4.7. O Promotor de Justiça e o ato infracional


O art. 228 da Carta Magna determina a criança e o adolescente como penalmente inimputáveis, sujeitos à Lei nº 8.069/1990, legislação especial que instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente. A inimputabilidade não se limita à capacidade de discernimento do adolescente, ao contrário; esse tratamento diferenciado é fruto da evolução histórica dos direitos humanos, ainda que defensores da redução da maioridade penal fixem aí a defesa de seu ponto de vista.

Aos que acompanham a corrente pró-menoridade, recomenda-se a leitura do fragmento abaixo, transcrito da nota pública redigida pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), em solidariedade à família do menino João Hélio, brutalmente assassinado, aos 6 anos de idade, na capital do Rio de Janeiro:

“Não há dados que comprovem que o rebaixamento da idade penal reduz os índices de criminalidade juvenil. Ao contrário, o ingresso antecipado no falido sistema penal brasileiro expõe os adolescentes a mecanismos reprodutores da violência, como o aumento das chances de reincidência, uma vez que as taxas nas penitenciárias ultrapassam 60% enquanto no sistema sócio-educativo situam-se abaixo de 20%;
A maioria dos delitos que leva os adolescentes à internação não envolve crimes contra a pessoa e, assim sendo, utilizar o critério da faixa etária penalizaria o infrator com 16 anos ou menos, que compulsoriamente iria para o sistema penal, independente da gravidade do ato;
A redução da idade penal não resolve o problema da utilização de crianças e adolescentes no crime organizado. Se reduzida a idade penal, estes serão recrutados cada vez mais cedo;
É incorreta a afirmação de que a maioria dos países adota idade penal inferior a 18 anos. Pesquisa realizada pela ONU (Crime Trends) aponta que em apenas 17% das 57 legislações estudadas a idade penal é inferior a 18 anos;
Por outro lado, é errônea a idéia de que o problema da violência juvenil em nosso país é mais grave, uma vez que a participação de adolescentes na criminalidade é de 10% do total de infratores (pesquisa do ILANUD). No Brasil, o que se destaca é a grande proporção de adolescentes assassinados (entre os primeiros lugares no ranking mundial), bem como o número elevado de jovens que crescem em contextos violentos”1).

Nessa linha, em razão da etapa da vida em que o adolescente se encontra, são maiores as suas chances de redenção. Destarte, mostrando-se inegável a falência do cárcere, especialmente se considerado o sistema prisional brasileiro, o legislador optou por responsabilizar o adolescente em vez de apenas puni-lo, opção que demanda a aplicação de medidas de caráter pedagógico.

Do campo teórico, o ato infracional é definido pelo texto estatutário conforme a “[…] conduta descrita como crime ou contravenção penal” (art. 103), ou seja, é o ato que se encontra tipificado na legislação penal. Isso, entretanto, não empresta caráter penal à medida.

Da mesma forma, o procedimento para apuração de ato infracional e aplicação de medida socioeducativa possui natureza diversa dos procedimentos criminais em respeito à condição peculiar do adolescente, já que eles deveriam se alicerçar em um processo pedagógico.

Quando provocado por questões do universo do ato infracional, o membro do Ministério Público deverá ao longo de todo o procedimento zelar pelo respeito aos direitos e às garantias individuais do adolescente, especialmente aquelas arroladas no texto constitucional.

Não obstante as garantias processuais conferidas ao adulto serem sempre extensíveis ao adolescente, especialmente aquelas do art. 5º da Constituição Federal, o constituinte optou por reforçá-las, impondo nos incs. IV e V do § 3º do art. 227 outras duas exclusivas:

”Art. 227. […]
§ 3º […].
IV - garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar específica;
V - obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade”.

No campo da legislação infraconstitucional, as garantias individuais (arts. 106 a 109) e processuais (arts. 110 e 111) do adolescente a quem se atribui a autoria de ato infracional são objeto da Lei nº 8.069/90, e sua observação deverá ser tão rigorosa quanto aquelas constitucionalmente relacionadas. Defendendo que os direitos e as garantias ao adolescente podem partir do Estatuto interpretado conforme a Constituição, Rosa aponta que podem ser observadas as seguintes modificações procedimentais:

”a) direito de defesa técnica, com tempo e meios adequados, inclusive na remissão; b) direito à presunção de inocência e liberdade como regra, com excepcionalidade da internação provisória; c) direito de recorrer em liberdade; d) direito a um Juiz natural e competente; e) direito à ampla defesa, com intimação para todos os atos processuais, inclusive precatória; f) direito ao silêncio e de não se incriminar; g) vedação da reformatio in pejus; h) vedação do uso de provas ilícitas, salvo em benefício da defesa; i) direito à publicidade do processo em relação ao eventual autor do ato infracional; j) direito de jurisdicionalização da Execução da medida socioeducativa; l) direito de estar presente nos atos processuais e se confrontar com as testemunhas e informantes; m) prescrição da medida socioeducativa; n) direito de solicitar a presença de seus pais e defensores a qualquer tempo; o) direito de não ficar internado provisoriamente por mais de quarenta e cinco dias; p) impetrar habeas corpus e mandado de segurança; q) não-utilização de provas produzidas fora do princípio do contraditório; r) assistência médica, social, psicológica e afetiva; e s) análise das condições da ação infracional em decisão fundamentada”2).


Primeiras considerações


Ao receber notícias de prática de ato infracional, antes de qualquer medida o Promotor de Justiça deverá observar se:

Caso a apuração de veracidade da notícia não pertença a Justiça da Infância e Juventude, o Promotor deverá encaminhá-la a quem de fato seja pertinente. Por outro lado, se a conduta averiguada não caracterizar infração penal – ou seja, não configurar prática de ato equiparado ao fato típico e antijurídico -, deverá proceder ao arquivamento, nos moldes do que disciplina o art. 181 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Por fim, se a conduta estiver sendo atribuída à criança (até 12 anos incompletos), deverá enviar a questão ao Conselho Tutelar (art. 136, I, do ECA), ou, na falta deste, à autoridade judiciária competente (art. 262 do ECA), que adotará dentre as medidas protetivas do art. 101 a mais aconselhável ao caso concreto.



1)
A nota completa está disponível em: <www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sedh/noticias/ultimas_noticias/ not160207>. Acesso em: 06 jun. 2008.
2)
ROSA, Alexandre Morais da. Introdução crítica ao ato infracional: princípios e garantias constitucionais. 1.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 163-168.