de apresentação, em que o juiz ouviria a vítima antes de ouvir o agressor e ela não poderia ser compelida a transacionar, mesmo havendo possibilidade de conciliação. Tal audiência seria presidida diretamente pelo magistrado ou por bacharel em Direito, especialmente capacitado para isso.

Era prevista ainda audiência para proposta de transação penal, porém tal audiência somente seria realizada em um segundo momento, após a vítima ter passado pela avaliação da equipe multidisciplinar capacitada para o atendimento específico. As penas a serem aplicadas não poderiam ser restritivas de direito de prestação pecuniária, sendo vedado o pagamento de cesta básica e de multa.

Na parte final, o anteprojeto já previa a criação de Varas e Juizados Especiais da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com competência cível e penal, propiciando o atendimento global e emergencial que os casos demandassem.

Depois de muitos debates no Congresso Nacional, algumas mudanças foram implementadas, de forma a modificar substancialmente o PL nº 4.559/2004.

Na Câmara dos Deputados várias foram as reuniões em que estiveram presentes representantes da sociedade civil com interesse direto na questão do combate à violência contra mulheres. No Senado Federal, o projeto de lei passou por estudos da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, que lhe promoveu uma revisão completa, passando a se denominar PLC nº 37/2006. A revisão promovida pelo Senado teve aspecto mais técnico, dando à lei uma redação mais precisa, a fim de que pudesse representar com a clareza necessária a vontade expressa do legislador.

Quando discutimos especificamente sobre o afastamento total ou parcial do art. 41 da Lei nº 11.340/2006, e analisando o que até aqui foi exposto, não resta nenhuma dúvida de que o seu afastamento foi total. Com efeito, se o anteprojeto previa expressamente a aplicação de alguns dispositivos da Lei nº 9.099/95, apenas de forma modificada especialmente para os casos de violência doméstica, o texto legal aprovado como sendo a Lei nº 11.340/2006 afasta expressamente a Lei nº 9.099/95, conforme o citado art. 41.

O raciocínio nos parece de uma clareza, que dispensa maiores comentários. O anteprojeto nº 4.559/2004 previa a clara e certa aplicação dos dispositivos da Lei nº 9.099/95, com modificações nos procedimentos, aplicando a lei já com maior rigor. Após várias discussões acerca do assunto, ao ouvir as entidades interessadas, representantes da sociedade, houve por bem a Câmara dos Deputados rever e modificar o texto do anteprojeto da lei, que chegou ao seu final com a expressa e clara vedação da aplicação de todo e qualquer dispositivo previsto na Lei nº 9.099/95. Basta observar o art. 41 da Lei nº 11.340/2006: “Aos crimes praticados mediante violência doméstica e familiar contra a mulher não é aplicada a Lei nº 9.099/95”.

Dessa forma, está clara a vontade do legislador de tratar diferentemente a violência de gênero contra as mulheres. No caso de crime de ameaça, não resta dúvida: se a vítima for mulher em situação de violência doméstica, ainda que a pena prevista seja a de até um ano de detenção, não cabe transação penal nem suspensão do processo. No caso de crime de lesão corporal leve, com o aumento da pena para até três anos de detenção, a transação penal já estaria afastada, mesmo pelos critérios da Lei nº 9.099/95. Mas por força do art. 41 da Lei Maria da Penha, foi afastada também a hipótese de suspensão do processo. Em ambos os casos, ainda é possível a prisão em flagrante delito e a prisão preventiva.

Porém, nos casos em que a vítima da violência doméstica é homem, temos que é possível aplicar alguns dispositivos da Lei nº 9.099/95, porque é evidente que a Lei Maria da Penha se aplica aos casos de vítima mulher, sendo claramente uma lei que procura combater a violência de gênero.

Com o afastamento total da aplicação da Lei nº 9.099/95, que instituiu a ação penal condicionada à representação da vítima nos casos de crime de lesão corporal leve, conforme art. 88, temos que volta a vigorar o preceito legal anterior à Lei nº 9.099/95, em que tínhamos a regra clara de ser a lesão corporal leve um crime de ação pública incondicionada. Para tal assunto, pela sua complexidade, dedicamos o item Ação Penal nos delitos de lesão corporal leve.

Portanto, pelas razões expostas, consideramos que o art. 41 da Lei Maria da Penha afastou totalmente a aplicação da Lei nº 9.099/95 nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.


