4.2. Alteração do paradigma do direito da criança e do adolescente


A atuação do Ministério Público na defesa dos direitos de crianças e adolescentes ancora-se na extrema renovação jurídica regulamentada pela Constituição da República de 1988, que rejeitou a doutrina da situação irregular, disseminada principalmente pelo Código de Menores, e priorizou a infância e juventude no Estado de Direito Brasileiro. De forma absolutamente inovadora, crianças e adolescentes se tornaram sujeitos de direitos fundamentais, e a responsabilidade de garantir esses direitos recaiu não só sobre a família, mas também sobre o Estado e a sociedade.

Em termos jurídicos, a alteração do paradigma retirou da doutrina a noção de situação irregular e implantou a de proteção integral, fruto de uma longa sucessão de fatos que resultou na promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), microssistema aberto de regras e princípios criado em 1990 para dar efetividade ao art. 227 da Constituição Federal.

Sobre essa sucessão de eventos, escreve Amin:

”O primeiro documento internacional que expôs a preocupação em se reconhecer direitos a crianças e adolescentes foi a Declaração Universal dos Direitos da Criança de Genebra, em 1924, promovida pela Liga das Nações.

Contudo, foi a Declaração Universal dos Direitos da Criança, adotada pela ONU em 1959, o grande marco no reconhecimento de crianças como sujeitos de direitos carecedoras de proteção e cuidados especiais. O documento estabeleceu, dentre outros princípios: proteção especial para o desenvolvimento físico, mental, moral e espiritual; educação gratuita e compulsória; prioridade em proteção e socorro; proteção contra negligência, crueldade e exploração; proteção contra atos de discriminação.

A ONU, atenta aos avanços e anseios sociais, mormente no plano de direitos fundamentais, reconheceu que a atualização do documento se fazia necessária. Em 1979, montou um grupo de trabalho com o objetivo de preparar o texto da Convenção dos Direitos da Criança, aprovado em novembro de 1989 pela Resolução nº 44”1).

A doutrina da situação irregular perdurou por quase um século e era limitada. O Juiz de Menores restringia sua atuação ao binômio carência/delinquência, e se limitava a tratar daqueles que se enquadravam no modelo pré-definido de situação irregular estabelecido no art. 2º do Código de Menores. Ele centralizava as funções jurisdicionais e administrativas, muitas vezes dando forma e estruturando a rede de atendimento. Todas as demais questões envolvendo crianças e adolescentes eram discutidas na Vara de Família e regidas pelo Código Civil.

Os limites de atuação do juiz eram indefinidos, e os princípios de tripartição dos Poderes e de inércia do Poder Judiciário ficavam em segundo plano. O Juiz de Menores exercia função de pai, o que aparentemente bastava ao sistema, sob o pressuposto de que, por ser magistrado, homem e possível pai de família, sabia o que era melhor para a criança a ele apresentada. A inconsistência dessa lógica pode ser comprovada pela complexidade social e psicológica que envolve a história de cada pessoa que chega ao sistema de Justiça.

A situação irregular era uma doutrina não universal, direcionada a um público infantojuvenil específico e enquadrada no binômio carência/delinquência, ideologia disseminada na época. Não se tratava de uma doutrina garantista ou cidadã; agia apenas na sequência, e não na causa do problema. Era um Direito do Menor que agia sobre ele como objeto, e não como sujeito de direitos. A doutrina da proteção integral, por sua vez, rompeu com o Código de Menores, que obviamente não trouxe benefícios, e absorveu os valores definidos na Convenção dos Direitos da Criança.

A responsabilidade de assegurar esses direitos é atribuída primeiramente à família e estendida ao Estado e à sociedade, em regime de cogestão e corresponsabilidade. A legislação é clara ao estabelecer a família como primeira responsável, pois o Estado e a sociedade não substituem a contento o clima de acolhimento que uma família apenas razoável pode oferecer ao infante. Nenhuma instituição, por melhor que seja, aplaca as necessidades afetivas de um ser em formação como a entidade familiar. Esta afirmação pode ser confirmada nas visitas a unidades de acolhimento, quando a maioria das crianças manifesta o desejo de serem adotadas, mesmo estando acolhidas em ambientes adequados e razoáveis.

Embora o art. 227 da Constituição da República defina em seu caput os direitos fundamentais e sua aplicação imediata, coube ao Estatuto da Criança e do Adolescente a construção sistêmica da doutrina da proteção integral. De início, a nova lei se estendeu indistintamente a todas as crianças e adolescentes e passou a considerar, para fins de proteção, não mais a situação irregular, mas a possibilidade de eventual risco social, definida no art. 98 da Lei nº 8.069/90.

A fim de garantir efetividade à doutrina da proteção integral, a nova lei previu um conjunto de medidas governamentais aos três entes federativos, através de políticas sociais básicas, programas de assistência social, serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial a vítimas de negligência, maus-tratos e abuso, além de proteção jurídico-social por entidades da sociedade civil.

Adotou-se o princípio da descentralização político-administrativa, materializando-o na esfera municipal pela participação direta da comunidade através do Conselho Municipal de Direitos e do Conselho Tutelar. A responsabilidade pela causa da infância ultrapassa a esfera familiar e recai sobre a comunidade da criança ou do adolescente e o poder público, principalmente o municipal, executor da política de atendimento, de acordo com o art. 88, inc.I, do ECA.

Coube ao juiz a função que lhe é própria: julgar. A atuação ex officio não se encontra elencada nos arts. 148 e 149 da legislação estatutária, apenas aquela restrita às funções judicante e normativa, esta última em caráter excepcional, por ser atípica à magistratura. Agora é a própria sociedade, através do Conselho Tutelar, que atua diretamente na proteção de suas crianças e jovens, encaminhando à autoridade judiciária os casos de sua competência e, ao Ministério Público, notícia de fato que constitua infração administrativa ou penal contra os direitos da criança ou adolescente.

A atuação do Ministério Público no sistema garantidor do ECA foi sobremaneira ampliada pela Constituição da República, que promove o Parquet a agente de transformação social. No campo formal, a doutrina da proteção integral está perfeitamente delineada. O desafio é torná-la real, efetiva, palpável.


4.2.1. Princípios basilares do atual direito da criança e do adolescente


1)
AMIN, Andréa R. Doutrina da Proteção Integral e princípios orientadores do direito da criança e do adolescente. In: MACIEL, Kátia R. F. L. A. (coord.). Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.