2.6.7. Ação civil pública – Criança e adolescente

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA VARA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE DA COMARCA DE……………… – MG

Na medida em que a sociedade brasileira praticar este Estatuto (da Criança e do Adolescente), estará superando a tentação do ter, do prazer e do poder para descobrir a dignidade da pessoa humana e a força do relacionamento fraterno que nasce da gratuidade do amor.(D. Luciano Mendes de Almeida – Bispo de Mariana/Minas Gerais)

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS, através do Promotor de Justiça da Infância e da Juventude da Comarca de……signatário, no uso de suas atribuições legais de zelar pelo efetivo respeito aos direitos e garantias assegurados às crianças e aos adolescentes, com fundamento no art. 129, inc. III, da Constituição federal, e arts. 201, inc. V, 208, parágrafo único, e 210, inc. I, todos do estatuto da Criança e do Adolecente, vem à presença de Vossa Excelência promover a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA, COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA, para proteção judicial dos interesses individuais individuais indisponíveis das crianças e adolescentes residentes no acampamento do….., instalado na Fazenda …, município de …., em face do MUNICÍPIO DE , pessoa jurídica de direito público interno, representado pela pessoa do Prefeito Municipal, Sr. , que poderá ser citado pessoalmente na…., e do ESTADO DE MINAS GERAIS, pessoa jurídica de Direito Público interno, que poderá ser citado na pessoa de seu Procurador-Geral, Praça da Liberdade, s/nº, Belo Horizonte-MG, para que sejam obrigados a responsabilizar-se pelo transporte daquelas crianças e adolescentes, pelos motivos de fato e direito a seguir expostos:

DOS FATOS
Denota-se das peças informativas anexas que, no município de …..-MG, há uma ocupação de terras, desenvolvida pelo ……., instalada na Fazenda……..Tal ocupação encontra-se na zona rural, há cerca de…….Km. Da sede município de…….
Extraí-se que, dentre as diversas pessoas instaladas naquela ocupação, há…… adolescentes e crianças, em idade escolar.
Graças à ação do Conselho Tutelar do Município de….., em atenção à requisição do Ministério Público, tais crianças e adolescentes encontram-se devidamente matriculados o ensino público básico.
São eles:
1) …
[…]
Lamentavelmente, apesar dos esforços encetados pelo Conselho Tutelar do Município de ….., não tem sido possível àquelas crianças e adolescentes a freqüência ao ensino público básico, em razão da não disponibilização do devido transporte escolar às mesmas.
Tal omissão estatal tem ferido de morte o direito constitucional e humanitário daquelas crianças e adolescentes ao acesso ao ensino público básico. Data maxima venia, o fato de residirem debaixo de pedaços de lonas não lhes afasta a titularidade de direitos consagrados pela nossa CARTA MAGNA de 1988, dentre eles o de acesso ao ensino público básico.
Da mesma forma, a alteração quanto a possível falta de recursos públicos não exime o poder público de suas obrigações, já que não são as necessidades de nossas crianças e adolescentes que devem adequar-se à estrutura do poder público, mas sim este que deve zelar pelo respeito aos preceitos legais previstos em nosso ordenamento.

DA LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA A PROMOÇÃO DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA
O art. 129, inc. III, da Constituição Federal, diz que compete ao Ministério Público, promover a ação civil pública para a proteção dos interesses difusos e coletivos.
O art. 201, inc. V, da Lei n° 8069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), dispõe por sua vez que cabe ao Ministério Público a promoção da ação civil pública para a proteção dos interesses individuais, difusos ou coletivos relativos à infância e à adolescência.
O art. 208, parágrafo único desta mesma lei, reza que além das hipóteses previstas no “caput” do art. é possível a proteção judicial para a defesa de outros interesses individuais, difusos ou coletivos, próprios da infância e da juventude protegidos pela Constituição.
Por fim, o art. 210, inc. I, do Estatuto da Criança e do Adolescente, dispõe que para as ações civis fundadas em interesses coletivos ou difusos o Ministério Público tem legitimidade para a agir.
Portanto, o Ministério Público é parte legítima para propor a presente ação, seja por amparo Constitucional seja por amparo do Estatuto da Criança e do Adolescente.

DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
A competência para o julgamento desta ação civil pública é da Justiça da Infância e da Juventude, nos termos do art. 148, IV, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que assim dispõe: “A Justiça da Infância e da Juventude é competente para: […] IV - conhecer de ações civis fundadas em interesses individuais, difusos ou coletivos, afetos à criança e ao adolescente, observado o disposto no art. 209.”

DOS DIREITOS INDIVIDUAIS INDISPONÍVEIS, DIFUSOS E COLETIVOS PRÓPRIOS DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA
Quanto à defesa dos interesses difusos e coletivos, em geral, por parte do Ministério Público, escreve o renomado e eminente Hugo Nigro Mazzilli que:

[…] é feita especialmente a partir da Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85), que é de aplicação subsidiária para outras normas de proteção a interesses difusos e coletivos (Leis nº 7.853/89, nº 7.913/89, nº 8.069/90, nº 8.078/90). Ademais, tendo a Lei nº 8.078/90 superado o veto originário que tinha sido imposto a dispositivos da Lei nº 7.347/85, alcança-se, agora, a integral defesa do meio ambiente, do consumidor, do patrimônio cultural, bem como de qualquer outro interesse coletivo ou difuso.
Alcança-se, pois, a proteção da criança e do adolescente, seja como destinatários de um meio ambiente sadio e equilibrado, seja ainda, agora como obreiros, enquanto destinatários de adequadas condições ambientais do trabalho, seja, enfim, como consumidores efetivos ou potenciais. A defesa dos interesses da criança ou do adolescente consumidor, segundo o art. 81 do Código do Consumidor (Lei nº 8.078/90), pode ser vista de vários aspectos: o interesse do consumidor por ser estritamente individual (um só comprador lesado), individual homogêneo (uma série de um produto produzido com defeito), coletivo (a inadequada prestação de ensino a escolares) ou difuso (como na propaganda enganosa).
Difusos, pois, são interesses de grupos menos determinados de pessoas, entre as quais inexiste vínculo jurídico ou fático muito preciso. Em sentido lato, os mais autênticos interesses difusos, como o meio ambiente, podem ser incluídos na categoria de interesse público.
Por sua vez, os interesses coletivos compreendem uma categoria determinada ou pelo menos determinável de pessoas. Em sentido lato, englobam não só os interesses transindividuais indivisíveis (que o Código do Consumidor chama de interesses coletivos em sentido estrito), como, também, aqueles que o Código do Consumidor chamou de interesses individuais homogêneos. Estes últimos caracterizam-se pela extensão divisível ou individualmente variável do dano ou da responsabilidade.
Assim, segundo o mesmo Código, coletivos são os interesses 'transindividuais de natureza indivisível de seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica-base' (art. 81, II).
Inovando na terminologia legislativa, o Código mencionou, pois, os interesses individuais homogêneos (art. 81, III), 'assim entendidos os decorrentes de origem comum', que, como vimos, na verdade, não deixam de ser interesses coletivos, em sentido lato.
Consideremos mais detidamente a situação da criança e do adolescente. Se, numa comunidade, apenas um adolescente não foi atendido num hospital ou não obteve vaga num estabelecimento de ensino, podemos falar em seu interesse individual, posto indisponível. Já, o interesse pode ser individual homogêneo, quando de vários menores tratados inadequadamente com uma vacina com prazo de validade vencido, p. ex., ou pode ser coletivo (em sentido estrito), quando de uma ação trabalhista coletiva contra o mesmo patrão, exigindo um pagamento devido a todos. Nestes dois últimos casos, em sentido lato, trata-se de interesses coletivos. Mas o interesse só será verdadeiramente difuso se impossível identificar as pessoas ligadas pelo mesmo laço fático ou jurídico, decorrente da relação de consumo (como as crianças destinatárias de propaganda enganosa ou inadequada, veiculada pela televisão, cf. arts. 220, § 3º e 221 da CF).
A defesa de interesse de um grupo determinado ou determinável de pessoas pode convir à coletividade como um todo, como quando à questão diga respeito à saúde ou à segurança das pessoas, ou quando haja extraordinária dispersão de interessados, a tornar necessária ou, pelo menos, conveniente sua substituição processual pelo órgão do Ministério Público, ou quando interessa à coletividade o zelo pelo funcionamento correto, como um todo, de um sistema econômico, social ou jurídico. Tratando-se, porém, de interesses coletivos ou difusos, sua defesa interessará sempre à coletividade como um todo.