A inaplicabilidade da suspensão processual nos delitos de violência doméstica e familiar contra a mulher


É comezinho que o Juizado Especial, regido sob a lei nº 9.099/95, não teve êxito na solução da violência doméstica. Ao contrário, “A atuação deficitária dos juizados nos tratos da violência doméstica, juntamente com a classificação deficiente do crime de lesão corporal pelo Código Penal e as penas aplicadas, quase que estimulam novas agressões”.2)

Por outro lado, o que ocorria era que: “a violência denunciada pelas mulheres e julgada nos Juizados Especiais tem, por força da Lei, a solução da conciliação, no que se refere ao delito, além da tentativa de reconciliação do casal, levando a mulher desistir de levar o caso adiante, mediante o compromisso verbal do agressor, de não mais praticar atos violentos”.3)

Significa, em outros termos, o compromisso do agressor de não mais praticar crime, o que é risível em um contexto normativo em que tal compromisso é intrínseco ao “contrato social”.

“O número de delitos que não se cometem pelo temor a ser condenado à prisão ou pelo reforço dos valores socialmente assumidos na Justiça que a presença da prisão gera e que tem fiel reflexo nas manifestações da opinião pública determinadas por uma percepção de que o sistema prisional é demasiado generoso com os delinqüentes, produzindo um sentimento de desconfiança social para dentro de todo o sistema penal”.4)

Por isso, a ferramenta ainda válida é, no caso, a coerção penal, mesmo que efetivamente se tenha uma pena mínima, o agressor se vê sujeito à reprimenda penal e à inserção de seu nome no rol dos culpados, o que pode lhe servir de óbice ao cometimento de novo delito. A prejudicialidade da aplicação da Lei 9099/95, reside na perspectiva de impunidade vislumbrada pelo agressor.“O principal argumento é que, depois de tanta luta para que a violência contra a mulher fosse tratada como crime, e como violação de direitos, os novos procedimentos processuais afastam a possibilidade de uma condenação e permitem que estes agressores nem cheguem a julgamento”.5)

Não se ignorem os efeitos do regime celular no indivíduo, porque “uma instituição dessa natureza cria um sentimento de esterilidade absoluta, onde a origem reside na desconexão social e na impotência habitual para adquirir, dentro do estabelecimento prisional, vantagens que sejam transferíveis à vida que desenvolve em liberdade”6), com isto, no cometimento de violência doméstica envolvendo delitos cuja pena aplicável seja maior, os efeitos da potencial reprimenda são sentidos antes mesmo de qualquer punição.

Quando se pensa em uma estepe de alternativas à pena privativa de liberdade, o que ocorre mais comumente nos delitos de violência doméstica de classe inicial, tais como ameaça, cárcere privado e lesão corporal simples, a utilização das sanções alternativas somente faz sentido quando posterior à sentença.

A Política Penal atual, com a nova cultura do controle social sobre o delito “já não busca alcançar os fatores que levaram o cidadão ao crime e sim, reduzir-lhes a oportunidade para que não cometa delitos”7). Na violência doméstica, o vetor deve ser oposto, para sua erradicação.

Destarte, rechaça-se a hipótese da aplicação da transação penal, da suspensão processual, porque “A Lei nº 9.099/95 deu ao cidadão a opção de livrar-se do ônus do processo sem mesmo ter que discutir a culpabilidade, ainda que, à luz da política de consenso que a orienta, tenha ele de realizar certas concessões, como submeter-se a medida alternativa ou a período de prova”8), o que teria por consequência um enorme retrocesso no que tange à proteção da vítima de violência doméstica, porque não conscientiza o agressor.

O escopo da Lei nº 11.340/06 foi diferenciar a natureza da punição para o agressor doméstico, segundo o critério da individualização das penas, excluindo a aplicação da Lei nº 9.099/95, recusando a aplicação de seus institutos, uma vez que “as mulheres enfrentam também a incapacidade preventiva e resolutória dos Juizados Especiais Criminais, possuidores de procedimentos muito questionados pelas feministas hoje. Os operadores dos Juizados reafirmam os estereótipos negativos, não previnem a reiteração da conduta, não contribuem para a efetiva gestão do conflito e se mantêm cegos aos apelos da vítima quanto aos seus reais interesses, deslegitimando o problema”9), com isso, minimizam a violência.

É necessário lembrar que a inclusão do parágrafo 3° ao art. 5° da Constituição Federal, acrescentado pela Emenda Constitucional n° 45, tornou os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos equivalentes à norma constitucional, o que significa a imediata aplicação da Convenção de Belém do Pará, porque norma cogente.

