2.6.8. Arquivamento – Atipicidade – Conduta de ocupação de imóvel rural

Comarca:
Pedido de Arquivamento
Autos nº…………………
Indiciados…………………………
Meritíssimo Juiz de Direito,

Pois fui sempre lavrador, lavrador de terra má; não há espécie de terra que eu não possa cultivar. – Isso aqui de nada adianta, pouco existe o que lavrar; mas diga-me, retirante, que mais fazia por lá? – Também lá na minha terra de terra mesmo pouco há; mas até a calva da pedra sinto-me capaz de arar. – Também de pouco adianta, nem pedra há aqui que amassar; diga-me ainda, compadre, que mais fazia por lá?(Morte e Vida Severina – João Cabral de Melo Neto.)

Súmula:. Inquérito Policial. Ocorrência de possíveis Crimes de Dano e Formação de Quadrilha. Ocupação da Fazenda ……, de domínio da empresa …….. –Desdobramento do fato primevo ocorrido em…… Participação de mais de 60 (sessenta) membros da militância social ligada à terra. Possível crime da espécie multitudinária. Abate de 06 (seis) cabeças de gado da raça nelore. Avaliação indireta das ocorrências no patamar de R$ 3.600,00 (três mil e seiscentos reais). Não-conformação da tipicidade em talante material e conglobante. Precedentes da moderna doutrina de Direito Penal. Direito da Livre Manifestação do pensamento assegurados constitucionalmente. Adágio da concretização do secular primado da existência condigna. Preclara e irretorquível atipicidade das condutas analisadas. Arquivamento do Inquérito Policial que se impõe, como meio salutar de preservação da dignidade da pessoa humana e consecução dos direitos e garantias constitucionais de estirpe fundamentais.

I - RELATÓRIO
Versam os presentes autos sobre Inquérito Policial, registrado sob o número….., a fim de ser apuradas as condutas possivelmente delitivas epigrafadas no art. 163 e art. 288, todos do Código Penal Brasileiro, possivelmente deflagradas contra o patrimônio da empresa….., via da ocupação do prédio rústico da Fazenda …….por inúmeros militantes e líderes do MST – Movimento dos Sem Terra – ligados a circunscrição geográfica de ………..
Via dos depoimentos inquisitoriais de fls. ….. (tomados via precatória policial na Delegacia de Polícia Civil de ….), pode-se aquilatar o ânimo subjetivo dos dirigentes e membros da agremiação social, no talante de ver cumprido e efetivado os interesses do grupo, assegurados constitucionalmente, no entanto, sem indicar os responsáveis pela eclosão dos fatos.
Em todos os depoimentos colhidos, por intermédio da peça informativa, não há individualização das condutas apontadas como criminosas tampouco a indicação precisa/individualizada dos possíveis autores.
Destaca-se que a desocupação do recinto pela Polícia Militar do Estado de Minas Gerais ocorreu pacificamente.
Portaria Inaugural de fl. ….; Boletim de Ocorrência de fls. ….; Termos de Declarações de Testemunhas de fl. ….. e fls….; Carta Precatória de fls. 36/41; Termo de Declarações de Investigado de fls….-verso; Auto de Constatação de Dano de fl. ….; Anexo Fotográfico de fls. …; Auto de Desocupação de fl. ….; Auto de Avaliação Indireta de Danos de fl. …. e Relatório de fls..
Ao aviso conclusivo da i. Autoridade Policial houve os crimes adscritos, em decorrência da certeza da autoria e da materialidade delitivas, restando indiciados os nacionais…….
Vieram os autos com vistas ao Ministério Público, conforme despacho de fls…
É o relato do essencial. Manifesta-se.

