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4.6.5. O direito à liberdade


Como mencionado, a criança e o adolescente foram reconhecidos como sujeitos de direitos somente em meados do século XX, mesmo algumas garantias fundamentais tendo sido positivadas há décadas.

No Brasil, essa mudança paradigmática ocorreu com a promulgação da Constituição Federal em 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990. Esses dois diplomas legais retiraram a criança e o adolescente da condição de “menor em situação irregular” e os elevaram à categoria de sujeitos de direitos. Hoje, a criança e o adolescente

“têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis” (art. 15 do ECA).

O termo “liberdade” pode apresentar inúmeros conceitos. Conforme o Dicionário Aurélio, liberdade pode ser definida como:

”1. Faculdade de cada um se decidir ou agir segundo a própria determinação. 2. Poder de agir, no seio de uma sociedade organizada, segundo a própria determinação, dentro dos limites impostos por normas definidas. 3. Faculdade de praticar tudo quanto não é proibido por lei. 4. Supressão ou ausência de toda a opressão considerada anormal, ilegítima, imoral. 5. Estado ou condição de homem livre. 6. Independência, autonomia. 7. Facilidade, desembaraço. 8. Permissão, licença”1).

Entretanto, seu significado vai muito além das definições linguísticas.

Na seara legislativa, o Estatuto da Criança e do Adolescente disciplinou a questão em seu art. 16:

”Art. 16. O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos:
I - ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as restrições legais;
II - opinião e expressão;
III - crença e culto religioso;
IV - brincar, praticar esportes e divertir-se;
V - participar da vida familiar e comunitária, sem discriminação;
VI - participar da vida política, na forma da lei;
VII - buscar refúgio, auxílio e orientação”.

Considerando a abrangência da terminologia e as várias faces desse direito, passamos a examiná-lo em tópicos.


O direito de ir e vir


A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, inc. XV, determinou ser

“[…] livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”.

Logicamente, a amplitude da liberdade de ir e vir, no texto constitucional, não é a mesma a ser concedida à criança e ao adolescente, o que decorre obviamente da condição peculiar de serem pessoas em desenvolvimento (art. 6º do ECA).

Conforme Amin 2), a liberdade de locomoção do adolescente e, ainda mais, da criança, lhes permite ir apenas aonde possam desenvolver sua personalidade e garantir a plenitude de sua formação, sendo, portanto, restrita. Nas palavras da autora,

“[…] trata-se de uma liberdade que se autoconvém ou que é autocontida pelos princípios e pelas finalidades desse direito”.

Ciente dessa condição peculiar, o legislador, no inc. I do art. 16, ao mesmo tempo em que confere o direito à liberdade de “ir, vir e estar” nos logradouros públicos e nos espaços comunitários, ressalvou as restrições legais, elencadas no próprio Estatuto:

É comum a expedição de portarias proibindo o trânsito e a permanência de crianças e adolescentes nas ruas depois de determinado horário. Neste caso, discorda-se do método utilizado, por mais que se entenda o objetivo dessas proibições. Os pais ou responsáveis é que têm o dever de vigilância e educação sobre os filhos, e não o Estado, por meio do Juiz de Direito.


O toque de recolher

Ultimamente, Portarias Judiciais têm sido baixadas em algumas Comarcas do Estado de Minas Gerais com o escopo de proibir o trânsito e a permanência de crianças e adolescentes em logradouros públicos, o que vem sendo chamado pelos meios de comunicação de “toque de recolher”. Esses atos normativos estabelecem restrições à presença de crianças e adolescentes em espaços públicos com o intuito de protegê-los da violência e da exposição às drogas, bebidas alcoólicas e outros perigos.

No entanto, embora a intenção possa ser reputada como positiva, a medida se mostra abertamente inconstitucional e ineficaz, consubstanciando-se em flagrante atentado aos direitos fundamentais deste público. Limitar a presença de infantes em determinados locais públicos não elimina a exposição à violência ou ao uso de drogas e bebidas alcoólicas; muitas vezes, a exposição a essas mazelas ocorre em ambientes domésticos.