Na referida Convenção, o artigo 7º, alíneas “b” e “e”, dispõe que “Os Estados Partes condenam todas as formas de violência contra a mulher e convêm em adotar, por todos os meios apropriados e sem demora, políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar tal violência e a empenhar-se em agir com o devido zelo para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher;” bem como tomar todas as medidas adequadas, inclusive legislativas, para modificar ou abolir leis e regulamentos vigentes ou modificar práticas jurídicas que respaldem a persistência e a tolerância da violência contra a mulher.

Sobreveio a Lei nº 11.340/2006, para não mais atribuir aos JECRIMs, a competência para processar crime ocorrido em situação de violência doméstica e familiar, posto que exceto da esfera de delitos de “menor potencial ofensivo”. Tal alteração legislativa foi dada como resposta à sociedade que reclamava uma punição efetiva, porque antes, os réus, quando condenados “eram obrigados apenas a pagarem uma cesta básica alimentar ou prestar serviços à comunidade. Tal situação tem levado à banalização da violência doméstica, desestimulando as vitimas a denunciar esses crimes e dando aos agressores um sentimento de impunidade”.10)

A Lei nº 11.340/2006, no fluxo da legislação internacional, e em decorrência de punição por corte internacional, veio responder a este anseio social de justiça. Tudo, para sanar a gravidade dos problemas que fizeram parte da justiça consensualizada dos Juizados Especiais para as mulheres vítimas de violência de gênero. Afirma Letícia Franco que:

“O que se observa, diante do estudo da justiça penal consensuada em face da violência contra a mulher, é que o procedimento criminal destinado aos crimes de menor potencial ofensivo mostra-se socialmente ineficaz, na medida em que, privilegiando uma contraditória celeridade do procedimento, não discute suficientemente o conflito, não oferecendo, às partes deste, solução, ou se reduzindo a acordos impossíveis de execução forçada; ou ainda realizando-se mediante propostas de pena antecipada prioritariamente pecuniária, (inviabilizando a ressocialização do autor do fato), ou não previstas em lei (como o pagamento de cestas básicas, que é a criação judicial), ou, raramente, de penas de prestação social cujo cumprimento é parcamente fiscalizado”11)(grifo nosso).

Outrossim, ainda que fosse possível a aplicação do referido instituto, não poderia o Ministério Público oferecer tal proposta quando do oferecimento da denúncia, sob pena de inquestionável prejuízo ao réu. Consoante o Novo Código Processual Penal, pode o Juiz, antes de promover a citação, apreciar de plano a Denúncia avaliando as hipóteses que ensejariam a absolvição sumária, consoante artigo 396 o que seria mais benéfico ao réu. Tal medida, por si só, afeta a garantia do devido processo legal.

De outra sorte, para os que entendem que o recebimento da Denúncia se dá quando da apreciação da defesa preliminar, conforme Artigo 397 do novo Código, a suspensão do processo só teria lugar após a apresentação da defesa prévia, após o magistrado afirmar não estar presente qualquer das hipóteses que autorizam a absolvição sumária, o que garantiria ao réu a ampla defesa, pois o agressor tem de optar pela diminuição de seus direitos ou enfrentar o processo, sem que tenha sido ouvido ou que tenha produzido qualquer tipo de prova em sentido contrário ao que está narrado na Denúncia, o que resta em evidente prejuízo ao direito de defesa, vez que, presente qualquer das hipóteses do artigo 397, restaria o agressor absolvido. O oferecimento de proposta de suspensão feriria, assim, a garantia do réu ao devido processo legal e presunção de inocência.

Observando que o artigo 394 do CPP estabelece o procedimento comum sumário, para suspender o processo, é preciso que ele exista, o que implica necessariamente o recebimento da denúncia.

Oferecida a Denúncia e avaliada a defesa preliminar, é possível, ainda a determinação da produção antecipada das provas consideradas urgentes antes da suspensão, caso em que não haveria economia processual, tampouco a suspensão teria alcançado seu objetivo de evitar o processamento do agressor. Também restaria o agressor prejudicado.

“Na verdade, se com a simples suspensão do processo, em face de uma questão prejudicial, cuja solução no cível não dura mais que três ou quatro anos, o legislador determinou a ‘ouvida das testemunhas e de outras provas de natureza urgente’, é sinal de que considerou a prova testemunhal como urgente.HC 99989/SP - DJe-231 DIVULG 09/12/2009 PUBLIC 10/12/2009”.

A utilização do período de prova na suspensão processual, cujo mínimo é de dois anos, pode trazer consequências e impedimentos para o agressor, por exemplo na obtenção de emprego, pois na ficha de antecedentes criminais constará um processo em suspensão, o que significa prejuízo, caso o mesmo pudesse ter sido absolvido.

