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2.3.1. Atipicidade nas condutas de ocupação

Na esfera penal dos conflitos possessórios, o direito seletivo tem encontrado vasto campo de atuação, impondo-se como instrumento de sobreposição do poder econômico, apresentando-se, portanto, como uma das perversas faces da violência. Aos trabalhadores rurais, no exercício da cidadania de chamar a atenção do Estado para a necessidade de concretização da reforma agrária, têm sido imputados, em regra, os seguintes fatos formalmente típicos:

• violação de domicílio – art. 150, CP;
• alteração de limites – art. 161,caput, CP;
• esbulho possessório – art. 161, II, CP;
• dano – art. 163, CP;
• apologia de crime ou criminoso – art. 287, CP;
• quadrilha ou bando – art. 288, CP;
• resistência – art. 329, CP;
• desobediência – art. 330, CP;
• exercício arbitrário das próprias razões – art. 345, CP;
• delito descrito no art. 20, caput, da Lei nº 4.947/66.

Entretanto, hoje não poucos têm se manifestado pela atipicidade de tais condutas, embasados em significativos pronunciamentos doutrinários e jurisprudenciais.

Oportuno colacionarmos adiante trechos das brilhantes razões de arquivamento – confirmadas pela Procuradoria-Geral de Justiça – formuladas pelos cultos Promotores de Justiça de Defesa dos Direitos Humanos, Apoio Comunitário e Conflitos Agrários da Capital, no emblemático inquérito policial (0093.03.003006-3), Comarca de Buritis/MG, instaurado em face da ocupação da Fazenda do então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, no ano de 2002, os quais foram agraciados com o prêmio de melhor arrazoado forense, oferecido pela Associação Mineira do Ministério Público. A saber:

O que se extrai dos autos e dos objetivos do movimento social agrário ao qual pertencem os Denunciados (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), a ocupação teve por finalidade pressionar o governo a implementar programa de reforma agrária previsto na Constituição Federal (Título VII, Capítulo III), o que, como de conhecimento comum, constitui fim lícito e legítimo, expressão do direito de cidadania, conforme anunciado em alguns votos do Ministro Luís Vicente Cernicchiaro, no Superior Tribunal de Justiça, cujos trechos serão adiante transcritos.

Não bastasse, como de há muito é público e notório, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, ao contrário do que é veiculado pela chamada imprensa chapa-branca,1) é um movimento social agrário, de caráter nacional, que tem por finalidade, em apertada síntese, melhorar as condições de vida de todos os brasileiros, minorando as diferenças socioeconômicas e promovendo a justiça social, o que, segundo acreditam, será possível através da reforma agrária. Para atingir esse fim, o movimento tem, como forma de luta mais importante, a ocupação pacífica de terras que não atendam integralmente a função social (CF/88, art. 186). Cediço também que a reforma agrária só avançará se houver mobilizações massivas, com ocupações, com a luta direta, com a ação das massas. A propósito, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, quando ainda atento sociólogo, ensinava, de forma inesquecível, que as transformações políticas dependem da rotinização das lutas: “a ativação da sociedade urbano-industrial requer, mais do que nada, a substituição da ideologia do compromisso por outra que rotinize o conflito e permita legitimar socialmente a idéia de que sem movimento, luta e tensão será impossível fazer uma genuína transformação política”.2)

De uma análise mais aprofundada e isenta do MST, importante ressaltar que, como movimento que pretende profunda transformação social, sua luta não acaba com a conquista da terra. Daí se constata a preocupação do movimento no setor de produção, com o desenvolvimento da cooperação agrícola; no setor de educação, com a formação de professores, a realização de programas de alfabetização, criação de escolas; no setor de direitos humanos, etc. Em última análise, infere-se com clareza solar a real pretensão do MST, qual seja:

