4.2.1.1. Princípio da prioridade absoluta


O verbete “prioridade” é definido pelo dicionário Aurélio como

“qualidade do que está em primeiro lugar, ou do que aparece primeiro; preferência dada a alguém relativamente ao tempo de realização de seu direito, com preterição do de outros; primazia”1).

O mesmo dicionário define o verbete “absoluto” como aquele que

“não depende de outrem ou de uma coisa; independente; não sujeito a condições; incondicional, superior a todos os outros; único; seguro, firme” 2).

O princípio da absoluta prioridade do direito da criança e do adolescente só pode ser compreendido pela interpretação literal de cada um de seus vocábulos. A prioridade se mostra premente porque a criança e o adolescente são sujeitos em estado de desenvolvimento físico, psíquico, emocional e espiritual e, considerando a fragilidade natural decorrente dessa condição, carecem de proteção especializada, diferenciada e integral. Devido a essa fase de transição e crescimento, a criança e o adolescente estão sujeitos tanto a sofrer mais por serem privados de condições básicas de sobrevivência como a aproveitarem melhor os investimentos sociais, sobretudo em se tratando de educação.

Liberati define da seguinte forma o princípio da absoluta prioridade:

“Por absoluta prioridade, devemos entender que a criança e o adolescente deverão estar em primeiro lugar na escala de preocupação dos governantes; devemos entender que, primeiro devem ser atendidas todas as necessidades das crianças e dos adolescentes[…].
Por absoluta prioridade, entende-se que, na área administrativa, enquanto não existem creches, escolas, postos de saúde, atendimento preventivo e emergencial às gestantes, dignas moradias e trabalho, não se deveriam asfaltar ruas, construir praças, sambódromos, monumentos artísticos, etc., porque a vida, a saúde, o lar, a prevenção de doenças são mais importantes que as obras de concreto que ficam para demonstrar o poder do governante.

No campo legislativo, o princípio da prioridade absoluta ao direito da criança e do adolescente é disciplinado na própria Carta Constitucional; vide o art. 227:

‘Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, crueldade e opressão'”3).

No aspecto infraconstitucional, o princípio encontra-se no art. 4º da Lei nº 8.069/90 (ECA):

“Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. […]”4).

Os dispositivos mencionados são escritos em linguagem absolutamente clara e, além disso, o legislador explicitou no artigo 6º os critérios a serem adotados pelo intérprete a fim de eliminar qualquer dúvida ou divergência quanto à primazia do interesse da criança e do adolescente sobre os demais no sistema jurídico:

“Art. 6º. Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento”5).

Embora o Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003) dê prioridade absoluta ao direito dos idosos, crianças e adolescentes terão primazia em situações concretas em que houver conflito de interesses. Isso porque a prioridade conferida ao idoso é infraconstitucional, e a das crianças e adolescentes é constitucional. É interessante notar que o princípio da prioridade absoluta já foi completamente absorvido pelos Tribunais Superiores:

“PROCESSUAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. OBRIGAÇÃO DE FAZER. INSTALAÇÃO DE PROGRAMA SÓCIO-EDUCATIVO DESTINADO A ADOLESCENTE EM REGIME DE SEMI-LIBERDADE NO MUNICÍPIO DE RIBEIRÃO PRETO. DIREITO SUBJETIVO À ABSOLUTA PRIORIDADE NA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS À VIDA, À EDUCAÇÃO, À DIGNIDADE, AO RESPEITO, À LIBERDADE E À CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA, ENTRE OUTROS. INTERESSE TRANSINDIVIDUAL. CARÊNCIA DA AÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. 1. Controvérsia gravitante em torno da possibilidade jurídica do pedido formulado em ação civil pública de preceito cominatório de obrigação de fazer, que objetiva a criação e instalação, no município de Ribeirão Preto, de programa sócio-educativo destinado a adolescentes em regime de semi-liberdade previsto no art. 90, VI, do Estatuto da Criança e do Adolescente. 2. Alegação de que o prazo exíguo para o cumprimento da obrigação de fazer caracteriza a impossibilidade jurídica do pedido, em virtude da sujeição dos entes públicos às Leis de Licitações e de Responsabilidade Fiscal, no que aludem à necessidade de previsão orçamentária para a criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento de despesa. 3. A possibilidade jurídica do pedido, uma das condições da ação, cuja ausência enseja a extinção do processo sem julgamento do mérito, abrange não apenas a previsão legal da pretensão do autor, mas, antes, que a mesma não se encontre “vetada” pela ordem jurídica. 4. Causa de pedir consubstanciada na inobservância, pela FEBEM/SP, da política básica de atendimento dos direitos da criança e do adolescente estabelecida pelo ECA, frustrando a concretização dos direitos fundamentais garantidos pelo art. 227, caput, da Constituição Federal de 1988, in verbis: ‘É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.’ 5.O pleito ministerial não se encontra vedado pelo ordenamento jurídico, constituindo tentativa de assegurar o efetivo respeito ao direito subjetivo do adolescente no município de Ribeirão Preto. 6. Consagrado por um lado o dever do Estado, revela-se, pelo outro ângulo, o direito subjetivo do adolescente. Consectariamente, em função do princípio da inafastabilidade da jurisdição consagrado constitucionalmente, a todo direito corresponde uma ação que o assegura, sendo certo que todos os adolescentes, nas condições estipuladas pela lei, encartam-se na esfera desse direito e podem exigi-lo em juízo. A homogeneidade e transindividualidade do direito em foco enseja a propositura da ação civil pública. 7. Ademais, o magistrado não fica adstrito ao prazo, para o cumprimento da obrigação de fazer, indicado pelo Ministério Público, sendo-lhe defeso, contudo, a prolação de sentença que incorra em um dos vícios de julgamento elencados no art. 460, do CPC. 8. Recurso especial desprovido. STJ. HC 97539 / RJ - RIO DE JANEIRO. HABEAS CORPUS. Relator: Min. CARLOS BRITTO. Julgamento: 16.06.2009. Órgão Julgador: Primeira Turma”.

Em 2008, o Supremo Tribunal Federal (STF), a mais alta Corte do país, reconheceu inteiramente o princípio da prioridade absoluta ao julgar uma ação movida pelo Ministério Público contra o Governo de Tocantins. O STF considerou que o Poder Judiciário pode exigir do Executivo a consecução de políticas públicas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Na ação, o Ministério Público exigiu a implantação de um programa de internação e semiliberdade para adolescentes em conflito com a lei, em Araguaína, município de 115 mil habitantes. Conforme o processo, o Estado estaria abrigando menores em cadeia comum, numa unidade a 160 quilômetros de Araguaína, contrariando o Estatuto da Criança e do Adolescente por dificultar o contato deles com a família e por não haver uma unidade de atendimento especializada na cidade.

O Parquet venceu a ação em primeira e segunda instâncias, exigindo do governo estadual a criação de uma política pública de atendimento a adolescentes infratores no prazo de um ano, sob pena de multa diária de R$ 3.000,00 (três mil reais), por tempo indeterminado.

O Governo de Tocantins recorreu ao STF alegando que o orçamento estadual não previa recursos para essas ações e que a punição provocaria “lesão à economia pública estadual”, e questionou a interferência entre Poderes. Porém, o presidente do STF manteve a decisão e ditou:

“[…] A alegação de violação à separação dos Poderes não justifica a inércia do Poder Executivo estadual do Tocantins em cumprir seu dever constitucional de garantia dos direitos da criança e do adolescente, com a absoluta prioridade reclamada no texto constitucional”.

O STF abriu um precedente histórico ao reconhecer o princípio da prioridade absoluta de atendimento a crianças e adolescentes. Além disso, pela primeira vez, entendeu-se que o Judiciário pode obrigar o Executivo a cumprir políticas públicas sociais. Na antiga posição do Supremo, prevaleciam o princípio da separação dos Poderes, pelo qual o Judiciário não poderia interferir em assuntos de competência do Executivo, e o da “reserva do possível”, segundo o qual os direitos só poderiam ser garantidos se houvessem recursos públicos disponíveis. São justamente esses os argumentos usados como defesa pelos governos municipais, estaduais e federal em ações que cobram a execução de políticas públicas, como no caso desse processo, julgado pelo Ministro Gilmar Mendes6).


1)
FERREIRA, Aurélio B. de Hollanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. 1838 p.
2)
FERREIRA, 1986.
3)
LIBERATI. Wilson Donizeti. O Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília: IBPS, 1991. p. 45.
4)
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em: 03 set. 2014.
5)
BRASIL, 1990.