II – DOS FUNDAMENTOS JURÍDICOS
Prefacialmente, insta destacar que as condutas sub examine não estão a desafiar os consectários gravosos de ordem repressiva em função da correta exegese das ocorrências atribuídas aos membros e lideranças dos Movimentos Sociais ligados à terra.
Nesse turno, depreende-se do acervo apuratório que diversas pessoas – entre as quais parcelas significativas de lavradores e excluídos campesinos – ocuparam o prédio rústico da Fazenda……, de domínio da ……, no talante de ver processada, cumprida e efetivada os lídimos direitos de órbita constitucional visando o regresso de todos à terra.
Por esse viés, não se tem orquestrada a tipicidade penal em sentido conglobante e material. Vale dizer, em outras palavras, que para a configuração da conduta-padrão-típica não basta a simples tipicidade formal, ao revés, as condutas analisadas devem efetivamente romper e lesionar os bens jurídicos de relevância penal.
Acrescente-se que o direito penal – ultima ratio no ordenamento jurídico para a tutela dos interesses primordiais da sociedade – deve se ater às questões de pertinência e que ultrapassem os liames do razoável e do tolerável, em um juízo racional de adequação entre os fatos concretos e as finalidade reitoras do ordenamento posto, interpretados a partir da tratativa constitucional da matéria repressiva, de sorte a não ser penalizada as ações individuais ou coletivas viabilizadoras dos direitos e garantias fundamentais, fomentadas por ramos múltiplos da ciência jurídica.
Tanto que o escólio do mestre Zaffaroni é preclaro a respeito da tipicidade conglobante na órbita da seleção de condutas penalmente relevantes, verbis:

a lógica mais elementar nos diz que o tipo não pode proibir o que o direito penal ordena e nem o que ele fomenta. Pode ocorrer que o tipo legal pareça incluir estes casos na tipicidade, como sucede com o oficial de justiça e, no entanto, quando penetramos na norma que está anteposta ao tipo, nos apercebemos que, interpretada como parte da ordem normativa, a conduta que se ajusta ao tipo legal não pode estar proibida, PORQUE A PRÓPRIA ORDEM NORMATIVA A ORDENA E A INCENTIVA. (E. R. Zaffaroni; J. Henrique Pierangeli. Manual de Direito Penal Brasileiro. p. 458.)

Ora, é preciso alinhavar que na hipótese dos autos os princípios e os direitos fundamentais estavam sendo postergados pelo poder público ao se omitir diante da ausência de uma política fundiária justa, célere e efetiva.
Assim, concessa venia aos que labutam em sentido contrário, não haveria na espécie como colher as mais legítimas prerrogativas da reivindicação popular, que possui estatura constitucional extraída da liberdade de expressão e do pensamento, a teor do disposto no art. 5°, inciso XXXIV, da Constituição Federal de 1988.
Dessa feita, a tipicidade conglobante assume posição de envergadura na consecução dos objetivos do direito penal, afastando as ações individuais e coletivas que estão em conformidade com a ordem jurídica global, especialmente, quando estão em xeque os direitos e garantias de jaez fundamentais.
Nesse sentido, de compatibilização entre os diversos segmentos do ordenamento jurídico no contexto do Direito Penal, são as lições do festejado Professor Greco, laureado integrante do Parquet Mineiro, de pertinência ao tema sub occullis, in fine:

Nesse sentido são as lições de Bobbio, quando assevera que um ordenamento jurídico constitui um sistema porque não podem coexistir nele ‘normas incompatíveis’. Aqui, ‘sistema’ equivale à validade do princípio que exclui a incompatibilidade das normas. Se num ordenamento vêm a existir normas incompatíveis, uma das duas ou ambas devem ser eliminadas. Se isto é verdade, quer dizer que as normas de um ordenamento têm certo relacionamento entre si, esse relacionamento é relacionamento da COMPATIBILIDADE, que implica na exclusão da INCOMPATIBILIDADE. Portanto, a ANTINOMIA existente deverá ser solucionada pelo próprio ordenamento jurídico. […]. Para concluir-se pela tipicidade penal é preciso, ainda, verificar a chamada tipicidade material. […]. Assim, pelo critério da tipicidade material é que se afere a importância do bem jurídico no caso concreto, a fim de que possamos concluir se aquele bem específico merece ou não ser protegido pelo Direito Penal. Concluindo, para que se possa falar em TIPICIDADE PENAL é preciso haver a fusão da tipicidade formal ou legal com a TIPICIDADE CONGLOBANTE (que é formada pela antinormatividade e pela tipicidade material). SÓ ASSIM O FATO PODERÁ SER CONSIDERADO PENALMENTE TÍPICO. (Greco, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 2 ed. Rio de Janeiro: Ímpetus, 2003. p. 174/175.)