[…] é a efetivação das diretrizes constitucionais, em atenção ainda aos princípios da dignidade humana e da cidadania, fundamentos da República (art. 1º, II e II, da Constituição), e aos seus objetivos fundamentais, tal como traçado no Texto Constitucional: construir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem discriminações (art. 3º, I, III, e IV).3) E por ser legal, legítima e indispensável ao fortalecimento da própria democracia, sua atuação é reconhecida, inclusive internacionalmente, tendo o MST sido agraciado com o Prêmio Nobel Alternativo, concedido pela Fundação The Rigtt Livelihood Awards, da Suécia, no Parlamento Sueco, em Estocolmo, em 9/12/91, por sua visão e trabalho que contribuiu para fazer a vida mais plena, dignificando nosso planeta e elevando a humanidade; com o Prêmio Internacional Rei Balduíno Para o Desenvolvimento 1996, concedido pelo Rei da Bélgica pelo papel essencial que esta associação desempenhou na execução da reforma agrária, permitindo, assim, através do regresso à terra, incentivar os mais desfavorecidos dos Brasileiros, dando-lhes um novo projeto de vida e uma dignidade recuperada.

Com o Prêmio Alceu Amoroso Lima na área de Direitos Humanos, concedido pelo Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade, da Universidade Cândido Mendes (RJ) ao Setor de Educação do MST, em 16/08/1999; com o Prêmio Itaú-Unicef de Educação e Participação (2º lugar), em 11/12/1995, pelo programa de educação desenvolvido nos assentamentos da reforma agrária.

Com o Prêmio Paulo Freire de Compromisso Social, concedido pelo Conselho Federal de Psicologia de São Paulo, em 5/10/2000; entre outros “[…] Movimento popular visando a implantar a reforma agrária não caracteriza crime contra o patrimônio. Configura direito coletivo, expressão da cidadania, visando a implantar programa constante da Constituição da República” (Habeas Corpus nº 5.574/SP. Rel. Ministro William Patterson. Julgamento em 8 de abril de 1997).

Do brilhante voto do ilustre Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, extraímos:

A Constituição da República dedica o Capítulo III, do Título VII, à Política Agrícola e Fundiária e à Reforma Agrária. Configura, portanto, obrigação do Estado. Correspondentemente, direito público, subjetivo de exigência de sua concretização.

Na ampla arca dos Direitos de Cidadania, situa-se o direito de reivindicar a realização dos princípios e normas constitucionais.

A Carta Política não é mero conjunto de intenções. De um lado, expressa o perfil político da sociedade, de outro gera direitos.

É, pois, direito reclamar a implantação da reforma agrária. Legítima a pressão aos órgãos competentes para que aconteça, manifeste-se historicamente.

Reivindicar, por reivindicar, insista-se é direito. O Estado não pode impedi-lo.O modus faciendi, sem dúvida, também é relevante. Urge, contudo, não olvidar o princípio da proporcionalidade tão ao gosto dos doutrinadores alemães.

A postulação da reforma agrária, manifestei, em Habeas Corpus anterior, não pode ser confundida, identificada com o esbulho possessório, ou a alteração de limites. Não se volta para usurpar a propriedade alheia. A finalidade é outra. Ajusta-se ao Direito. Sabido, dispensa prova, por notório, o Estado há anos vem remetendo a implantação da reforma agrária.

Os conflitos resultantes, evidente, precisam ser dimensionados na devida expressão. Insista-se. Não se está diante de crimes contra o patrimônio. Indispensável a sensibilidade do Magistrado para não colocar, no mesmo diapasão, situações jurídicas distintas.

No Habeas Corpus nº 4.399-SP (STJ, 6ª Turma. Relator Ministro William Patterson. Julgamento em 12/03/1996), o Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro já manifestara entendimento no mesmo sentido, como se vê de parte de seu voto:

O r. despacho de prisão preventiva, com fundamentação alentada, projeta uma realidade social. Divisou, na conduta da paciente a insubordinação às regras jurídicas. Do ponto de vista formal, isto acontece. Não, entretanto a configuração do esbulho possessório, ou de alteração de limites. O fato precisa ser analisado em seu contexto, coordenado à sua motivação. Aceito as considerações do MM. Juiz de Direito, encampadas pelo v. acórdão. Todavia, com o devido respeito, confiro-lhes configuração jurídica diferente. Invoque-se a Constituição da República, especificamente o Título VII – Da Ordem Econômica e Financeira – cujo Capítulo II registra como programa a ser cumprido a Reforma Agrária (art. 184 usque 191).