Ademais, as “condições” propostas no sursis processual tem igual natureza punitiva e sancionatória do instituto do sursis penal, razão porque as mesmas proibições não podem ser consideradas despenalizantes, uma vez que se trata do mesmo contexto jurídico. Será então o agressor sujeito a uma espécie de “pena processual”, sem condenação e eventualmente de mesma monta que a que receberia no caso de condenação. Evidente o prejuízo ao agressor.

O Judiciário carece da capacidade instrumental de prestar eficazmente à sociedade e à vítima a fiscalização do cumprimento pelo agressor das condições a ele impostas, assim como ocorre na decretação das medidas protetivas, o que sana apenas a sensação de insegurança, oriunda da multiplicação emocional do perigo existente, desfazendo apenas a insegurança social e da vítima, uma vez que o arbitramento das mesmas não retira do infrator a capacidade de cometer o delito que intenta.

Por outro lado, tais condições geram insegurança para o agressor, uma vez que a qualquer momento pode ser surpreendido com uma eventual reclamação descabida da vítima de violação, por parte do agressor às condições impostas, o que findaria com a suspensão.

Isto retira do instituto sua utilidade, transformando-o tão somente em uma forma de “livrar-se mais rápido do processo”, com prejuízo evidente para o agressor e para a vítima, sem qualquer garantia de ressocialização, desatendendo, ainda, a garantia constitucional de “individualização da pena”, prevista na Lei nº 11.340/2006.

A experiência forense nos mostra que, quando o problema é a violência doméstica e familiar contra a mulher, a nova incursão sempre acontecerá antes do término do período de prova, pois vê-se que há um número de delitos reiterados pelos mesmos agressores contra as mesmas vítimas. O que faz da suspensão processual uma solução temporária para um problema permanente. Nas palavras do Ministro Marco Aurélio:

Na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 19, discute-se a constitucionalidade do preceito no que envolvida a razoabilidade considerado o fato de, na maioria das vezes, ocorrendo a retratação, seguir-se violência contra a mulher em gradação maior.12)

Afinal, como a violência doméstica é cíclica, se não estancada, o agressor estará em breve sendo processado novamente, o que não resolve o acúmulo processual. Raros são os casos em que este tipo de ilícito foi um incidente isolado na vida do réu.

Por outro lado, ainda que enfrente a persecução penal e seja condenado, a execução da pena, ainda que pequena, significa condenação capaz de gerar reincidência e, como nos delitos de violência doméstica é esperado o aumento do nível de violência quando esta não é estancada, a primeira condenação deve, além de ter o efeito retributivo e fazer crer que não há mais impunidade nesse tipo de crime, fazer com que o agressor se sinta desestimulado a cometer novo delito.

Considerando que tais delitos são tipificados na Lei nº 111.340/06 como violação dos direitos humanos, a avaliação da utilidade da demanda judicial é feita frente aos Direitos Humanos das vítimas, e frente à necessidade de prevenção de novos delitos.

Com base nisso, o Estado-Acusação ou o Estado-Juiz não possui legitimidade para perdoar e, quando o faz de forma velada a sociedade interpreta como se fosse incentivo à delinquência ou aumento da impunidade, criticando a atuação do representante do Ministério Público que exortou pelo abrandamento das conseqüências do crime para o acusado, fazendo com que tal suspensão tenha por sinônimo a impunidade, descaso ou benevolência, desprezo aos direitos fundamentais da vítima.

Resta dizer que tal medida suspensiva não vai aligeirar a pesada carga de processos que estão distribuídos, porque a lei não constitui, por si só, instrumento eficiente de mudança cultural, retratando apenas o reconhecimento de direitos. Por isto a via legal, o processamento criminal pela Justiça, é a única e mais eficaz força de restabelecimento do equilíbrio social, rescindido pelo crime; o sistema judicial deve atuar em nome da “ordem pública”, do “bem comum”, do adequado provimento jurisdicional.

Ainda que fosse possível juridicamente falar na suspensão processual do artigo 89 da Lei nº 9.099/95, não seria ela deferida ao comitente de violência doméstica, porque as condições do referido artigo não seriam satisfeitas, uma vez que sua aplicação se condiciona à presença dos requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena - inerentes ao artigo 77 do Código Penal - dentre os quais o atendimento às condicionantes do artigo 44, que prevê para os delitos cuja pena seja inferior a 4 anos e o crime não tenha sido cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, nos delitos com qualquer pena sendo o crime culposo; Condiciona, ainda, à reparação do dano.