Ainda é preciso sobrelevar que a concentração dos militantes visava tão-somente a concretude de um projeto existencial para lhes assegurar a sobrevivência condigna.
Sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, convém realçar que o mesmo está dotado dos atributos inatos da dignidade, da liberdade e da igualdade, segundo o hígido comentário da doutrina de escol prefaciada por Barroso, verbis:

[…] o princípio da dignidade da pessoa humana identifica um espaço de INTEGRIDADE MORAL a ser assegurados a todas as pessoas por sua existência no mundo. É um RESPEITO À CRIAÇÃO, independentemente da crença que se professe quanto À SUA ORIGEM. A dignidade relaciona-se tanto com a liberdade e valores do espírito como com as CONDIÇÕES MATERIAIS DE SUBSISTÊNCIA. O desrespeito a este princípio terá sido um dos estigmas do século que se encerrou e a LUTA por sua AFIRMAÇÃO como o símbolo de um novo TEMPO. Ele representa a superação da INTOLERÂNCIA, da DISCRIMINAÇÃO, da EXCLUSÃO SOCIAL, da violência, da incapacidade de aceitar o outro, o DIFERENTE, na plenitude de sua liberdade de ser, pensar e criar. (Luiz Roberto Barroso, Fundamento Teóricos e Filosóficos do novo Direito Constitucional Brasileiro, p. 67, PIP, n° 11, set./2001.)

Com arrime em tais explanações, de pertinência ao caso sub examine, averbe-se que o próprio Colendo Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem proclamado a prevalência da Dignidade da Pessoa Humana para afastar ou ampliar a incidência de preceitos legais, de sorte a compulsar o arcabouço de matiz constitucional que tutela os direitos personalíssimos e sociais de essência ao ser humano. (Vide o Acórdão do Agravo de Instrumento de n° 1.0000.00.315607-2/000, Relator Desembargador Célio César Paduani, julgado em 26/08/2003, referente as questões do direito à moradia e a reintegração de posse pelo Poder Público).
À vista disso, impende ressaltar que a compreensão do caso em tela deságua na corrente e marcante exclusão social, em que não são permitidas as mudanças dos paradigmas vigentes, baseados em uma sociedade em que é predominante a concentração agrária e a mercantilização e exteriorização do alcunhado “agronegócio” em detrimento dos potenciais humanos locais.
Nesta ordem de idéias, é precioso colacionar a mais preclara doutrina jurídica sobre o tema ora enfrentado, que retrata a realidade dos autos,in fine:

A enumeração dos objetivos constitucionais em nossa Carta, sem dúvida, reflete a REALIDADE BRASILEIRA, composta dos problemas de um país continental, com população multirracial, condições culturais, econômicas e sociais diversificadas, qualidade de vida e horizontes de OPORTUNIDADES afirmados em extremos OPOSTOS, variando entre a ‘denominação’, pela plena fruição de vantagens da ‘inclusão’, e a ‘exclusão’, pela AUSÊNCIA DE ATENÇÕES À SUA PRÓPRIA EXISTÊNCIA. Os ‘objetivos’ consignados no discurso constitucional, por isto mesmo, funcionam, a um só tempo, como registro da realidade e como documento denunciador do habitual desencontro entre os direitos assegurados ao ‘povo’ integrado no texto constitucional, à ‘população’, por um lado, e, por outro, a ação dos PODERES DA REPÚBLICA, a quem incumbe OBJETIVÁ-LOS. (SOUZA, Washington Peluso Albino de. Democracia e Exclusão Social – Direito Constitucional – Estudos em Homenagem a Paulo Bonavides. 1 ed, p 489/490,Malheiros, São Paulo: 2003.)