Evidente, essa norma tem destinatário. E como destinatário, titular do direito (pelo menos – interesse) à concretização da mencionada reforma.

A demora (justificada, ou injustificada) da implantação gera reações, nem sempre cativas à extensão da norma jurídica.

A conduta do agente do esbulho possessório é substancialmente distinta da conduta da pessoa com interesse na reforma agrária.

Atualmente, a culpabilidade é cada vez mais invocada na Teoria Geral do Delito. A sua intensidade pode, inclusive, impedir a caracterização da infração penal.

No esbulho possessório, o agente dolosamente, investe contra a propriedade alheia, a fim de usufruir um de seus atributos (uso) ou alterar os limites do domínio para enriquecimento sem justa causa. No caso dos autos, ao contrário, diviso pressão social para concretização de um direito (pelo menos – interesse).

No primeiro caso, contraste de legalidade compreende aspectos material e formal.

No segundo, substancialmente, não há ilícito algum. Formalmente, e é só nesse nível, poder-se-á debater o modus faciendi. Esse debate tem seu foro próprio no julgamento do mérito da causa.

Aqui, e por ora, incumbe analisar o direito reclamado, qual seja de os Pacientes continuarem em liberdade.
A ordem pública precisa ser recebida no contexto histórico. E também assim o modo de atuação das pessoas.

É certo, evidente, se a lei (formalmente) é igual para todos, nem todos são iguais perante as leis.

Sabe-se, as chamadas classes sociais menos favorecidas não têm acesso político ao governo, a fim de conseguir preferência na implantação de programa posto na Constituição da República.

Quadrilha ou bando, a teor do disposto no art. 288 Código Penal é delito que visa a prática de crimes.

Ordem pública, clamor público precisam ser recebidos com cautela. Podem ser gerados artificialmente, para dar a idéia de inquietação na sociedade.

Clamor público, ademais, não se confunde com reações (às vezes organizadas) de proprietários de áreas que possam vir a ser desapropriadas pela reforma agrária.

[…] Vejo a necessidade de reforma no referido despacho. Não vislumbro, substancialmente – não obstante o aspecto formal do respeitável despacho de prisão preventiva -, no caso concreto, demonstração de existência de crime de quadrilha ou bando, ou seja, infração penal em que se reúnem três ou mais pessoas com a finalidade de cometer crimes. Pode haver, do ponto de vista formal, diante do direito posto, insubordinação materialmente, entretanto, a ideologia da conduta não se dirige a perturbar, por perturbar a propriedade. Há sentido, finalidade diferente. Revela sentido amplo, socialmente de maior grandeza, qual seja a implantação da reforma agrária. Infelizmente, presos aos limites processuais – volto a dizer – sinto-me jungido, exclusivamente, a apreciar a negativa de liminar.

Violação de domicílio – Art. 150, CP

Violação de domicílio:

Art. 150 - Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências:
Pena - detenção, de um a três meses, ou multa.
§ 1º - Se o crime é cometido durante a noite, ou em lugar ermo, ou com o emprego de violência ou de arma, ou por duas ou mais pessoas:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, além da pena correspondente à violência.
§ 2º - Aumenta-se a pena de um terço, se o fato é cometido por funcionário público, fora dos casos legais, ou com inobservância das formalidades estabelecidas em lei, ou com abuso do poder.
§ 3º - Não constitui crime a entrada ou permanência em casa alheia ou em suas dependências:
I - durante o dia, com observância das formalidades legais, para efetuar prisão ou outra diligência;
II - a qualquer hora do dia ou da noite, quando algum crime está sendo ali praticado ou na iminência de o ser.
§ 4º - A expressão casa compreende:
I - qualquer compartimento habitado;
II - aposento ocupado de habitação coletiva;
III - compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.
§ 5º - Não se compreendem na expressão casa:
I - hospedaria, estalagem ou qualquer outra habitação coletiva, enquanto aberta, salvo a restrição do nº II do parágrafo anterior;
II - taverna, casa de jogo e outras do mesmo gênero.

