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1.4. Direito humano à alimentação adequada e à segurança alimentar


“[…] o direito à alimentação adequada é indivisivelmente ligado à dignidade inerente à pessoa humana e é indispensável para a realização de outros direitos humanos consagrados na Carta de Direitos Humanos. Ele é também inseparável da justiça social, requerendo a adoção de políticas econômicas, ambientais e sociais, tanto no âmbito nacional como internacional, orientadas para a erradicação da pobreza e a realização de todos os direitos humanos para todos […]” 1).

O direito humano à alimentação adequada preceitua que todos os seres humanos nasceram com o direito a uma alimentação saudável, de fácil acesso, de qualidade, em quantidade suficiente e de modo permanente. Segundo os documentos oriundos da II Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (2004), em observância às definições internacionais, tem-se:

Segurança Alimentar e Nutricional é a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras da saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam social, econômica e ambientalmente sustentáveis.

O Direito Humano à alimentação adequada é alcançado quando todos os homens, mulheres e crianças, sozinhos, ou em comunidades com outros, têm acesso físico e econômico, em todos os momentos, à alimentação adequada, ou meios para sua obtenção. É importante destacar que o conceito de adequação refere-se às calorias, proteínas e outros nutrientes, mas também às condições sociais, econômicas, culturais, climáticas e ecológicas dentre outras”.

Esse direito possui duas dimensões complementares e indissociáveis: o direito de estar livre da fome e da má nutrição e o direito a uma alimentação adequada.

Dessa forma, não se limita a assegurar qualquer alimento para ingerir, é muito mais abrangente. Trata-se de garantia de uma alimentação diversificada, nutricionalmente adequada, isenta de contaminação, sem ser veiculada através de propagandas abusivas que imponham como necessidade de consumo alimentos pouco saudáveis, principalmente para crianças. O direito a alimentação adequada possui, ainda, um viés cultural, visto que os hábitos culturais das diferentes raças e etnias que vivem no território brasileiro devem ser observados na garantia desse direito.

Finalmente, engloba o direito de produzir o seu próprio alimento e de ter meios para alimentar-se satisfatoriamente. Assim, a promoção e a garantia do direito à alimentação adequada pressupõem a realização da reforma agrária, o apoio à agricultura familiar, a eficiência das políticas de abastecimento, a vigilância sanitária regular dos alimentos, a implementação da merenda escolar. Perpassa ainda pela garantia de um bom atendimento pré-natal, do aleitamento materno como alimento exclusivo da criança até seis meses de idade, de saneamento básico, de políticas de geração de empregos, entre outros aspectos.

No cenário internacional, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966) destaca a questão da alimentação:

“Art. 11 - 1. Os estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e para sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como uma melhoria contínua de suas condições de vida. Os Estados-partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento.
2. Os estados-partes no presente Pacto, reconhecendo o direito fundamental de toda pessoa de estar protegida contra a fome, adotarão, individualmente e mediante cooperação internacional, as medidas, inclusive programas concretos, que se façam necessários para:
a) Melhorar os métodos de produção, conservação e distribuição de gêneros alimentícios pela plena utilização dos conhecimentos técnicos e científicos, pela difusão de princípios de educação nutricional e pelo aperfeiçoamento ou reforma dos regimes agrários, de maneira que se assegurem a exploração e a utilização mais eficazes dos recursos naturais.
b) Assegurar uma repartição eqüitativa dos recursos alimentícios mundiais em relação às necessidades, levando-se em conta os problemas tanto dos países importadores quanto dos exportadores de gêneros alimentícios”.

O direito à alimentação adequada terá de ser realizado de maneira progressiva, mas os Estados têm a obrigação de implementar as ações necessárias para mitigar e aliviar a fome de forma imediata.

A realização progressiva do direito à alimentação adequada exige que os Estados estabeleçam planos e prazos para o cumprimento de suas obrigações, em virtude do direito internacional, relativas aos direitos humanos.


