Tabela de conteúdos

4.8. O Promotor de Justiça como fiscal da lei


O Estatuto da Criança e do Adolescente aponta a necessidade de o Ministério Público ser ouvido em diversas oportunidades. Caso não se proceda à oitiva indicada, poderá caracterizar-se a nulidade de todo o processo.

Diante da importância das manifestações do Promotor de Justiça, nos processos e procedimentos afetos aos interesses da criança e do adolescente, o nono capítulo deste Manual destina-se à atuação do Ministério Público na modalidade de fiscal da lei.

Antes de tratarmos diretamente das situações previstas na Lei nº 8.069/90, é necessário comentar as peculiaridades das atribuições típicas das atividades na modalidade de custos legis.


Peculiaridades da atuação na qualidade de "custos legis"


Do latim, custos legis significa “o guardião da lei”. Apesar de as origens históricas do Ministério Público estarem diretamente ligadas ao poder do Estado de acusar, ou seja, de promover a ação penal, após a Revolução Francesa (1789), nasceu um Parquet delineando a divisão dos Poderes do Estado:

”[…] no momento em que os reis deixam de realizar justiça pessoalmente, delegando tal função aos magistrados, surge a necessidade de um órgão fiscalizador da atuação dos juízes, o Ministério Público“1).

O sistema processual civil brasileiro prevê duas formas de atuação do Ministério Público:

Dal Pozzo (2003, p. 688-689) aponta que a figura de um guardião da ordem legal surge no Brasil como herança do direito francês; todavia, até hoje não existe um conceito científico para a terminologia custos legis. Ao citar Pontes de Miranda, o autor afirma que

”[…] a expressão fiscal da lei apenas evita o trabalho mental de se precisar qual figura, e devemos riscá-la de toda a exposição científica”2).

Apesar de algumas teses da doutrina processualista, a dicotomia entre parte e custos legis existe. Quando atua como parte, o Parquet assume os mesmos ônus e recebe as mesmas prerrogativas conferidas às partes, constituindo-se vértice da relação processual triangular. Ao atuar como fiscal da lei, o representante do Ministério Público perde estas características.


a) A obrigatoriedade da intervenção
De acordo com o Código de Processo Civil, quando a lei considerar obrigatória a intervenção do Ministério Público, a parte interessada deverá promover-lhe intimação, sob pena de nulidade do processo (art. 84, do CPC).

O Estatuto da Criança e do Adolescente, no mesmo sentido, determinou que nos processos que tratem de interesse da criança e do adolescente, quando não for parte, o Ministério Público atuará como fiscal da lei, sendo sua presença obrigatória, sob pena de ser reconhecida a nulidade de todo o processo (art. 202, do ECA).

Vários motivos levaram o legislador a conferir tamanha importância à intervenção ministerial na modalidade de custos legis. Dal Pozo3), a respeito da matéria, entende que a imprescindibilidade da atuação do Parquet ocorrerá sempre porque:

“1ª Quando a parte litigante se apresente de tal maneira inferiorizada que, sem a participação do Ministério Público, não estaria assegurada a igualdade das partes no processo […];
2ª Quando a condição pessoal da parte torna seu direito indisponível ou disponível de forma limitada;
3ª Quando está em jogo um bem da vida (independentemente da qualidade de seu titular), seja material, seja imaterial, que é fundamental para a sobrevivência da sociedade, o que, normalmente, se pode aferir pela nota da indisponibilidade absoluta ou relativa que o atinge;
4ª Quando o bem da vida tem por titulares uma porção significativa dos membros da sociedade (como os interesses difusos ou coletivos)”.

Diante de tudo isso, a atuação ministerial nos procedimentos atinentes à infância e juventude é evidente. Uma vez que seu representante poderá e deverá influenciar na decisão da lide, não deve ser subestimada sua atuação a título de custos legis.


b) A intimação
O Estatuto da Criança e do Adolescente determinou em seu art. 203 que a intimação do Ministério Público se dará necessariamente de modo pessoal.

Tal regra já encontrava igual disciplina no Código de Processo Civil, conforme se depreende da leitura do §2º do art. 236: “[…] A intimação do Ministério Público, em qualquer caso, será feita pessoalmente”. A mesma lógica foi adotada na Lei Orgânica do Ministério Público (Lei nº 8625/93), que confirma tal necessidade.