De plano, é de ver-se que o próprio legislador penal, no § 4º do art. 150 do Código Penal, tomou como critério definidor de casa a habitação de qualquer compartimento, a ocupação de aposento de habitação coletiva e o “exercício” de profissão ou atividade em compartimento não aberto ao público, indicando que a intimidade protegida por esse preceptivo legal, que se encontra no Capítulo IV do Código Penal – e cuja objetividade jurídica é a liberdade individual e não a propriedade-, se estabelece pela efetiva relação entre a pessoa e determinado espaço, a qual não se garante pela mera propriedade. Daí já ter a jurisprudência penal, de modo iterado, decidido que: “A incriminação da violação do domicílio visa à proteção da moradia, e não o direito de propriedade, eis que é o interesse do Estado em garantir a liberdade individual, ou seja, o interesse reconhecido de cada um viver livre de qualquer intromissão em sua casa ou lar” (TACRIM-SP. AC. Rel. José Habice. RJD 8/168). No mesmo sentido: TACRIM-SP. AC. Rel. Azevedo Franceschini. JUTACRIM 1/48.

A sede da propriedade rural deve ser habitada por seus proprietários ou ser o local onde estes efetivamente exerçam suas atividades profissionais, de modo que se viole a intimidade. De todo modo, a prevalecer o equívoco de se achar que a mera propriedade faz presumir a relação de intimidade nascida da relação com o espaço, ter-se-ia que admitir que os mais abastados têm mais intimidade do que os menos aquinhoados, sendo certo que a intimidade é uma promanação da personalidade dos seres humanos, que são iguais perante a lei. Aliás, ainda no sentido de que a ocupação de propriedades rurais não configura o crime de violação de domicílio, já decidiram nossos tribunais: A propriedade rural não está compreendida no conceito de domicílio, por mais amplo que se considere (TACRIM-SP. HC. Rel. Reis Freire. RT 516/357).

Alteração de limites – Art. 161, CP

Alteração de limites:

Art. 161 - Suprimir ou deslocar tapume, marco, ou qualquer outro sinal indicativo de linha divisória, para apropriar-se, no todo ou em parte, de coisa imóvel alheia: Pena - detenção, de um a seis meses, e multa.

Para Roberto Delmanto Júnior, o delito em testilha:

[…] exige, para a sua configuração, o dolo, isto é, a vontade livre e consciente de suprimir e deslocar tapume, marco ou qualquer outro sinal de linha divisória, acrescido do seguinte elemento subjetivo expressamente exigido pelo tipo: para apropriar-se, no todo ou em parte, de coisa imóvel alheia. Na atividade de ocupação de terras rurais, os trabalhadores […] de forma alguma pretendem tomá-la para si… mas, sim de forçar o Governo a desapropriá-la, pagando a devida indenização, de acordo com o preconizado nos arts. 184 a 191, da Constituição da República, não há que se falar em ilícito penal contra a propriedade, muito embora possa restar configurado ilícito civil pela turbação ou esbulho… Por outro lado, é importante não confundir essa atividade com a atuação dos chamados grileiros, muitas vezes a mando de terceiros que invadem terras, inclusive do Estado, aí sim, para apoderar-se delas, perpetrando um verdadeiro crime contra a propriedade.4)

Esbulho possessório – Art. 161, § 1º, II, CP

Esbulho possessório:

II - invade, com violência a pessoa ou grave ameaça, ou mediante concurso de mais de duas pessoas, terreno ou edifício alheio, para o fim de esbulho possessório.
§ 2º Se o agente usa de violência, incorre também na pena a esta cominada.
§ 3º Se a propriedade é particular, e não há emprego de violência, somente se procede mediante queixa.

