10.1. Evolução da tutela do patrimônio cultural no Brasil

O primeiro indício de preocupação governamental com a preservação do patrimônio cultural brasileiro data do ano de 1742, quando o então Vice-Rei do Brasil, André de Melo e Castro, Conde de Galveias, escreveu ao Governador de Pernambuco, Luis Pereira Freire de Andrade, ordenando a paralisação das obras de transformação do Palácio das Duas Torres, construído por Maurício de Nassau, em um quartel para as tropas locais, ocasião em que foi determinada a restauração do palácio.

Em âmbito penal, a primeira tipificação no ordenamento jurídico brasileiro que objetivou a tutela do patrimônio cultural – ainda que de forma tímida e indireta – adveio com o art. 178 do Código Criminal do Império (1830), que considerava criminosa a conduta consistente em “destruir, abater, mutilar ou danificar monumentos, edifícios, bens públicos ou quaisquer outros objetos destinados à utilidade, decoração ou recreio público, cominando pena de prisão com trabalho de dois meses a quatro anos e multa de vinte por cento do valor do dano”. O Código Penal Republicano (1890) repetiu a tipificação em seu art. 328. No âmbito cível, apesar do interesse de Dom Pedro II pelos estudos da História e das Artes, pouca evolução houve acerca da proteção ao patrimônio cultural brasileiro. Merece registro o Aviso de 13 de dezembro de 1855, expedido pelo Ministro do Império, Conselheiro Luiz Pedreira de Couto Ferraz, que transmitia ordens aos Presidentes das Províncias e ao Diretor das Obras Públicas da Corte para terem cuidados especiais na restauração dos monumentos, protegendo as inscrições neles gravadas.

Entretanto, somente em 1933 surgiu o primeiro diploma federal brasileiro que tratou do patrimônio cultural. Foi o Decreto nº 22.928, de 12 de julho daquele ano, que erigiu a cidade de Ouro Preto em Monumento Nacional.

Materializava-se finalmente, em um ato emanado do Governo Federal, o reconhecimento da obrigação estatal de preservar o patrimônio cultural brasileiro, uma vez que constava do decreto:

[…] considerando que é dever do Poder Público defender o patrimônio artístico da Nação e que fazem parte das tradições de um povo os lugares em que se realizaram os grandes feitos de sua história; considerando que a cidade de Ouro Preto, antiga Capital do Estado de Minas Gerais, foi teatro de acontecimentos de alto relevo histórico na formação de nossa nacionalidade e que possui velhos monumentos, edifícios e templos de arquitetura colonial, verdadeiras obras d'arte, que merecem defesa e conservação.

No ano seguinte, iniciou-se a organização de um serviço de proteção aos monumentos históricos e às obras de arte por meio do Decreto nº 24.735, que aprovou um novo regulamento para o Museu Histórico Nacional.

Mas o grande avanço se deu em 1934, com a consagração da proteção ao patrimônio cultural pela Constituição Federal promulgada em 16 de julho daquele ano. A novel Carta Magna instituiu a função social da propriedade como princípio constitucional (art. 133, inciso XVII) e estabeleceu o seguinte, em seu art. 134:

Os monumentos históricos, artísticos e naturais, assim como as paisagens ou locais particularmente dotados pela natureza, gozam de proteção e dos cuidados especiais da Nação, dos Estados e dos Municípios. Os atentados contra eles cometidos serão equiparados aos cometidos contra o patrimônio nacional. Em seu art. 10 dispunha ainda a Lex maxima: Compete concorrentemente à União e aos Estados: III – proteger as belezas naturais e os monumentos de valor histórico ou artístico, podendo impedir a saída de obras de arte.

As importantíssimas inovações constitucionais assentaram as bases para a criação de instrumentos legais capazes de garantir eficazmente a preservação do patrimônio cultural brasileiro.

Em 1935, durante o Primeiro Congresso Brasileiro de Proteção à Natureza, ocorrido no Rio de Janeiro, foi idealizada a criação de um serviço técnico especial de monumentos nacionais. O então Ministro da Educação, Gustavo Capanema, foi quem tomou a iniciativa de um projeto de lei federal referente ao assunto. Contando com a colaboração do historiador Luís Camilo de Oliveira Neto e com alusão às leis francesas e ao projeto de José Wanderley de Araújo Pinho, o Ministro encarregou o escritor Mário de Andrade, então diretor do Departamento de Cultura do Município de São Paulo, da elaboração de um plano de criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Em 13 de janeiro de 1937, por meio da Lei nº 378, que tratava da estrutura do Ministério da Educação, Getúlio Vargas criou o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, com o objetivo de promover no território nacional o tombamento, a conservação e a divulgação desse patrimônio. Para a direção do novel órgão de proteção foi escolhido o nome de Rodrigo Melo Franco de Andrade.