Segundo o exposto, cabe aos Poderes da República objetivar e efetivar os direitos assegurados na Carta Política, exsurgindo a importância de uma jurisdição constitucional difusa que possa permear os valores buscados para o enaltecimento e primazia do ser humano, enquanto digno em seus aspectos existenciais.
Tanto que as lições de Moraes, ao citar diversos autores alienígenas, encampam na dicção de uma jurisdição constitucional que possa compulsar o núcleo fundamental dos direitos assegurados no talante mor da ordem jurídica em detrimento das legislações e entendimentos representativos de interesses dirigidos e corporativos, senão observe:

Em resumo, a regra da maioria só pode ser justificada se os homens são iguais e eles só são iguais na posse de direitos. Uma política de igualdade, portanto, precisa de uma POLÍTICA preocupada com DIREITOS. Consequentemente, a regra da maioria, só se legitima se na prática respeita os direitos da minoria. [….]. Observe-se que a JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL retira sua legitimidade formalmente da própria Constituição e materialmente da necessidade de proteção do Estado de Direito e aos DIREITOS FUNDAMENTAIS, pois como recorda Jorge Miranda, ‘o irrestrito domínio da maioria poderia vulnerar o conteúdo ESSENCIAL DAQUELES DIREITOS, tal como o princípio da liberdade poderia recusar qualquer POLÍTICA sobre sua modulação. (Alexandre de Moraes, Legitimidade da Justiça Constitucional – As vertentes do Direito Constitucional Contemporâneo – Estudos em Homenagem a Manoel Gonçalves Ferreira Filho coordenados por Ives Gandra da Silva Martins, p. 562, São Paulo: América Jurídica, 2002.)

Dessa feita, é sabido e ressabido que não resta censurada a atitude cívica, singular ou coletiva, visando angariar a efetivação de direitos assegurados na Constituição Federal de 1988.
Seria desarrazoado uma interpretação canhestra e repressiva contra os desiguais, vítimas de um sistema constitucional programático e inoperante para a tutela dos valores fundamentais do ser humano.
Acrescente-se que na espécie debatida o que se pretendia era conferir utilidade e agregar valores estruturais ao impulso do movimento social, soerguendo os direitos fundamentais e individuais, de assento constitucional.
Corroborando as premissas já fixadas, curial destacar o pensamento de Luigi Ferrajoli, sobre os direitos fundamentais, esposado em seu Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal -, aproveitado a espécie dos autos, mormente para salientar a importância dos postulados declinados, ultrapassando a simples esfera de garantias para se tornar um instrumento de arrefecimento do próprio juízo acusatório em situações especiais, como corolário de uma atuação ministerial constitucional, concretizando valores de igualdade em sentido material,in verbis:

Podemos, neste ponto, redefinir os direitos fundamentais, em contraposição a todas as outras situações jurídicas, como aqueles direitos cuja GARANTIA é necessária a satisfazer o VALOR DAS PESSOAS e a realizar-lhes a IGUALDADE. Diferentemente dos direitos patrimoniais – do direito de propriedade aos direitos de crédito -, os direitos fundamentais não são negociáveis e dizem respeito a ‘TODOS’ em igual medida, como condições da identidade de cada um como pessoa e/ou como cidadão. É esta IGUALDADE e, ao mesmo tempo, este seu nexo com os valores da PESSOA HUMANA que consente em identificar-lhes a soma com a esfera da TOLERÂNCIA e as suas violações com a esfera do INTOLERÁVEL. (Ferrajoli, Luigi. Direito e Razão – Teoria do Garantismo Pena. 1 ed. São Paulo:RT, 2002. p. 727. Tradução de Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes e outros.)

De outra banda, ultrapassada as matérias indisponíveis antepostas, não é crível que possa ser presumido o vínculo subjetivo entre as diversas condutas dos integrantes do Movimento Social, se não há provas no Inquérito Policial da atividade individual de cada participante, a permitir a análise escorreita do ânimo dirigido à obtenção dos resultados finalísticos e específicos e a própria estabilidade do liame psicológico.
O possível crime multitudinário poderia ensejar, aos arrepios do Direito Penal do Fato, uma responsabilidade objetiva, de odiosa consequências em face dos direitos individuais fundamentais.

III - CONCLUSÃO
EX POSITIS, requer o Ministério Público DO ESTADO DE MINAS GERAIS o arquivamento do Inquérito Policial registrado sob o número ………………………….., que indiciava os cidadãos……………………………………….., com fundamento na atipicidade da conduta, segundo os fundamentos retromencionados, o que faz com base no art. 43, inciso I, do Código de Processo Penal, interpretado a contrario sensu.

……………………….., aos …….. de ………….. de …………

Athaide Francisco Peres Oliveira
Promotor de Justiça