Esse tipo penal constitui-se no mais comum na obtusa tentativa de marginalizar os trabalhadores rurais sem terra, daí, por conseguinte, haver inúmeros pronunciamentos doutrinários e jurisprudenciais quanto à atipicidade das condutas de ocupações, fundados, basicamente, na inexistência de elemento subjetivo do tipo, ou seja, intuito de esbulho, despojamento da posse ou desapossamento, com fins de enriquecimento ilícito, uma vez que imbuídos da intenção de pressionar o Estado para a realização da reforma agrária.5)

Dano – Art. 163, CP

Dano:

Art. 163 - Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
Dano qualificado
Parágrafo único - Se o crime é cometido:
I - com violência à pessoa ou grave ameaça;
II - com emprego de substância inflamável ou explosiva, se o fato não constitui crime mais grave;
III - contra o patrimônio da União, Estado, Município, empresa concessionária de serviços públicos ou sociedade de economia mista;
IV - por motivo egoístico ou com prejuízo considerável para a vítima:
Pena - detenção, de seis meses a três anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

Bastante comum a lamentável prática de atribuir aos trabalhadores a conduta formalmente descrita de dano, embora, na hipótese, incidam a teoria da tipicidade conglobante, excluindo a tipicidade material, e a excludente da antijuridicidade, consistente no estado de necessidade.

Acerca do tema, Roberto Delmanto Júnior, na obra citada, colaciona irrefutáveis considerações sobre a inexistência do crime.

Apologia de crime ou criminoso – Art. 287, CP

Apologia de crime ou criminoso: “Art. 287 - Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime: Pena - detenção, de três a seis meses, ou multa”.

Tal delito, que pressupõe, por óbvio, fazer apologia, louvor, enaltecimento de fato criminoso ou de autor de crime, evidentemente não se restará configurado nas condutas relacionadas com as ocupações coletivas de imóveis rurais, uma vez que, como exaustivamente tratado, estamos diante de ações viabilizadoras de direitos fundamentais. Como conseqüência, não poderão ser alcançados por tal norma penal aqueles que, embora não participem das ocupações, externam seus pensamentos e entendimentos sobre as questões agrárias, bem como os líderes dos movimentos sociais rurais respectivos.

Quadrilha ou bando – Art. 288, CP

Quadrilha ou bando:

Art. 288 - Associarem-se mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim de cometer crimes: Pena - reclusão, de um a três anos. Parágrafo único - A pena aplica-se em dobro, se a quadrilha ou bando é armado.

A imputação do delito formalmente previsto como o de formação de quadrilha ou bando também é freqüente aos trabalhadores rurais em decorrência de suas movimentações sociais para implantação da política pública da reforma agrária. Nesse sentido, consigna Roberto Delmanto Júnior na obra citada:

Aliás, a usual imputação de formação de quadrilha ou bando a membros de um movimento que tem fins legítimos e dos mais nobres, apoiado pela grande maioria da população, é a mais perniciosa de todas, sobretudo diante da gravidade de suas penas, a qual traz sérias implicações acerca das modalidades de prisão provisória, sem esquecer, também, que os seus eventuais líderes não podem ser objetivamente responsabilizados pelos excessos praticados por alguns sem terra durante uma invasão, em meio a centenas de milhares de miseráveis em situação idêntica.

Como expressamente previsto no tipo, é necessário associar-se, agregar-se ou unir-se para ou com a finalidade de cometimento de crimes. Configura-se, em tese, como delito formal – não necessitando, para a consumação, do cometimento de delito – e permanente, cuja consumação se protrai no tempo.

Na abordagem em testilha, como visto, os trabalhadores rurais associam-se para o exercício da cidadania, não para o cometimento de crimes. No mesmo sentido, sabemos da existência de movimentos sociais com mais de 20 anos de atuação pela reforma agrária, sendo que as lamentáveis tentativas de imputar tal prática delituosa aos trabalhadores rurais comumente ocorrem no momento em que acontece uma ocupação (quando esta está ocorrendo ou quando consumada). Daí por que se pode afirmar que o Direito penal tem sido usado para evitar manifestações sociais e proteger o patrimônio privado, em detrimento de direitos e garantias fundamentais emergentes do princípio da dignidade humana, como a liberdade de ir e vir e de associar-se.