Segurança alimentar no Brasil e o Ministério Público


A Constituição de 1988, ao consagrar a dignidade da pessoa humana como um dos pilares no qual se constitui o Estado Democrático de Direito brasileiro, impõe como de observância obrigatória todos os direitos fundamentais necessários à realização plena do ser humano, entre eles a alimentação adequada e segura. Somem-se a esse preceito os objetivos precípuos da República Federativa do Brasil, conforme art. 3º da CF/88, de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e de promover o bem de todos, sem nenhum tipo de preconceito ou discriminação, e teremos as diretrizes constitucionais para a implementação desse direito humano.

O marco legal nacional é a Lei n° 11.346/06, que cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) visando a assegurar o direito humano à alimentação adequada. Pioneiramente na América Latina, o Estado de Minas Gerais editou a Lei n° 15.982/06 versando especificamente sobre a questão da segurança alimentar.

A Lei nº 15.982/06 estabelece 13 diretrizes, quais sejam:

Considerando a relevância da matéria e a crescente articulação da sociedade civil e Conselhos de Segurança Alimentar Nacional, Estaduais e Municipais, o Ministério Público vem participando das discussões que envolvem as políticas públicas de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável (SANS). Assim, o Ministério Público Estadual, através da ação integrada transversal das Promotorias de Direitos Humanos, Saúde, Conflitos Agrários, Infância e Juventude e Meio Ambiente, poderá atuar de forma a:


A legislação municipal como forma de limitação da monocultura bioenergética e garantia de segurança alimentar


Tema de especial relevância mundial no momento, a questão do biocombustível e seu impacto na questão alimentar tem reflexos diretos em nosso estado. Alguns municípios mineiros estão atentos à proliferação de monoculturas de matriz bioenergética (em especial a cana-de-açúcar), que pode desencadear nefastos efeitos ambientais e negativas conseqüências sociais. Outro efeito é a interferência na garantia da segurança alimentar.

De modo elucidativo, pode-se citar a atuação legislativa da Câmara Municipal de Sacramento com o fito de minimizar os efeitos danosos da expansão de tal cultura. O Município de Sacramento editou duas leis regulamentando o plantio da cana-de-açúcar, que se proliferou de forma acelerada na região. A Lei Municipal nº 1.008, de 2 de agosto de 2006, dispõe sobre a queima da palha da cana-de-açúcar, visando à eliminação gradual do emprego do fogo como método despalhador e facilitador do corte de tal cultura, em áreas passíveis de mecanização da colheita, e o regramento dessa prática. A Lei Municipal nº 1.009, de 8 de agosto de 2006, por sua vez, versa sobre o plantio de cana-de-açúcar, fixando o limite de 20% da extensão territorial total do Município para a monocultura bioenergética. Essa regulamentação legal se faz necessária porque em algumas regiões do Estado a monocultura da cana-de-açúcar aumentou demasiadamente, afetando diretamente a questão alimentar, social e ambiental.

Consequência de tal proliferação é a inevitável erradicação de culturas alimentares tradicionais da localidade, gerando o encarecimento e dificultando o acesso a gêneros alimentícios básicos, além de promover a migração de mão de obra em condições precárias de trabalho e subsistência, inclusive com a adoção de trabalho escravo, o que sobrecarrega a estrutura de assistência social e saúde dos municípios. Ademais, a queima da palha da cana-de-açúcar causa degradação ambiental e impactos na questão da reforma agrária.

Dessa forma, deve o Promotor de Justiça, ante tal quadro, avaliar a viabilidade junto ao Poder Legislativo municipal da implementação de legislação específica que regulamente a matéria, como forma de minimizar os efeitos danosos que a expansão desenfreada da monocultura de matriz bioenergética possa acarretar, atentando-se também para o cumprimento da função social da propriedade aplicada à ordem econômica (art. 170, III, da CF/88), bem como das propriedades rurais (art. 186 da CF/88).


1)
CDESC, 1999