Apenas por meio da intimação pessoal está garantida a regularidade do processo; somente assim haverá certeza absoluta do conhecimento das decisões judiciais. Não há que se falar em intimação por Diário Oficial, devendo o cartório judicial remeter os autos ao Ministério Público para tomar ciência de cada decisão.


c) A falta da intervenção
Conforme exposto anteriormente, a falta da intervenção do Ministério Público, quando a lei considerá-la obrigatória, culminará na nulidade do feito, o que será declarado de ofício pelo Juiz ou a requerimento de qualquer interessado (art. 204 do ECA e arts. 84 e 246 do CPC).

O art. 246 do Código de Processo Civil indica expressamente:

”Art. 246. É nulo o processo, quando o Ministério Público não for intimado a acompanhar o feito em que deva intervir.
Parágrafo único. Se o processo tiver corrido, sem conhecimento do Ministério Público, o juiz o anulará a partir do momento em que o órgão devia ter sido intimado”.

Trata-se de causa de nulidade absoluta, ou seja, o vício é insanável, de modo que, por contrariar o interesse público, não é admitida sua convalidação. A autoridade judiciária deverá, assim que constatá-la, declará-la de ofício, independentemente de provocação das partes. Estas, por sua vez, poderão alegá-la a qualquer tempo, não havendo oportunidade para alegação da preclusão.

Contudo, assim como ocorre no processo civil, a declaração de nulidade não poderá beneficiar a parte que lhe deu causa (art. 243 do CPC).

Embora a lei declare que a não intervenção do Parquet torna nulo o feito, não se pode ignorar o fato de que parte da doutrina pretende dar-lhe nulidade apenas relativa. Machado e Tesheiner4) defendem que, antes de declarar tal nulidade, o Juiz deveria remeter os autos ao Ministério Público, que, por sua vez, decidiria se houve ou não prejuízo dos interesses para o qual foi chamado a defender. Dessa maneira, o Ministério Público poderia optar pelo não pronunciamento da nulidade. De acordo com os autores, caberia ao Ministério Público, e não ao Poder Judiciário, decidir acerca da existência de interesse público ou de prejuízo decorrente de sua própria intervenção, citando o seguinte parecer:

”Temos-nos convencido de que o melhor posicionamento é o que sustenta a viabilidade da sanabilidade do vício pela ratificação manifestada pelo Ministério Público de primeiro ou de segundo grau na hipótese deste considerar ausente o prejuízo para o incapaz. Ora, se a função de assistência visa ao prevalecimento do interesse do autor ou réu hipossuficiente e a sentença proferida atende integralmente a esse interesse, ainda que para tal não haja contribuído o Parquet, não há motivo que justifique a anulação. Muito mais relevante para o Estado e a sociedade é o reconhecimento do interesse do incapaz, que é indisponível, do que a estrita observância do meio para se chegar a esse fim. A anulação neste caso, e a bem da verdade, só teria o condão de prejudicar o assistido. Por tais motivos é que entendemos aplicável à intervenção da curadoria de incapazes a regra contida no § 2º do art. 249 do Código de Processo Civil e o princípio da instrumentalidade nele consagrado, uma vez que em tais situações o sucesso da parte é sinônimo do sucesso da defesa espontânea do incapaz e, conseqüentemente, do interesse que o inc. I do art. 82 quis resguardar. Pelo contrário, se na causa houver sucumbência parcial do hipossuficiente, caberá ao órgão do Parquet analisar com cuidado todas as nuanças do processo para, então, concluir se é mais vantajoso pedir a anulação (percebida a possibilidade de melhor sorte na demanda com o retrocesso e a atividade ministerial coadjuvante) ou ratificar todos os atos do incapaz (se percebida a adequação da sentença aos fatos provados com eficiência nos autos)”.

Por ter atuação capaz de orientar a decisão da autoridade judiciária, espera-se que o Promotor de Justiça da Infância e Juventude prime pela intervenção em todos os atos processuais, cumprindo atribuições constitucionais e estatutárias, e não apenas os requisitos formais da lei.


d) A forma de atuação
O Estatuto da Criança e do Adolescente, assim como o Código de Processo Civil – cujas previsões lhe são aplicadas subsidiariamente (art. 152 do ECA) –, prevê condições à atuação do Ministério Público na modalidade de fiscal da lei. Determina o art. 83 do Código de Processo Civil:

”Art. 83. Intervindo como fiscal da lei, o Ministério Público:
I - terá vista dos autos depois das partes, sendo intimado de todos os atos do processo;
II - poderá juntar documentos e certidões, produzir prova em audiência e requerer medidas ou diligências necessárias ao descobrimento da verdade”.

