1.7. A questão da violência arbitrária (art. 322 do Código Penal), do exercício arbitrário ou abuso de poder (art. 350 do Código Penal) e do abuso de autoridade (Lei nº 4.898/65)


Com o advento da Lei nº 4.898/65, em plena ditadura militar, que dispõe sobre o direito de representação e o processo de responsabilidade administrativa, civil e penal em relação à prática do delito de abuso de autoridade, surgiu a discussão acerca da possível revogação dos arts. 322 e 350 do Código Penal, uma vez que esta lei, em seu art. 3º, “i”, e art. 4º, “a”, “b”, “i”, teria englobado as condutas anteriormente disciplinadas.

De acordo com o Código Penal Brasileiro, o crime de violência arbitrária, tipificado em seu art. 322, consiste no uso indevido do status conferido a cargo ou função pública desempenhada para justificar atitude violenta. Já os atos de poder que resultem em restrição à liberdade individual sem amparo legal, ou sem obedecer às formalidades exigidas por lei, caracterizariam a figura do abuso de poder (art. 350 do CP).

A Lei nº 4.898/65, por sua vez, no art. 3º, dispõe que constitui abuso de autoridade qualquer atentado:

Em seu art. 4º, preceitua que constitui também abuso de autoridade:

No que tange à matéria, portanto, há posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais antagônicos sobre o tema.

De um lado, alguns defendem a revogação dos dispositivos do Código Penal pela Lei de Abuso de Autoridade, uma vez que esta traz disposições específicas sobre a matéria tratada, enquanto outros doutrinadores, embora admitam que em partes a matéria foi absorvida pela lei nova, sustentam que não há dispositivos que disponham sobre os incisos I, II e IV do parágrafo único do art. 350 do Código Penal. Já quanto ao art. 322, os doutrinadores que defendem a sua permanência entendem que a violência arbitrária consistiria num ato realizado sem nenhum respaldo legal, acobertada sob o pretexto da função que o agente desenvolve, enquanto o abuso de autoridade se caracterizaria pelo excesso durante o cumprimento de uma determinação legal, ou seja, uma ação que ultrapassa os limites do ato autorizado.

Nesse sentido, o Juiz Lauro Malheiros discorre que “o art. 322 do Código Penal não mais pode servir de suporte condenatório porque se acha revogado pela Lei nº 4.898/65. Trata-se de lei que regulou inteiramente a punição dos crimes de abuso de poder, classe a que pertence o denominado delito de violência arbitrária1)”.

Adota o mesmo posicionamento o penalista Damásio de Jesus:

“O art. 350 do CP, que define o crime de exercício arbitrário ou abuso de poder”, foi parcialmente revogado pelo art. 4º, da Lei nº 4.898/65. Trata-se de revogação tácita. O art. 2º, § 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil, diz que a lei posterior revoga a anterior quando regula inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. Assim, o caput e o n. III do art. 350 foram revogados pelas normas das alíneas 'a' e 'b' do art. 4º, permanecendo em vigor os demais incisos”2).

O STF se manifestou a favor da vigência do art. 322 do Código Penal, ao decidir que “o crime de violência arbitrário, previsto no art. 322 do Código Penal, não foi revogado pela Lei nº 4.898/65” (Supremo Tribunal Federal. RE. Relator Oswaldo Trigueiro. Rev. dos Tribunais. 449/504).

Também o Tribunal de Justiça de Minas Gerais tem julgado conforme essa linha doutrinária:

“EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL - PREVARICAÇÃO - PUNIBILIDADE EXTINTA - PECULATO - AUSÊNCIA DE PROVAS COLHIDAS EM JUÍZO - VIOLÊNCIA ARBITRÁRIA - DELITO DEVIDAMENTE ATESTADO - CONDENAÇÃO LANÇADA - RECOMENDAÇÃO FEITA. Constatando-se que a prescrição incide sobre um dos delitos imputados a um dos réus, tendo em conta a pena privativa máxima prevista na norma incriminadora, cumpre, desde logo, declarar a extinção da punibilidade de referida infração. Se a acusação pelo peculato é embasada somente em elementos do inquérito, havendo provas judiciais que os mitigam, impende solucionar a dúvida em favor dos indigitados. Devidamente atestada a VIOLÊNCIA empregada pelos Policiais Civis em ato de prisão ARBITRÁRIA, buscando os agentes obter a qualquer custo a confissão desejada, possível a condenação de todos eles nas iras do delito do art. 322 do CP, ainda vigente. Constatando-se que a condenação operada em segunda instância está fulminada pela prescrição retroativa da pretensão punitiva, com fulcro na pena aplicada, recomenda-se ao julgador primevo analisar a questão. Preliminar suscitada apelo parcialmente acolhido e recomendação feita. (Número do processo: 1.0027.96.003522-1/001(1). Relator: EDIWAL JOSÉ DE MORAIS. Data do Julgamento: 31/10/2007. Data da Publicação: 21/11/2007)”

