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10.2. Princípios informadores da tutela do patrimônio cultural

Princípio da proteção

A proteção do patrimônio cultural é uma obrigação imposta ao poder público, com a colaboração da comunidade, por força do que dispõe a Constituição Federal em seus arts. 216, § 1o, e 23, III e IV. Dessa forma, a ação protetiva do patrimônio cultural não se trata de mera opção ou de faculdade discricionária do poder público, mas de imposição cogente, que obriga juridicamente todos os entes federativos.

Em decorrência, podemos falar no subprincípio da intervenção obrigatória do poder público em prol da proteção, preservação e promoção do patrimônio cultural, uma vez que, havendo necessidade de ação do poder público para assegurar a integridade de bens culturais, esta deve dar-se de imediato, sob pena de responsabilização1). Ressalte-se que a atuação do poder público nessa área deve ocorrer tanto no âmbito administrativo, quanto no âmbito legislativo, e até no judiciário, uma vez que cabe ao Estado a adoção e a execução das políticas e programas de ação necessários à proteção do patrimônio cultural.

Princípio da função sociocultural da propriedade

A nossa Constituição Federal estabelece no art. 5º, XXIII, que a propriedade atenderá a sua função social. É ainda a Carta Magna que estatui como princípio norteador da ordem econômica (que tem por fim assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social) a função social da propriedade (art. 170, III).

Como a Carta Magna impôs tanto ao poder público quanto à comunidade o dever de preservar o patrimônio cultural (art. 216, § 1º), evidente que os proprietários de bens culturais não podem exercer ilimitadamente o seu direito de propriedade, causando danos a esses bens, uma vez que, sendo bens de interesse público, estão sujeitos a um regime jurídico próprio.

Assim, os proprietários de bens culturais devem exercer o direito sobre eles não unicamente em seu próprio e exclusivo interesse, mas em benefício da coletividade, observando-se todo o regramento constitucional e legal sobre a proteção do patrimônio cultural. É precisamente o cumprimento da função social que legitima o exercício do direito de propriedade pelo titular. Para alcançar a função social, ambiental e cultural da propriedade, pode o poder público valer até mesmo de instrumentos que imponham ao proprietário comportamentos positivos (e não meramente de abstenção), a fim de que a propriedade se concilie concretamente com a preservação do meio ambiente cultural.

Princípio da fruição coletiva

Este princípio decorre diretamente do art. 215, caput, da Constituição Federal, que dispõe: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”. Como os bens culturais são, à evidência, fontes de cultura, o acesso ao conhecimento deles deve ser assegurado à coletividade, não se podendo dispensar a eles o mesmo tratamento dado aos bens não culturais.

O alcance do princípio da fruição coletiva dos bens culturais está bem sintetizado na Conclusão de nº 06 da Carta de Santos, assim lavrada:

O pleno exercício dos direitos de cidadania relacionados à fruição do patrimônio cultural só se torna efetivo se as medidas adotadas para a identificação, pesquisa, registro, proteção, conservação e preservação dos bens e manifestações de valor cultural assegurem a ampla e pública divulgação das medidas adotadas e do valor cultural dos referidos bens e manifestações, bem como o acesso público, às presentes e futuras gerações.

Princípio da prevenção de danos

A prevenção de danos ao patrimônio cultural é uma das mais importantes imposições no que tange à matéria sob análise. É de lembrar que nosso legislador constituinte estatuiu que meras ameaças (e não necessariamente danos) ao patrimônio cultural devem ser punidas na forma da lei (art. 216, § 4º); ou seja, em termos de patrimônio cultural, nosso ordenamento está orientado para uma posição de caráter fundamentalmente preventivo, voltado para o momento anterior à consumação do dano – o do mero risco.

Diante da pouca valia da mera reparação, sempre incerta e, quando possível, na maioria das vezes excessivamente onerosa, a prevenção de danos ao patrimônio cultural é a melhor solução, quando não a única, ante a dificuldade de retornar ao status quo de bens dotados de especial valor, representando sua degradação ou desaparecimento um empobrecimento imensurável do patrimônio de toda a humanidade.

Por isso, a proteção do meio ambiente cultural deve ser eficaz e temporalmente adequada.

Princípio da responsabilização

O princípio da responsabilização decorre do que dispõe a Constituição Federal em seu art. 225, § 3º, verbis:

As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

A ampla responsabilidade pelos danos causados ao patrimônio cultural está relacionada com a autonomia e independência entre os três sistemas existentes: civil, administrativo e criminal, de forma que um mesmo ato de ofensa a tal bem jurídico pode e deve acarretar responsabilização, de forma simultânea e cumulativa, nas três esferas, nos exatos termos do que determina a nossa Constituição Federal.

Princípio do equilíbrio

Por força desse princípio, é necessário criar os meios adequados para assegurar a integração das políticas de crescimento econômico e social e de conservação do patrimônio cultural, tendo-se como finalidade o desenvolvimento integrado, harmônico e sustentável.