Diz o Estatuto caber a iniciativa do Ministério Público para ação civil pública na área da Infância e da Juventude, ainda que para defesa de interesses individuais (art. 201, V, Livro II, Título VI, Capítulo VII). Em nosso entendimento, temos, aí, que considerar a defesa individual da criança e do adolescente, por meio de ação civil pública, apenas enquanto se trate de direitos indisponíveis, que digam respeito à coletividade como um todo, única forma de conciliar a exigência do Estatuto com a destinação institucional do Ministério Público (art. 127, caput, da CF). Assim, as providências do Ministério Público são exigíveis, até mesmo com o ingresso da ação civil pública, para assegurar vaga em escola, tanto para uma única criança como para dezenas, centenas ou milhares delas; tanto para se dar escolarização ou profissionalização a um como a diversos adolescentes privados de liberdade.
Enfim, a omissão do Município de ….. e do Estado de Minas Gerais em não proporcionar o devido transporte escolar das crianças e adolescentes retro mencionado, viola direito dos mesmos, direito este considerado indiscutivelmente como sendo indisponível e coletivo, ainda assim o Ministério Público teria legitimidade para agir, já que está legitimado até mesmo para defender o direito de uma pessoa com menos de dezoito anos de idade, reconhecidamente um ser em desenvolvimento, ainda que individual, é indisponível, nos termos dos arts. 201, V, e 208, parágrafo único, ambos do Estatuto da Criança e Adolescente.

DAS NORMAS E PRINCÍPIOS LEGAIS NÃO OBSERVADOS
Art. 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente:
“Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente”

O Estatuto da Criança e do Adolescente revolucionou o Direito Infanto-Juvenil, inovando e adotando a Doutrina da Proteção Integral, prevista no art. 1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que assegura os direitos fundamentais de todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de qualquer tipo.
Ao abraçar esta doutrina, o Estatuto rechaçou a “Teoria do Direito Tutelar do Menor”, adotada pelo Código de Menores revogado (Lei nº 6.697/79), que considerava crianças e adolescentes como objetos de medidas judiciais, quando evidenciada em situação irregular.
A nova teoria, destarte, baseada na total proteção dos direitos infanto-juvenis, tem seu alicerce jurídico e social na Convenção Internacional Sobre os Direitos da Criança, adotada na Assembléia Geral das Nações Unidas, no dia 20/10/1989, e o Brasil adotou o texto, em sua totalidade, pelo Dec. nº 99.710/90, após ser ratificado pelo Congresso Nacional (Dec. Legislativo nº 28/90).
Nessa linha, dispõe o art. 3º do Estatuto que:

A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

Comentando este artigo, principalmente sobre as inovações introduzidas no Estatuto, que adquiriu “status” de Constituição da Criança e do Adolescente, escreve Paulo Vercelone, Presidente da Associação Internacional de Juizes de Menores e de Família, que:

Esta lei, ora comentada, tem o conteúdo e a forma de uma verdadeira Constituição, como adverte o título, que usa o termo “Estatuto”. Isto vale principalmente para as “disposições preliminares”, que abrem o caminho para o elenco dos direitos específicos e para a predisposição dos instrumentos legislativos necessários para sua atuação concreta.
O art. 3º, onde começa o elenco dos direitos assegurados aos sujeitos indicados no art. 2º, aparece de fato como uma solene declaração de princípios, análoga a outras, contidas em Cartas Constitucionais e convenções internacionais (como o preâmbulo da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, adotada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas em 20/11/89).
Trata-se da técnica legislativa usual quando se faz uma revolução, quando se reconhece que uma parte substancial da população tem sido até o momento excluída da sociedade e coloca-se agora em primeiro plano na ordem de prioridades dos fins a que o Estado se propõe. Desta vez não se trata de uma classe social ou de uma etnia, mas de uma categoria de cidadãos identificada a partir da idade. Mas trata-se, contudo, de uma revolução, e o que mais impressiona é o fato de que se trata de uma revolução feita por pessoas estranhas àquela categoria, isto é, os adultos em favor dos imaturos.
As regras ali enunciadas colocam também algumas normas de caráter imediatamente preceptivo, isto é, às quais todos devem imediata obediência, pois são suficientemente precisas; mas têm importância decisiva também por seu aspecto programático, isto é, aquele que se refere às normas concretas para implementação do programa. De fato, a partir da entrada em vigor do Estatuto, todos os Poderes do Estado, os órgãos públicos da comunidade e em particular o »Poder Judiciário têm a obrigação de interpretar todas as normas, aquelas em vigor e as futuras, à luz daqueles princípios fundamentais, chegando a considerar implicitamente revogadas, embora na ausência de intervenções legislativas, as normas precedentes que entrem em contradição com aqueles princípios.