»“EMENTA: A violência arbitrária, tipo do art. 322 do CP, é entendida como aquela ilegalidade do funcionário público que, violando o Direito da Administração Pública, age arbitrariamente, isto é, sem autorização de qualquer norma legal que lhe justifique a conduta, contra o cidadão, não está compreendida no ‘atentado à incolumidade física do indivíduo’, tipo inscrito no art. 3º, ‘i’, da Lei nº 4.898/65, norma referente ao abuso de autoridade ou exercício arbitrário de poder, pela qual o funcionário, ao executar sua atividade, excede-se no Poder Discricionário, que facultaria a escolha livre do método de execução, ou desvia, ou foge da sua finalidade, descrita na norma legal que autorizava o Ato Administrativo, ocorrendo aí uma lesão de direito que no campo penal toma forma de abuso de poder ou exercício arbitrário de poder. Precedentes do STF e TJMG. (TJMG.1ª C. Ap. 1.0024.98.085532-4/001. Rel. Sérgio Braga. pub. 23/11/2004)”

“EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO - VIOLÊNCIA ARBITRÁRIA - Delito que não se enquadra no rol das infrações de menor potencial ofensivo, previsto no parágrafo único do art. 2º da Lei nº 10.259/01 - Emendatio libelli - Momento processual - Sentença - art. 322 do CP - Revogação pela Lei nº 4.898/65 - Inocorrência - Precedentes do STF - O crime de VIOLÊNCIA ARBITRÁRIA previsto no art. 322 do CP não foi revogado pela Lei nº 4.898/65 - Conflito conhecido, dando-se pela competência do juízo suscitado (9ª Vara Criminal da Comarca de Belo Horizonte. Número do processo: 1.0000.04.415093-6/000(1). Relator: GUDESTEU BIBER. Data do Julgamento: 07/06/2005. Data da Publicação: 14/06/2005)”

Desse modo, nota-se que a jurisprudência utilizou a distinção entre as condutas tipificadas para delimitar a aplicação destas, incidindo, ainda, na discussão relativa à diferença da pena prevista em abstrato no art. 322 do Código Penal, que é maior do que a prevista na Lei de Abuso de Autoridade – Lei nº 4.898/65.


O crime do art. 209 do Código Penal Militar e a Lei de Abuso de Autoridade


É importante ressaltar que, por não estar tipificado no Código Penal Militar, o crime de abuso de autoridade é da competência da Justiça Comum. Contudo, o delito de lesão corporal dolosa praticada por militar é da competência da Justiça Especializada. Existindo a conexão entre ambos, aplica-se o preceito do art. 79, I, do CPP, que autoriza a separação e o desmembramento do processo. Portanto, não há que se falar em afronta ao princípio do ne bis in idem, já que se trata de infrações de natureza distinta com legislação específica e juízos distintos. Tal entendimento está sedimentado nas decisões jurisprudenciais do Supremo Tribunal Federal:

“EMENTA: HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. AÇÃO PENAL. TRANCAMENTO. ALEGAÇÃO DE DUPLICIDADE DE PROCESSOS SOBRE OS MESMOS FATOS. CRIMES DE NATUREZA COMUM E CASTRENSE. CUMPRIMENTO DE TRANSAÇÃO PENAL E EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE NA JUSTIÇA ESTADUAL. COISA JULGADA MATERIAL. PERSECUÇÃO PENAL NA JUSTIÇA MILITAR. PRINCÍPIO DO NE BIS IN IDEM: AUSÊNCIA DE PLAUSIBILIDADE JURÍDICA DOS FUNDAMENTOS APRESENTADOS. HABEAS CORPUS INDEFERIDO. 1. Eventual reconhecimento da coisa julgada ou da extinção da punibilidade do crime de abuso de autoridade na Justiça comum não teria o condão de impedir o processamento do Paciente na Justiça Castrense pelos crimes de lesão corporal leve e violação de domicílio. 2. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou entendimento no sentido de que, por não estar inserido no Código Penal Militar, o crime de abuso de autoridade seria da competência da Justiça comum, e os crimes de lesão corporal e de violação de domicílio, por estarem estabelecidos nos arts. 209 e 226 do Código Penal Militar seriam da competência da Justiça Castrense. Precedentes. 3. Ausência da plausibilidade jurídica dos fundamentos apresentados na inicial. 4. Habeas corpus indeferido. (HC 92912/RS. RIO GRANDE DO SUL. Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA. Julgamento: 20/11/2007. Órgão Julgador: Primeira Turma)”

Portanto, por serem as condutas disciplinadas por diplomas diferentes, cada qual designando competência e procedimento específico, não se pode considerar sensato que sejam avaliadas pelo mesmo juízo, ainda que derivadas de um mesmo ato, podendo ser consideradas em separado.


1)
MALHEIROS, Lauro. Tacrim-SP-Rec. Revista Tribunais, nº 436/410.
2)
JESUS, Damásio de. Do abuso de Autoridade. Revista Justitia. p. 59-48.