Não há dúvida de que o desenvolvimento econômico é um valor precioso da sociedade, mas ele deve coexistir com a preservação do meio ambiente cultural, de forma que aquele não implique a anulação deste. Ou seja, é preciso encontrar um ponto de equilíbrio, para que o desenvolvimento atenda às necessidades do presente sem comprometer os direitos das gerações vindouras.

O princípio da participação comunitária na proteção do patrimônio cultural expressa a idéia de que, para a resolução dos problemas atinentes a tal área, deve-se dar especial ênfase à cooperação entre o Estado e a sociedade, pela participação dos diferentes grupos sociais na formulação e na execução da política de preservação dos bens culturais.

As Normas de Quito sobre conservação e utilização de monumentos e lugares de interesse histórico e artístico, editadas em 1967, após reunião da Organização dos Estados Americanos, já prenunciavam o seguinte:

Do seio de cada comunidade pode e deve surgir a voz de alarme e ação vigilante e preventiva. O estímulo a agrupamentos cívicos de defesa do patrimônio, qualquer que seja sua denominação e composição, tem dado excelentes resultados, especialmente em localidades que não dispõem ainda de diretrizes urbanísticas e onde a ação protetora em nível nacional é débil ou nem sempre eficaz.

Os novos tempos mostram efetivamente que o Estado, por si só, na maioria das vezes não tem condições de atuar de maneira pronta e eficaz para a satisfação de todos os anseios públicos. Daí a nova tendência constitucional de incentivar a participação da sociedade na definição e execução de medidas que visam à melhoria da condição de vida da própria população.

Princípio da vinculação dos bens culturais

Este princípio tem assento constitucional e decorre do disposto no art. 23, IV, da vigente Carta Magna, que estatui ser competência comum da União, do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios impedir a evasão de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural.

Quis o legislador constituinte, portanto, que o poder público adotasse as medidas cabíveis para assegurar a mantença de tais bens em suas origens, tendo em vista o seu elevado significado para a memória e a identidade de nosso povo.

Como decorrência deste princípio, os bens culturais brasileiros devem ser mantidos no país, ressalvada a saída temporária para o exterior com o objetivo de intercâmbio científico ou cultural. Nesse mesmo sentido, vejam-se o Decreto-Lei nº 25/37 (art. 14), as Leis n° 3.924/61 (art. 20), n° 4.845/65 (arts. 1° a 5°) e n° 5.471/68 (arts. 1° a 3°).

Princípio da educação patrimonial

A educação patrimonial decorre do princípio da participação comunitária na preservação do patrimônio cultural, acima já estudado, além de ser uma imposição constitucional expressa (art. 225, VI, CF/88).

A educação patrimonial consiste em um processo de trabalho educacional centrado no patrimônio cultural como fonte de conhecimento. O termo é uma tradução da expressão inglesa heritage education, que surgiu no contexto de programas educativos realizados por museus, principalmente, e foi posteriormente incorporada por diversas instituições educacionais e culturais.

Na profícua Carta de Goiânia, assim ficou consignado na Conclusão de nº 04:

Só por meio da educação é possível mudar valores e incluir a preservação do Patrimônio Cultural na rotina de vida dos cidadãos. É preciso que as instituições de cultura, educação e a sociedade em geral incluam a educação sobre o patrimônio em seus projetos.

Princípio da solidariedade intergeracional

A nossa Constituição Federal dispõe que é dever do poder público e da coletividade a proteção do meio ambiente para as presentes e futuras gerações (art. 225, caput).

Sendo certo que os bens que integram o patrimônio cultural estão incluídos entre os bens ambientais, em seu sentido amplo, impõe-se-lhes a defesa com vistas às gerações vindouras, já que são de fundamental importância para a sadia qualidade de vida e para a dignidade da pessoa humana.

Assim, podemos afirmar que as gerações atuais têm a responsabilidade de cuidar para que as necessidades e os interesses das gerações futuras, no que tange ao acesso e à fruição sadia e adequada dos bens culturais, sejam plenamente salvaguardados.

Princípio da cooperação internacional

A Constituição Federal do Brasil, em seu art. 4º, IX, estabelece como princípio nas suas relações internacionais a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade.

No que se refere ao meio ambiente cultural, é incontroverso que a resolução de inúmeras situações de violação aos bens que o integram deve passar pelo concurso de diversos países e pelo suporte de organizações internacionais especializadas, mormente porque a proteção desse patrimônio em escala nacional é freqüentemente incompleta, em razão da magnitude dos meios de que necessita e da insuficiência de recursos econômicos, científicos e técnicos do país em cujo território se encontra o bem a ser protegido.

A cooperação deve ser realizada como uma política solidária dos diversos países, dada a necessidade intergeracional de proteção dos bens ambientais de valor cultural.


1)
Na Carta de Goiânia, a Conclusão de nº 34 sintetizou: “É vinculada, e não discricionária, a atividade do Poder Público na proteção, preservação e promoção do Patrimônio Cultural, sob pena de responsabilização”.