Sobre os princípios adotados pelo estatuto, explica o renomado autor

Os princípios afirmados no art. são três: a) crianças e adolescentes gozam de todos os direitos fundamentais assegurados a toda pessoa humana; b) eles têm direito, além disso, à proteção integral que é a eles atribuída por este Estatuto; c) a eles são garantidos também todos os instrumentos necessários para assegurar seu desenvolvimento físico, mental, moral e espiritual, em condições de liberdade e dignidade.
A primeira regra contém implicitamente a afirmação da plena capacidade jurídica do cidadão menor de idade quanto aos direitos fundamentais. O fato de estar física e psiquicamente imaturo não exclui a perfeita correspondência entre a situação jurídica da criança e do adolescente e a situação jurídica do adulto no que diz respeito aos direitos fundamentais, os quais podem ser identificados basicamente nos direitos da personalidade seja em relação ao Estado, seja em relação aos outros cidadãos.
A segunda regra reforça a primeira, no sentido de que o legislador afirma a plena compatibilidade entre a titularidade dos direitos fundamentais e a proteção integral. Deve-se entender a proteção integral como o conjunto de direitos que são próprios apenas dos cidadãos imaturos; estes direitos, diferentemente daqueles fundamentais reconhecidos a todos os cidadãos, concretizam-se em pretensões nem tanto em relação a um comportamento negativo (abster-se da violação daqueles direitos) e de outros cidadãos, de regra dos adultos encarregados de assegurar esta proteção especial. Em força da proteção integral, crianças e adolescentes têm o direito de que os adultos façam coisas em favor deles.
A terceira regra, análoga a outras das Constituições modernas (como o art. 3º., c.2, da Constituição Italiana), posto que liberdade e dignidade são os bens mais preciosos de toda pessoa humana, impõe à coletividade a eliminação de qualquer obstáculo que, limitando de fato a liberdade e a igualdade dos cidadãos, impeça o pleno desenvolvimento da pessoa humana.
O quadro revolucionário está, portanto, completo.

O art. 4º, nesse mesmo diapasão, diz o seguinte:

É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

O parágrafo único deste artigo determina que:

A garantia de prioridade compreende:
a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;
c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;
d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.

Comentando este artigo, principalmente sobre a preferência e a prática de direitos, Dalmo de Abreu Dallari escreve o seguinte:

O apoio e a proteção à infância e juventude devem figurar, obrigatoriamente, entre as prioridades dos governantes. Essa exigência constitucional demonstra o reconhecimento da necessidade de cuidar de modo especial das pessoas que, por sua fragilidade natural ou por estarem numa fase em que se completa sua formação, correm maiores riscos. A par disso, é importante assinalar que não ficou por conta de cada governante decidir se dará ou não apoio prioritário às crianças e aos adolescentes. Reconhecendo-se que eles são extremamente importantes para o futuro de qualquer povo, estabeleceu-se como obrigação legal de todos os governantes dispensar-lhes cuidados especiais.