A ineficácia reside também no fato de que a punição (proibição de estar em determinados lugares) recai geralmente sobre aqueles a quem se pretende proteger, quando deveria ser direcionada aos adultos propiciadores da violência, do uso de drogas e de bebidas alcoólicas. Neste sentido, o CONANDA aprovou parecer contrário ao toque de recolher, em sua 175ª Assembléia Ordinária, adotando o argumento a mencionado a seguir, aqui reiterado em razão de sua pertinência:

”Não se verifica o mesmo empenho das autoridades envolvidas na decretação da medida aludida em suscitar a responsabilidade da Família, do Estado e da Sociedade em garantir os direitos da criança e do adolescente, conforme dispõe o ECA. Inclusive, a própria legislação brasileira já prevê a responsabilização de pais que não cumprem seus deveres, assim como dos agentes públicos e da própria sociedade em geral. No mesmo sentido, por que as autoridades envolvidas no Toque de Recolher não buscam punir os comerciantes que fornecem bebidas alcoólicas para crianças e adolescentes ou que franqueiam a entrada de adolescentes em casas noturnas ou de jogos, ou qualquer adulto que explore crianças e adolescentes?”

Mesmo diante da possibilidade de atos infracionais, a imposição do toque de recolher denota uma generalização de que todos os adolescentes de uma cidade possam cometê-los e não leva em conta as garantias da ampla defesa e do contraditório. Além disso, a proibição veiculada por tais portarias agrava o enfraquecimento e o desprestígio do já fragilizado poder familiar. A imposição de disciplina aos filhos cabe aos pais. O dever do Estado é zelar pela responsabilização dos pais omissos, e não substituí-los por proibições veiculadas por meio de portarias.

Além das incongruências, as portarias são reprovadas também no quesito constitucionalidade. Os atos normativos que impõem toque de recolher colidem flagrantemente com os arts. 5° e 227 da Constituição da República ao proibir a liberdade de locomoção e o direito fundamental de ir e vir. O toque de recolher viola também a Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) em seus arts. 4°, 15 e 16, que estabelecem ser dever da família, da comunidade e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, o direito à liberdade e convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes, compreendendo-se como liberdade o direito de ir, vir e estar em logradouros públicos e espaços comunitários.

Os únicos casos em que a autoridade judiciária poderá fazer uso da portaria estão registrados no art. 149 do ECA:

”Art. 149. Compete à autoridade judiciária disciplinar, através de portaria, ou autorizar, mediante alvará:
I - a entrada e permanência de criança ou adolescente, desacompanhado dos pais ou responsável, em:
a) estádio, ginásio e campo desportivo;
b) bailes ou promoções dançantes;
c) boate ou congêneres;
d) casa que explore comercialmente diversões eletrônicas;
e) estúdios cinematográficos, de teatro, rádio e televisão.
II - a participação de criança e adolescente em:
a) espetáculos públicos e seus ensaios;
b) certames de beleza.
§ 1º Para os fins do disposto neste artigo, a autoridade judiciária levará em conta, dentre outros fatores:
a) os princípios desta Lei;
b) as peculiaridades locais;
c) a existência de instalações adequadas;
d) o tipo de freqüência habitual ao local;
e) a adequação do ambiente a eventual participação ou freqüência de crianças e adolescentes;
f) a natureza do espetáculo.
§ 2º As medidas adotadas na conformidade deste artigo deverão ser fundamentadas, caso a caso, vedadas as determinações de caráter geral”.

O artigo citado prevê apenas restrições de entrada e permanência em certos locais e estabelecimentos, limitações que devem ser fundamentadas caso a caso, individualmente, vetando determinações de caráter geral, como o toque de recolher. A autoridade judiciária não pode mais expedir portarias arbitrárias, ilimitadas ou irrestritas, como previa antigamente o Código de Menores. A expedição de portarias judiciais está restrita às hipóteses elencadas no art. 149 do ECA.

É plausível destacar também os arts. 106 e 230 do ECA, impondo que a apreensão de crianças e adolescentes só pode ocorrer em casos de flagrante de ato infracional ou mediante ordem escrita e fundamentada de autoridade competente, que a ordem seja lícita, individualizada e fundamentada caso a caso. Ademais, devem ser garantidos os princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, antes de se proceder a qualquer tipo de restrição à liberdade.

Para confirmar a impropriedade jurídica de tais portarias, é preciso estar atento ao disposto no art. 5°, inc. II, da Constituição Federal:

”Art.5 º […]
[…]
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

Somente a lei poderia impor restrição ao direito fundamental de ir e vir. As portarias judiciais não podem cercear a liberdade fora dos casos previstos em lei. Baixar portaria que embarace o exercício do direito de ir e vir de adolescentes, sem ato infracional que a justifique, viola a tripartição de Poderes.