O projeto de lei sobre a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, elaborado por Mário de Andrade e por Rodrigo de Melo Franco Andrade, foi apresentado à Câmara dos Deputados em 15 de outubro de 1936, quando tramitou muito rapidamente, sendo aprovado e encaminhado ao Senado. No Senado, o texto foi aprovado com emendas e retornou à Câmara, sendo marcada a data de 10 de novembro de 1937 para a discussão final. Naquele mesmo dia, por ironia da História, um golpe de Estado dissolveu o Congresso e entrou em vigor a nova Constituição Federal, que, embora produto do autoritarismo, era mais eficaz na defesa do patrimônio cultural brasileiro.

Na Carta do Estado Novo, a matéria foi regulada pelo art. 134, nos seguintes termos:

Os monumentos históricos, artísticos e naturais, assim como as paisagens ou os locais particularmente dotados pela natureza, gozam da proteção e dos cuidados especiais da Nação, dos Estados e dos Municípios. Os atentados contra eles cometidos serão equiparados aos cometidos contra o patrimônio nacional.

Cumprindo a vontade constitucional, o Estado Novo editou, depois de apenas vinte dias de existência, o seu 25º Decreto-Lei, no dia 30 de novembro de 1937, organizando a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. O texto do decreto era praticamente uma cópia do projeto de Mário de Andrade, já aprovado na Câmara e no Senado1). Com a sua edição, o sistema jurídico brasileiro obteve um instrumento legal para a proteção do patrimônio cultural, batizado popularmente como Lei do Tombamento.

Apesar do produto final da Lei de Proteção ao Patrimônio Cultural ter-se materializado em um ato típico do autoritarismo (Decreto-Lei), ele passou por todo o procedimento democrático que antecede à sanção e à promulgação dos projetos de leis, e o seu conteúdo foi o resultado de trabalhos aprofundados e sérios de intelectuais e políticos comprometidos com a defesa da cultura brasileira.

Com o objetivo de assegurar maior efetividade aos comandos protetivos do Decreto-Lei nº 25/37, foi introduzido no Código Penal de 1940 um tipo penal que incriminava a destruição, deterioração ou alteração dolosa de bens tombados pela autoridade competente (art. 165).

O Decreto-Lei n° 3.866, de 21 de novembro de 1941, fruto nefasto do autoritarismo, dispôs sobre o cancelamento de tombamento de bens do patrimônio histórico e artístico nacional, sendo tal ato normativo duramente criticado por toda a doutrina especializada no assunto.

Findo o regime autoritário implantado pelo Estado Novo, a nova Constituição, promulgada em 1946, estabelecia, no art. 178, que os bens culturais da nação ficam sob proteção do poder público: “As obras, monumentos e documentos de valor histórico e artístico, bem como os monumentos naturais, as paisagens e os locais dotados de particular beleza ficam sob proteção do poder público”. Com essa disposição de natureza programática, houve um relativo retrocesso em relação à posição adotada pelo constituinte de 1937, que deu vigor à proteção dos bens integrantes do patrimônio cultural brasileiro, equiparando a crime contra o patrimônio nacional qualquer atentado em relação a tais valores.

Importantíssima inovação legislativa adveio no ano de 1961, com o então presidente Jânio Quadros, quando foi sancionada a Lei nº 3.924, de 26 de junho, dispondo sobre o nosso patrimônio arqueológico.

O texto desse diploma legal foi resultado dos trabalhos desenvolvidos por uma comissão formada por estudiosos do assunto, dentre os quais estavam Paulo Duarte (USP), José Loureiro Fernandes (Universidade do Paraná), Rodrigo Melo Franco de Andrade (IPHAN) e Benjamin Campos (Procuradoria do Ministério da Agricultura).

Em 1965, objetivando o controle da evasão dos bens móveis integrantes do patrimônio cultural brasileiro, houve a proibição da saída para o exterior de obras de arte produzidas no país até o fim do período monárquico, com a edição da Lei nº 4.845, de 19 de novembro de 1965.

A Carta Magna de 1967 reiterou a norma programática estabelecida em 1946, dispondo no Título II – que trata da família, da educação e da cultura – que o amparo a esta última deve ser dado pelo Estado. A Emenda de 1969 reproduziu os preceitos da Carta de 1967, alterando-se apenas a numeração dos dispositivos.

No ano de 1968, foi sancionada a Lei n° 5.471, que proibiu, sob qualquer forma, a exportação de livros antigos e conjuntos bibliográficos brasileiros editados entre os séculos XVI e XIX.