Essa exigência também se aplica à família, à comunidade e à sociedade. Cada uma dessas entidades, no âmbito de suas respectivas atribuições e no uso de seus recursos, está legalmente obrigada a colocar entre seus objetivos preferenciais o cuidado das crianças e dos adolescentes. A prioridade aí prevista tem por objetivo prático, que é a concretização de direitos enumerados no próprio art. 4º do Estatuto, e que são os seguintes: direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Ainda comentando este artigo sobre a garantia da prioridade, escreve o eminente autor:

Complementando as disposições constitucionais e as exigências do art. 4º do Estatuto, foi acrescentado a este um parágrafo, enumerando alguns dos procedimentos indispensáveis para a garantia de prioridade exigida pela Constituição. Essa enumeração não é exaustiva, não estando, aí, especificadas todas as situações em que deverá ser assegurada a preferência à infância e à juventude, nem todas as formas de assegurá-la. A enumeração contida nesse parágrafo representa o mínimo exigível e é indicativa de como se deverá dar efeito prático à determinação constitucional.
A primeira garantia da prioridade, entre as especificadas no parágrafo único do art. 4º, consiste na “primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias”. Evidentemente, quando a lei fala em primazia, está supondo hipóteses em que poderá haver opção entre proteger ou ocorrer em primeiro lugar as crianças e adolescentes ou os adultos. Isso pode ocorrer, p. ex., numa situação de perigo como, também, nos casos de falta ou escassez de água, alimentos ou abrigo, ou então nas hipóteses de acidente ou calamidade. Em todos esses casos, e sempre que houver possibilidade de opção, as crianças e os adolescentes devem ser protegidos e socorridos em primeiro lugar.
A segunda situação em que a lei expressamente determina que seja garantida a prioridade à criança e ao adolescente é aquela em que se deve da “precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública”.
Serviços públicos, de modo geral, são aqueles prestados diretamente pelos órgãos públicos ou por delegação destes. Se algum serviço for prestado simultaneamente e no mesmo local, a crianças ou adolescentes e também a adultos, os primeiros devem ser atendidos em primeiro lugar. Essa regra deve ser interpretada com bom senso, para que a garantia de precedência referida nesse dispositivo não se converta na afirmação de um privilégio absurdo e injustificável. Pode servir como exemplo a situação em que uma criança seja levada a um pronto-socorro, para ser tratada de um pequeno ferimento, lá chegando ao mesmo tempo em que chega um adulto em estado muito grave. Se houver apenas um médico no local, ninguém há de pretender que a criança receba a assistência em primeiro lugar.
A precedência estabelecida em favor da criança e do adolescente tem como fundamentos sua menor resistência em relação aos adultos e suas reduzidas possibilidades numa competição para o recebimento de serviços. Por força da lei o próprio prestador dos serviços deve assegurar aquela precedência, não permitindo que um adulto egoísta e mal-educado procure prevalecer-se de sua superioridade física.
Além de se referir à precedência no recebimento de serviços públicos, o Estatuto menciona também os de “relevância pública”. Esse qualificativo foi usado expressamente na Constituição, no art. 197, em relação às ações e aos serviços de saúde, podendo também ser assim considerados, por extensão, os que forem prestados ao povo para atendimento de necessidades essenciais, mesmo que o prestador seja um particular. O conceito jurídico de relevância pública só ficará bem claro depois de trabalhado pela doutrina e sedimentado pela jurisprudência, mas pode ser desde já invocado com base no sentido corrente da expressão.
A terceira precedência prevista expressamente no Estatuto é a atenção preferencial na formulação e na execução das políticas sociais públicas. Quem deve atender a essa exigência é, em primeiro lugar, o legislador, tanto o federal quanto o estadual e o municipal. Sendo todos competentes para legislar em matéria de saúde, podem fixar por meio de lei as linhas básicas dos respectivos sistemas de saúde, pois, embora a Constituição fale em “sistema único” de saúde, admite um setor público e outro privado, além de prever a competência comum da União, dos Estados e dos Municípios. Em conseqüência, cada esfera política deverá ter sua legislação própria, obedecidas as disposições constitucionais quanto às competências.
Tanto a formulação quanto a execução das políticas sociais públicas exigem uma ação regulamentadora e controladora por parte dos órgãos do Poder Executivo, a par da fixação de planos e da realização de serviços. No desempenho de todas essas atividades deverá ser, obrigatoriamente, dada precedência aos cuidados com a infância e a juventude. Será contrária à lei a decisão de não respeitar essa exigência, podendo, por isso, ter pedida sua anulação ou suspensão pelo Poder Judiciário, através de mandado de segurança, ação popular ou ação civil pública, dependendo das circunstâncias. De acordo com as particularidades de cada caso, a ação poderá ser proposta por qualquer cidadão, por pessoa ou entidade diretamente interessada ou, ainda, pelo Ministério Público.