No delitos de violência doméstica contra a mulher, os casos são de natureza dolosa e sempre cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa. Os motivos são reprováveis, pois consistem em violência machista. As circunstâncias do crime não autorizam a suspensão porque não erradicam nem previnem nova violência sobre a mesma vítima e há violação dos direitos humanos. Também não é possível a reparação dos danos. Portanto, mesmo que tratássemos de agressor primaríssimo, este não alcançaria os critérios legais.

Por fim, para dissipar a questão, o STF, em decisão no Habeas Corpus nº 98880, cujo Relator foi o Min. Marco Aurélio, julgado este datado de 12/08/2009, considerou imprópria a mesclagem das leis nº 11.340/2006 e nº 9.099/95, oportunidade na qual decidiu quanto à oportunidade para renunciar à representação, que haveria de ser formalizada antes do oferecimento da denúncia, sob pena de preclusão, bem como, com clareza solar fala da impossibilidade da suspensão do curso da Ação Penal, nos seguintes termos:

A Sexta Turma do Superior Tribunal assentou não se aplicar aos crimes praticados contra a mulher, no âmbito doméstico e familiar, os ditames da Lei nº 9.099/1995, anotando estar expressa, no artigo 44 da Lei nº 11.340/2006, a proibição de utilização do procedimento dos Juizados Especiais nessa hipótese. Não fora isso, na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 19, discute-se a constitucionalidade do preceito no que envolvida a razoabilidade considerado o fato de, na maioria das vezes, ocorrendo a retratação, seguir-se violência contra a mulher em gradação maior. Em segundo lugar, não cabe distinguir onde o legislador não o fez. Com a regência especial referente à violência contra a mulher, predomina o critério específico, valendo notar que o artigo 41 da lei citada afasta, de forma linear, a aplicação da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. A clareza do dispositivo é de molde a não se diferenciar quanto a institutos da lei dos juizados especiais.

A intensidade, a freqüência e a gravidade dos delitos de violência doméstica e familiar contra a mulher, por si só desautorizam a aplicação da suspensão processual. Aliado a isto se observa que a suspensão em nada altera a potencialidade violenta do agressor, nem diminui a vulnerabilidade da vítima, não funciona como prática preventiva e não erradica a violência. Desatende ao objetivo da Lei nº 11.340/2006. Por estas razões e pelos argumentos técnicos apresentados, considero inaplicável a suspensão processual aos delitos desta natureza.


1)
Cf. Leis penais e processuais penais comentadas. São Paulo: RT, 2006.
2)
DIAS, Sandra Pereira Aparecida. Bem-vinda, Maria da Penha! Jus Vigilantibus, Vitória, 08 ago. 2006. Disponível em <http://jusvi.com/doutrinas_e_pecas/ver/22173>. Acesso em: 09 dez. 2008, p. 3.
3)
CAMPOS, Carmen Hein de. O discurso feminista criminalizante no Brasil: limites e possibilidades. Dissertação de mestrado. Florianópolis,1998. p. 91.
4)
NUNES, Apolinário, M.: “As penas alternativas entre o direito penal minimo e máximo” en Observatorio de la Economía Latinoamericana, Número 78, 2007.
5)
IZUMINO, Wânia Pasinato. Delegacias de defesa da mulher e juizados especiais criminais: contribuições para a consolidação de uma cidadania de gênero. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 10, n. 40, 2002, p.291.
6)
MELOSSI, Dario e PAVARINI, Massimo. Cárcel y Fábrica: los orígenes del sistema penitenciario, siglos XVI-XIX. 2. Ed. México: Siglo Veintiuno, 1985.
7)
Nunes, 2007.
8)
HERMANN, Leda. A dor que a lei esqueceu comentários à lei nº 9.099/95. São Paulo: Cel-Lex, 2000, p.128.
9)
Hermann, 2000.
10)
TELES, Maria Amélia de Almeida; MELO, Mônica de. O que é violência contra a mulher. São Paulo: Brasiliense, 2003. 120 p. 88.
11)
AMARAL, Cláudio do Prado. A Lei nº 9.099/95, a Política Criminal e a Violência Doméstica contra a Mulher. In: REALE JÚNIOR, Miguel e PASCHOAL, Janaína. Mulher e Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 120.
12)
HC 98880 / MS - MATO GROSSO DO SUL - HABEAS CORPUS - Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO - Julgamento: 12/08/2009 - DJe-160 DIVULG 25/08/2009.