Em meados da década de 1970, no governo do General Ernesto Geisel, foi sancionada a Lei nº 6.292, de 15 de dezembro de 1975, que tornou o tombamento e seus cancelamentos dependentes da homologação do Ministério da Educação e Cultura.

No ano de 1988, com o advento da nova Carta Magna, alcançamos o mais alto degrau na evolução normativa de proteção ao patrimônio cultural brasileiro.

Como bem salientado por Carlos Frederico Marés, acerca das várias conquistas alcançadas com a nova ordem constitucional e dos desafios para se efetivar as determinações lançadas na Lex Magna:

A novidade mais importante trazida em 1988, sem dúvida, foi alterar o conceito de bens integrantes do patrimônio cultural passando a considerar que são aqueles portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Pela primeira vez no Brasil, foi reconhecida, em texto legal, a diversidade cultural brasileira, que em conseqüência passou a ser protegida e enaltecida, passando a ter relevância jurídica os valores populares, indígenas e afro-brasileiros. A tradição constitucional anterior, marcava como referência conceitual expressa a monumentalidade, ao abandonar esta referência. O que a Constituição atual deseja proteger não é o monumento, a grandiosidade de aparência, mas o íntimo valor da representatividade nacional, a essência da nacionalidade, a razão de ser da cidadania.

A inclusão de todos esses conceitos na nova Constituição brasileira não é apenas um avanço jurídico, no sentido de inovar na matéria constitucional, mas traz efetivas alterações nos conceitos jurídicos de proteção:

a) consolida o termo patrimônio cultural, que já era usado internacionalmente e estava consagrado na literatura brasileira, mesmo oficial, mas não na lei; b) cria formas novas de proteção, como o inventário, o registro, a vigilância; c) possibilita a inovação, pelo poder público, de outras formas de proteção ao patrimônio, além do tradicional tombamento e da desapropriação. Além disso, o texto constitucional, ele mesmo, declara tombados bens que considera relevantes para o patrimônio cultural brasileiro, como os documentos e sítios dos antigos quilombos.

Porém, para que todos esses dispositivos protecionistas sejam efetivamente aplicados, será necessário novo esforço legislativo. Apesar das leis em vigor não se chocarem diretamente com o texto constitucional, estão muito aquém de sua vontade e determinação. É necessário, p. ex., regulamentar o inventário, o registro e dar nova roupagem e dimensão ao tombamento, que ficou acanhado na configuração que lhe deu o legislador em 1937.2)

Atendendo à real necessidade de reformulação da proteção do patrimônio ambiental brasileiro, foi promulgada, em 12 de fevereiro de 1998, a Lei nº 9.605/98, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente e dá outras providências. No referido diploma legal, a Seção IV do Capítulo V é dedicada aos crimes contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural, dispostos nos arts. 62 a 65.

A nova Lei de Crimes Ambientais tem sido considerada como um marco de eficiência no aparato legislativo brasileiro de proteção ao meio ambiente. Especificamente, no que tange aos delitos contra o patrimônio cultural, estão atualmente tipificadas condutas culposas violadoras de tal bem jurídico e já não há necessidade de prévio tombamento para viabilizar a tutela penal.

Ademais, o art. 3º da Lei nº 9.605/98 atribuiu expressamente responsabilidade penal à pessoa jurídica pelos crimes contra o meio ambiente, no qual se inclui o chamado meio ambiente cultural.

Outra conquista legislativa adveio com a edição do Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000, que instituiu o registro de bens culturais de natureza imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro e criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, promovendo a proteção dos bens culturais de natureza intangível e resgatando uma dívida histórica com os bens culturais imateriais, como saberes, celebrações, expressões, que resguardam os cantos, lendas, hábitos, festas, rituais e outras práticas populares.

Por último, a Lei nº 10.257/2001 trouxe ao nosso ordenamento jurídico o Estatuto da Cidade, que estabeleceu normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, do equilíbrio ambiental, da segurança e do bem-estar dos cidadãos. Em seu art. 2º, o Estatuto definiu dezesseis postulados orientadores da política urbanística, sendo prevista como uma delas, no inciso XII, a “proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico”. Por outro lado, a administração passou a contar também com novos e valiosos instrumentos de acautelamento, proteção e preservação do patrimônio cultural (estudo de impacto de vizinhança, transferência do direito de construir, direito de preempção, etc.) que reforçaram, em nível nacional, o rol daqueles já tradicionais e previstos de forma exemplificativa na Constituição Federal vigente (art. 216, § 1°).


1)
MARÉS, Carlos Frederico. p. 22.
2)
Op. cit, p. 23.