Por fim, comentando o parágrafo único do art. 4º, que estabelece que a garantia de prioridade para crianças e adolescentes deve ser assegurada pela destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude, o ilustre e festejado autor ensina que:

Essa exigência legal é bem ampla e se impõe a todos os órgãos públicos competentes para legislar sobre a matéria, estabelecer regulamentos, exercer o controle ou prestar serviços de qualquer espécie para promoção dos interesses e direitos de crianças e adolescentes. A partir da elaboração e votação dos projetos de lei orçamentária já estará presente essa exigência. Assim, também, a tradicional desculpa de “falta de verba” para a criação e manutenção de serviços não poderá ser mais invocada com muita facilidade quando se tratar de atividade ligada, de alguma forma, a crianças e adolescentes. Os responsáveis pelo órgão público questionado deverão comprovar que, na destinação dos recursos disponíveis, ainda que sejam poucos, foi observada a prioridade exigida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
Aí estão as principais exigências que decorrem diretamente do art. 4º do Estatuto, com seu parágrafo único. Evidentemente, a lei não poderia prever todas as circunstâncias e descer a pormenores sobre cada uma delas. Mas a leitura atenta desses dispositivos fornece elementos suficientes para que se perceba seu espírito e sua abrangência. Em caso de dúvida sobre seu alcance, deverá ser feita a interpretação observando-se que se trata da afirmação e garantia de direitos fundamentais, razão pela qual cabe perfeitamente a aplicação por extensão ou analogia, nunca podendo ser admitida uma interpretação restritiva.

Em linhas gerais, a criança e o adolescente devem ser tratados com prioridade, têm preferência no atendimento, o poder público deve ter atenção preferencial na formulação e na execução das políticas sociais públicas, destinando de forma privilegiada os recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.
Não bastasse tudo isto, ainda há normas constitucionais sendo violadas pelo Município e o Estado de Minas Gerais.
Vale a pena transcrever o art. 226, “caput”, da Constituição Federal:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

DO TRANSPORTE ESCOLAR
A Constituição Federal determina que o ensino fundamental é obrigatório e gratuito, inclusive para aqueles que não o tiveram na idade própria (art. 208, inciso I, da CF). por outro lado, o inciso VII do mesmo art. determina que é dever do Estado o “o atendimento ao educando, no ensino fundamental, através de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde”. O art. 212 da Carta Magna determina que os Estados e Municípios deverão aplicar vinde e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante dos impostos na manutenção e desenvolvimento do ensino. Também a Lei nº 9.394/96, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, disciplina que:

Art. 4°. O dever do Estado com a educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de:
I) ensino fundamental obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não riveram acesso na idade própria;
[…]
VIII – atendimento ao educando, no ensino fundamental público, por meio de programas suplementares de material didático escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde;
Art. 5°. O acesso ao ensino fundamental é direito publico subjetivo, podendo qualquer cidadão, grupo de cidadãos, associação comunitária, organização sindical, entidade de classe ou outra legalmente constituída, e, ainda, o Ministério Público, acionar o Poder Público para exigi-lo.
Art. 70. Considerar-se-ão como de manutenção e desenvolvimento do ensino as despesas realizadas com vistas à consecução dos objetivos básicos das instituições educacionais de todos os níveis, compreendendo as que se destinam a: […]
VIII – aquisição de matéria didático-escolar e manutenção de programas de transporte escolar.

E, para dirimir qualquer dúvida sobre a responsabilidade do Estado e do Município no que se refere ao dever de promover o transporte escolar, seja de forma compartilhada ou individual, a Lei n° 10.709/03, ao modificar os art.s 10 e 11 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (n° 9.374/96), determinou que:

Art. 10. Os Estados incumbir-se-ão de: […]
VII – assumir o transporte escolar dos alunos da rede estadual.
Art. 11. Os Municípios incumbir-se-ão de: […]
VI – assumir o transporte escolar dos alunos da rede municipal.