A propósito:

Não caracterização de quadrilha ou bando – Movimento dos Sem Terra – Associação para a prática de crimes não comprovada – Invasão de propriedades com a finalidade de pressionar autoridades – Expediente que, apesar de pertubar a ordem pública, importa ilícito civil – Absolvição mantida. (Ap. 272.550-3 – Andradina, 5ª C., rel. Dante Busana, 26.10.2000, v.u., JUBI 54/01). (NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 7 ed. São Paulo: RT, 2007, p. 940)

Resistência – Art. 329, CP

Resistência:

Art. 329 - Opor-se à execução de ato legal, mediante violência ou ameaça a funcionário competente para executá-lo ou a quem lhe esteja prestando auxílio:
Pena - detenção, de dois meses a dois anos.
§ 1º - Se o ato, em razão da resistência, não se executa:
Pena - reclusão, de um a três anos.
§ 2º - As penas deste artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à violência.

Extrai-se do dispositivo que, para a configuração do crime em tela, é imprescindível que os trabalhadores rurais tenham recebido ordem judicial e que pratiquem violência ou ameaça contra o funcionário competente para executá-la, caracterizando conduta positiva ativa, o que afasta a possibilidade de ocorrência delitiva em caso de passividade, ainda que com o objetivo de que a ordem formal e substancialmente legal não seja cumprida.

Segundo os ensinamentos de Roberto Delmanto Júnior, na obra citada:

[…] para que este delito se configure, é necessário haver, por parte de quem tenha efetivamente recebido a ordem judicial para desocupar as terras invadidas, a prática de violência, em nosso entender, contra pessoa, ou, então, ameaça, que não se confunde com simples impropérios, não tipificando esse crime a chamada resistência passiva, à qual recorria Mohandas Karamehand Gandhi, na luta a favor da independência e contra o racismo na Índia, entre 1915 a 1947.

Nesse sentido:

Resistência. Delito não configurado. Ausência de prova inconteste de que se tenha o acusado oposto com violência e ameaças à sua prisão. Absolvição decretada. Inteligência do art. 329 do CP. É indispensável, para a configuração do crime de resistência, a prova inconteste de que o agente se opôs à realização do ato com violência e ameaças. Sem essa prova o crime não se define. (TJSP – RT 525/356).

Desobediência – Art. 330, CP

Desobediência: Art. 330 - Desobedecer a ordem legal de funcionário público: Pena - detenção, de quinze dias a seis meses, e multa.

Prefacialmente, insta ressaltar a necessidade de aprofundamento da análise do elemento subjetivo consistente no dolo. Na esmagadora maioria das vezes, as famílias contra as quais é dirigida a ordem judicial não tem para onde ir, sendo certo que, ainda que vivendo em precárias condições nos acampamentos, tem ali um atendimento mínimo às suas necessidades primárias, como moradia e alimentação.

Extrai-se do comando formal penal em testilha que o destinatário da norma é somente a quem a ordem judicial é dirigida, não havendo a possibilidade de alcançar eventuais líderes, em razão de que a responsabilidade penal é personalíssima.

Exercício arbitrário das próprias razões – Art. 345, CP

Exercício arbitrário das próprias razões:

Art. 345 - Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite: Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente à violência.
Parágrafo único - Se não há emprego de violência, somente se procede mediante queixa.