Verificadas a impertinência, a inconstitucionalidade e a ilegalidade dos referidos atos normativos, orienta-se às Promotorias de Justiça da Infância e Juventude do Estado que combatam a aplicação dessas portarias judiciais com a adoção das seguintes medidas:


A autorização para viajar


O Estatuto da Criança e do Adolescente proíbe que a criança realize viagem que implique deslocamento para fora da comarca onde reside desacompanhada de seus pais ou responsável (art. 83, caput). Ao adolescente, tal deslocamento é permitido.

Havendo necessidade, os pais ou o responsável pela criança deverão solicitar autorização judicial, estando dispensados de fazê-lo quando: 1) tratar-se de comarca contígua à da residência da criança ou incluída na mesma região metropolitana (art. 83, §1º, “a”, do ECA); 2) quando a criança estiver acompanhada de ascendente ou colateral maior, até o terceiro grau, estando o parentesco comprovado documentalmente (art. 83, §1º, “b”, do ECA); ou 3) a criança estiver acompanhada de pessoa maior, expressamente autorizada pelo pai, mãe ou responsável (art. 83, §1º, “b”, do ECA).

A autorização, quando necessária, poderá abranger mais de uma viagem, durante o período máximo de dois anos (art. 83, §2º, do ECA). Viagens ao exterior requerem autorização judicial para a criança e para o adolescente, sendo dispensada apenas quando estiverem acompanhados de ambos os pais ou responsável (art. 84, inc. I, do ECA), ou viajarem na companhia de um dos pais, autorizado expressamente pelo outro mediante documento com firma reconhecida (art. 84, inc. II, do ECA).


O direito à expressão


Conforme determina o art. 5º, inc. IX, da Carta de 1988, no Brasil

“é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.

A criança e o adolescente – sujeitos de todos os direitos fundamentais sob a nova ótica constitucional – podem livremente ter sua própria opinião e expressá-la.

O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê determinadas situações em que é obrigatória ou recomendável a oitiva da criança e do adolescente, situações que decorrem do direito à opinião e à expressão, por exemplo:

É comum que deliberações importantes sejam tomadas em reuniões realizadas sem a presença dos principais interessados. É preciso que o Promotor de Justiça estimule o protagonismo infantojuvenil, incluindo os menores de 18 (dezoito) anos nas discussões referentes aos seus direitos.


O direito à crença e à religião


A Constituição Federal em vigor reputa como inviolável a “liberdade de consciência e de crença”, assegurando o “livre exercício dos cultos religiosos” e garantindo a “proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (art. 5º, inc. VI).

O direito à crença e ao culto religioso decorre do direito à liberdade de opinião e de expressão. A crença apresenta uma dimensão interior, e o direito ao culto permite a exteriorização dessa crença.

Silva 3) aponta a estreita conexão entre a liberdade de crença da criança ou do adolescente e a de suas famílias. É permitido a criança e ao adolescente optar por fé diferente da dos pais. Ninguém, nem mesmo a família, poderá impor culto ou crença à criança e ao adolescente; contudo, pelo poder familiar, os pais poderão orientar os filhos a determinada crença ou ao ateísmo, uma vez que a liberdade de crença abarca a liberdade de não crer.

Nesse sentido, a frequência à disciplina de ensino religioso deverá ser facultativa, embora constitua a grade curricular das escolas públicas de Ensino Fundamental (art. 210, §1º, da CF). A Lei nº 8.069/1990, além de determinar livres a crença e o culto religioso, impõe às entidades que desenvolvem programas de internação a obrigação de proporcionarem a assistência religiosa aos adolescentes internos (art. 94, inc. XII, do ECA). Não obstante, destaca-se que a assistência religiosa é um direito do adolescente internado e, portanto, não é obrigatória (art. 124, inc. XIV, do ECA).

Sabe-se, por fim, que o direito a uma crença religiosa não pode se sobrepor ao direito à vida e à saúde de qualquer criança ou adolescente, ainda que seus pais ou responsáveis assim entendam.


1)
FERREIRA, Aurélio B. de Hollanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. 1838 p.
2)
AMIM, Andréa Rodrigues. Doutrina da Proteção Integral e Princípios Orientadores do Direito da Criança e do Adolescente. In: MACIEL, Kátia (coord.). Cursode direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007. p. 43.
3)
SILVA, José Afonso da. Art. 16. In: CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente comentado. 6.ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 84.