Insta salientar que, embora a Lei imponha tal obrigação ao Estado e ao Município, tal fato não exime este último de promover o transporte também dos alunos da rede estadual da zona rural e alguns da zona urbana, haja vista que um e outro ente federativo integram o conceito de poder público e Estado (aqui também compreendida a União) e, como tal, cabe-lhes, de forma conjunta ou não, garantir o direito constitucional à educação.
Neste particular, convém, em obediência à própria legislação em vigor, que Estado e Município haja de forma articulada e mediante mútua colaboração para garantir o direito à educação, tanto o ensino fundamental como o médio (art. 211 da Constituição Federal), ate porque, em se tratando de ensino fundamental, os dois entes estão obrigados a fornecê-lo, conforme determina o art. 10, inciso VI e art. 11, inciso V, da Lei nº 9.394/96.
Também o art. 208 da Constituição Federal não deixa dúvidas quando ao dever do Estado (nas três esferas de governo), garantir o direito à educação. E, se assim é, o fato de a Lei n°10.709/03, ter distribuído as obrigações no que tange ao transporte, não isenta o Município de ………de efetivá-lo em relação aos alunos da rede estadual da zona rural e urbana, pelo menos até que o governo estadual assuma tal responsabilidade, de forma exclusiva. Isso porque, seja em face da Constituição Federal, seja em face da legislação infraconstitucional, tem-se como incontroverso que os atributos da absoluta prioridade e indisponibilidade conferem o direito à educação preponderância sobre quaisquer outros que não se revestem dos mesmo predicados, como, por exemplo, os interesses meramente financeiros ou políticos de um ente público.
O próprio Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, quando da consulta n° 485041/98 7, formulada por Prefeito Municipal que indagara “qual o procedimento no que pertine às despesas com transporte de alunos da municipalidade para as escolas estaduais”, eis que a “ dificuldade reside no fato de que é o Estado ficado a cargo do Município”, externou voto de Conselheiro Fued Dib, acolhido por unanimidade, no sentido de que “tem o Município o dever precípuo de realizar prioritariamente as despesas com o transporte escolar necessário ao ensino fundamental e, ainda, à educação infantil em creches e pré-escolas, incluídas a de educação especial, pois estão dentro de sua área de competência.”
Conforme já ressaltado, o Estado e o Município vêm se omitindo em relação ao cumprimento de seu dever, em relação às crianças e adolescentes retro mencionados.
Ainda neste sentido, a Lei Orgânica do Município de ……estipula, em se art. 237, que a educação, ministrada com base nos princípios estabelecidos nas Constituições Federal e Estadual, possui, como um de seus objetivos básicos, o atendimento ao educando no ensino fundamental através de programas suplementares, abrangendo, entre outras garantias, o transporte escolar.
A obrigatoriedade de transporte escolar gratuito aos alunos que cursam o ensino fundamental é evidente. Decorre da Constituição Federal, do Estatuto da Criança e do Adolescente e da própria Lei Orgânica do Município. O ensino fundamental é gratuito e obrigatório. O acesso à escola deverá ser pleno, abrangendo, portanto, o transporte escolar. O Município está obrigado a utilizar vinde e cinco por cento de sua receita, no mínimo, para a manutenção e desenvolvimento do ensino.
Por outro lado, o art. 53, inciso V do Estatuto da Criança e do Adolescente determina, como direito fundamental da criança e do adolescente, o acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência.
Ainda neste sentido, justifica-se a presente ação por ser a evasão escolar um dos graves problemas do sistema educacional, principalmente na zona rural.
Assim, a demora e a indecisão do poder público, por outro lado, agrava tal problema, afastando os alunos da rede escolar e dificultando o acesso a educação.

Da Tutela Antecipada
De acordo com o preceituado no art. 273 do Código de Processo Civil,

O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que: existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e haja fundado receio de dano ou de difícil reparação.