A atipicidade do delito em foco também se impõe em relação às condutas de ocupação de imóveis rurais, seguindo a mesma linha de entendimento quanto aos demais tipos formais analisados, notadamente na abordagem do elemento subjetivo, na medida em que as ocupações de terras, em geral, visam a concretizar um direito que, embora deflua da Constituição Federal, depende inexoravelmente da atividade administrativa do poder público. Nesse giro, não se pode conceber o exercício arbitrário de um direito que ainda não foi efetivamente incorporado ao patrimônio de seu titular. De registrar ainda que se trata de delito de ação penal privada (salvo se houver emprego de violência contra a pessoa) e de menor potencial ofensivo, não admitindo, portanto, prisão em flagrante, quando o autor se compromete a comparecer ao Juizado Especial Criminal.

Delito descrito no art. 20, caput, da Lei nº 4.947/66

A Lei nº 4.947/66 fixa normas de Direito Agrário, estabelecido em seu art. 20:

Art. 20 – Invadir, com a intenção de ocupá-los, terras da União, dos Estados e dos Municípios.
Pena detenção de seis meses a três anos.
Parágrafo Único: Na mesma pena incorre quem, com idêntico propósito, invadir órgãos ou entidades federais, estaduais ou municipais, destinadas a reforma agrária.

Mesmo diante de uma superficial análise do dispositivo em tela, verifica-se que, a exemplo do que também ocorre com o delito de esbulho, o elemento anímico consubstanciado na intenção de ocupar terras, aqui as públicas, é indispensável à caracterização e tipificação formal, o que, como visto, afasta sua incidência sobre as ações de movimentos sociais que visam à efetivação da reforma agrária, através do exercício do direito de pressionar os governos nas respectivas esferas.

O parágrafo único do aludido art. 20 da Lei nº 4.947/66, que fixa normas de direito agrário, faz expressa referência ao elemento anímico e, à evidência, dirige-se a potenciais sujeitos ativos que não sejam aqueles destinatários da reforma agrária, quais sejam, os diversos tomadores de terras públicas, conhecidos por grilheiros.
Sobre o tema:

Tratando-se de terras destinadas a assentamento, não há crime na ocupação praticada por trabalhadores rurais carentes de abrigo que lhes assegura condições mínimas de sobrevivência, circunstância que caracteriza estado de necessidade, a impor a concessão de ‘habeas corpus’ para trancamento da ação penal contra eles intentada. (HC 237.079, Rio Paranaíba, rel. Juiz Lamberto Sant’Anna, j. 03.06.1997).


1)
propósito da conduta de tal imprensa, que, sempre a serviço das elites e do capital financeiro, vem buscando satanizar o MST e outros movimentos sociais congêneres, vale lembrar a antiga lição do professor Fernando Henrique Cardoso, que, já no ano de 1979, dizia, in verbis: “precisamos de uma política de comunicações sociais que levante com força a questão do controle do sistema de comunicações pelos públicos que sofrem o impacto dele. Esses públicos são variados, mas neles se destaca a maioria composta pelos trabalhadores, pelos assalariados da classe média e pelas maiorias marginalizadas” (cf., Souza, Eduardo Ferreira de. in Do Silêncio à Satanização. Revista Caros Amigos, jan./2002).
2)
CARDOSO, F. H. Autoritarismo e Democratização. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.
3)
GARCIA, José Carlos.De Sem-rosto a Cidadão. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1999.
4)
Delmanto JÚNIOR, Roberto.O movimento dos trabalhadores rurais sem terra em face do direito penal. São Paulo. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 28, São Paulo: RT, 1999. Disponível em: <http://www.delmanto.com>. Acesso em: 10 mar. 2008.
5)
Sobre o tema: Roberto Delmanto Júnior, obra citada; Rogério Greco. In: Curso de Direito Penal – Parte Especial, v. III, pág. 144, ed. Impetus, 3 ed., 2007; Fernando Antônio Nogueira Galvão da Rocha, in A ocupação coletiva em imóvel rural que não cumpre sua função social, Revista de Direito Comparado, v. I, agosto/2000; Afonso Henrique de Miranda Teixeira, In: A intervenção policial em questões possessórias - tese aprovada no XVI Congresso Nacional do Ministério Público – Anais, Belo Horizonte, 2006; e STJ, no HC nº 5574/SP, 08/04/97.