No mesmo sentido, a Lei nº 8.069/90, ao prever a intervenção obrigatória do Parquet nos procedimentos afetos à infância e à juventude em que não for parte, facultou-lhe vista dos autos depois das partes, permitindo-lhe ainda juntar documentos e requerer diligências (art. 202 do ECA).

As manifestações do representante do Ministério Público deverão necessariamente ser fundamentadas, conforme determinam o texto constitucional (art. 129, inc. VIII, da CF) e o estatutário (art. 205 do ECA).


As previsões estatutárias


Realizadas as ponderações imprescindíveis a respeito da atuação do Promotor de Justiça na modalidade de fiscal da Lei, passa-se a identificar as ocasiões em que o legislador estatutário previu expressamente a atuação nessa modalidade. Antes, no entanto, recorde-se a determinação do art. 202:

“Nos processos e procedimentos em que não for parte, atuará obrigatoriamente o Ministério Público na defesa dos direitos e interesses de que cuida esta Lei”.


a) Nos procedimentos de cunho familiar


b) Nas medidas socioeducativas


c) No afastamento provisório dirigente de entidade de atendimento
Para decretar o afastamento provisório do dirigente de entidade de atendimento à criança e ao adolescente, a autoridade judiciária deverá ouvir o Ministério Público (art. 191, parágrafo único, do ECA).


d) Nos procedimentos não disciplinados pela Lei nº 8.069/90
Caso seja apurada a necessidade de, em nome da garantia do direito da criança e do adolescente, ser intentada medida judicial não correspondente a procedimento previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente ou em outra lei que lhe seja aplicada subsidiariamente, é facultado à autoridade judiciária investigar os fatos e ordenar de ofício as providências necessárias, devendo antes, para tanto, ouvir o Ministério Público (art. 153 do ECA).


e) Nas infrações administrativas
As ações de responsabilidade pelo cometimento de infração administrativa às normas de proteção à criança e ao adolescente, quando interpostas por outro legitimado que não o Parquet (Conselho Tutelar ou servidor cadastrado – art. 194 do ECA), decorrido o prazo para a defesa, deverá ser conferida vista dos autos ao Ministério Público para manifestação (art. 196 do ECA).


f) Na apuração de irregularidade em entidade de atendimento
Assim como ocorre com o procedimento que apura infração administrativa, quando o procedimento de apuração de irregularidade em entidade de atendimento não tiver sido proposto pelo Ministério Público, mas sim por outro legitimado (Conselho Tutelar ou por meio de portaria de autoridade judiciária – art. 191 do ECA), deverá ser conferido o prazo de cinco dias, a contar da audiência, para o representante do Parquet apresentar suas alegações (art. 193, §1º, do ECA).


1)
MAIA NETO, Cândido Furtado. Direitos humanos aplicados. Dia Nacional do Ministério Público. Disponível em: <http://www.direitoshumanos.pro.br/curiosidades. php?id=130>. Acesso em: 09 set. 2008.
2)
DAL POZO, Antônio Araldo Ferraz. “Art. 202” e “Art. 204”. In: CURY, Munir (coord). Estatuto da criança e do adolescente comentado. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 688-689.
3)
DAL POZO, 2003, p. 686-687.
4)
MACHADO, Orandina. O alfabeto da amamentação. Trabalho apresentado como requisito à conclusão do Curso de Manejo Ampliado da Amamentação, oferecido Clínica Interdisciplinar de Apoio à Amamentação, Florianópolis, 2008. Disponível in: 278 - Centro de Apoio Operacional da Infância e Juventude. <http://www.aleitamento.com/a_arts..asp?id=3&id_art.=1787&id_subcategoria=4>. Acesso em: 25 jul. 2008; TESHEINER, José Maria. Ministério Público e nulidade. Disponível in: <http://www.tex.pro.br/> Acesso em: 13 ago. 2008.