No caso vertente, os requisitos da verossimilhança da alegação e prova inequívoca defluem de forma clara e indiscutível dos docs. anexos, inclusive ofício do Conselho Tutelar de …., dando conta de que….. crianças e adolescentes, apesar de matriculados no ensino público básico, não estão tendo assegurado o acesso à educação em razão da recusa do poder público em propiciar-lhes o devido transporte escolar.
O fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação advém da persistência do poder público em omitir-se em sua obrigação, afastando crianças e adolescentes da escola, expondo-as ao abandono intelectual.
Ainda, conforme previsão legal contida no art. 213 do Estatuto da Criança e do Adolescente e Art. 12 da Lei n° 7.347/85, pode o juiz, sendo relevante os fundamentos da demanda, presentes os demais requisitos, conceder o provimento de urgência pleiteado initio litis.
Assim, presentes o fumus boni iuris e o periculum in mora, requer-se:

LIMINARMENTE:
a) seja imposta a obrigação de fazer, determinando ao município de ……que, no prazo máximo de 72 horas, implemente e custeie, durante o período letivo, o devido transporte escolar dos alunos retro mencionados, no trajeto de ida e volta, do local onde residem atualmente ou venham a residir futuramente no município (no segundo caso, desde a distância seja superior a 02 Km.) até as escolas públicas (estadual e municipal) onde se encontram matriculados no ensino público básico, sob pena de multa diária no importe de R$ 10.000,00, a ser revertida em favor do Fundo Municipal de Defesa da Criança e do Adolescente do município de …….

O PEDIDO FINAL
Ao final, requer-se a total procedência do pedido para que:
a)seja imposta definitivamente a obrigação de fazer, determinando-se ao Município de ….que promova e custeie, durante o período letivo, o devido transporte escolar das crianças e adolescentes retro mencionados, matriculados na rede pública de ensino municipal, no trajeto de ida e volta, do local onde residem atualmente ou venham a residir futuramente no município (no segundo caso, desde a distância seja superior a 02 Km.) até as escolas públicas onde se encontram matriculados no ensino público básico, enquanto residirem no município de …… e encontrarem-se matriculados na rede de ensino pública municipal, sob pena de multa diária no importe de R$10.000,00, a ser revertida em favor do Fundo Municipal de Defesa da Criança e do Adolescente do município de ……
b) seja imposta a obrigação de fazer, determinando-se ao Município de ….. que promova e custeie, até que ocorra a implementação do transporte escolar pelo poder público do Estado de Minas Gerais, durante o período letivo, o devido transporte escolar dos alunos retro mencionados, que se encontra matriculados na rede pública de ensino estadual, no trajeto de ida e volta, do local onde residem atualmente ou venham a residir futuramente no município (no segundo caso, desde que a distância seja superior a 02 Km.) até as escolas públicas onde se encontram matriculados no ensino público básico, enquanto residirem no município de ……e encontrarem-se matriculados na rede de ensino pública, sob pena de multa diária no importe de R$10.000,00, a ser revertida em favor do Fundo Municipal de Defesa da Criança e do Adolescente do município de ………
c) Seja imposta definitivamente a obrigação de fazer, determinando-se ao Estado de Minas Gerais que promova e custeie o transporte escolar, dos adolescentes retro mencionados que se encontram matriculados na rede pública estadual de ensino, no trajeto de ida e volta, do local onde residem atualmente ou venham a residir futuramente no município (no segundo caso, desde que a distância seja superior a dois Km.) até a escola pública onde se encontram matriculados, enquanto residirem no município de …..e encontrarem-se matriculados na rede de ensino pública estadual, sob pena de multa diária no importe de R$10.000,00, a ser revertida em favor do Fundo Municipal de Defesa da Criança e do Adolescente do município de ……
Das provas. Pretende-se provar o alegado através de todos os meios de provas em direito admitidos, como depoimento pessoal da parte, juntada de documentos, prova testemunhal, pericial etc… Requerendo, ainda, desde já, seja requisitada ao Sr. Prefeito Municipal de….., cópia de eventuais convênios firmados com o Estado de Minas Gerais, através da Secretaria Estadual de Educação, em vigência durante o ano de 2004, que refiram-se ao transporte escolar de alunos da rede pública estadual.
Da citação. Requer-se a citação dos requeridos para, querendo, apresentarem defesa que tiver, no prazo legal, sob pena de revelia e confissão. Valor da causa. Dá-se à causa o valor de R$ 10.000,00.
Requer-se, ao final, a condenação dos requeridos em despesas processuais e honorários advocatícios, em favor do Estado de Minas Gerais.
P. deferimento.

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José Carlos Fernandes Junior
Promotor de Justiça