2.3. Atuação na área penal

Considerações

A construção e a consolidação de uma sociedade democrática passam, necessariamente, por mudanças nos paradigmas econômicos correntes, notadamente quando a concentração da renda impinge significativa exclusão social. Constata-se que o compromisso pactuado no texto constitucional não tem logrado êxito finalístico, conduzindo a movimentações sociais de luta e tensão para a efetivação das diretrizes constitucionais, em especial as que se referem ao princípio da dignidade da pessoa humana. Nesse talante, há que ser destacado o papel dos movimentos sociais de trabalhadores rurais, que, em regra, buscam a concretização dos mandamentos constitucionais em franco embate contra a estrutura fundiária e a sublimação do alcunhado agronegócio.

Com efeito, alastram-se os chamados conflitos agrários, com reflexos, inclusive, na área urbana, cuja abordagem na seara civil já vem recebendo a impositiva formatação constitucional. Na esfera penal, urge enfrentarmos o desafio de conciliar os consectários gravosos da ordem repressiva penal com a correta exegese dos fatos atribuídos aos membros e às lideranças dos movimentos sociais ligados à terra, submetendo-os imperiosamente ao Pacto Social Supremo, como qualquer processo interpretativo do direito objetivo. Nesse prisma, cogente se perfaz o enfrentamento da questão da penalização de tais ações individuais e coletivas, quando viabilizadoras dos princípios, direitos e garantias fundamentais, inexoravelmente postergados pelo Estado brasileiro por séculos e ainda sob a vigência da Constituição Cidadã de 1988. O aparente conflito entre as normas pertinentes à proteção do patrimônio e aquelas relativas ao princípio da dignidade humana deve ser dirimido, sobretudo, com a superação da intolerância e da discriminação, com a compatibilização entre os diversos regramentos do ordenamento jurídico sistematizado, com a exclusão da norma incompatível, em especial, com o ordenamento constitucional. Nesse sentido, o Direito penal deve ater-se às questões com pertinência e razoabilidade, ao ajustar a conduta à tipificação formal, sem esquecer-se da análise da tipicidade material, valorando a importância do bem-jurídico na situação concreta, para a consecução de seus nobres e relevantes objetivos. Assim, rechaçará a pecha de que sua finalidade precípua é a de manter o que está posto, abstraindo-se dos influxos sociais pulsantes e de conhecimento notório.

A propósito, lúcidas as lições de Luiz Roberto Barroso:

[…] o princípio da dignidade da pessoa humana identifica um espaço de integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua existência no mundo. É um respeito à criação, independentemente da crença que se professe quanto à sua origem. A dignidade relaciona-se tanto com a liberdade e valores do espírito como com as condições materiais de subsistência. o desrespeito a este princípio terá sido um dos estigmas do século que se encerrou e a luta por sua afirmação como o símbolo de um novo tempo. Ele representa a superação da intolerância, da discriminação, da exclusão social, da violência, da incapacidade de aceitar o outro, o diferente, na plenitude de sua liberdade de ser, pensar e criar.1)

Assim, o Direito penal não pode ser visto como simples exercício de aplicação de penas a infratores, a que mantenha a ordem posta e não é instrumento do que está ditado. A fome não faz de famintos, criminosos, na precisa abordagem de Cláudio Fontelles.2)



1)
BARROSO, Luiz Roberto.Fundamentos Teóricos e Filosóficos do novo Direito Constitucional Brasileiro. PIP, nº 11, set./2001. p. 67.
2)
ONTELLES, Cláudio. As Ocupações de Terras e o Direito Penal. In: A questão agrária e a justiça. São Paulo: RT, 2000. p. 12 e segs.