Tabela de conteúdos

1.5. O Ministério Público e suas atribuições e garantias como cláusulas pétreas ou superconstitucionais


O papel constitucional das cláusulas pétreas


As cláusulas pétreas exercem papel de suma importância em uma Constituição democrática e cidadã como é a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Nelas estão assentadas todas as garantias máximas da sociedade, as quais são protegidas contra o poder reformador.

A Constituição Federal de 1988 arrola as cláusulas pétreas ou superconstitucionais no § 4º do art. 60, onde consta:

“Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I- a forma federativa de Estado;
II- o voto direto, secreto, universal e periódico;
III- a separação dos Poderes;
IV- os direitos e garantias individuais.”

A respeito do assunto, escreveu Oscar Vilhena Vieira:

“No Brasil um amplo grupo de cláusulas superconstitucionais foi estabelecido como cerne inalterável do texto de 1988. O enrijecimento desses dispositivos por força do art. 60, § 4º e incisos, da Constituição constitui uma resposta às diversas experiências autoritárias de nossa história, nas quais os princípios e direitos, agora entrincheirados como cláusulas superconstitucionais, foram sistemática e institucionalmente violados. A adoção dessas cláusulas limitadoras do poder de reforma também parece corresponder a uma alteração do próprio modelo constitucional adotado em 1988. A Constituição de 1988 é uma das representantes mais típicas do constitucionalismo de caráter social ou dirigista […]”1).

A interpretação das cláusulas pétreas não pode ser conduzida por métodos interpretativos fechados, de forma que a interpretação meramente gramatical é rechaçada. A interpretação constitucional adequada, consoante melhor entendimento doutrinário, é aquela que possa retirar do rol das cláusulas pétreas a sua melhor e mais legítima eficácia social. Com isso, a interpretação dessas cláusulas superconstitucionais é aberta, flexível, no sentido ampliativo. Por exemplo, na leitura do inciso IV do § 4º do art. 60 devem estar incluídos os direitos coletivos, tendo em vista que esses direitos estão, ao lado dos direitos individuais, inseridos no plano da teoria dos direitos e das garantias constitucionais fundamentais (Título II, Capítulo I, da CF/88). Nesse sentido, já sustentamos:

“Assim, apesar das concepções em sentido contrário, o melhor entendimento tem sustentado que o art. 60, § 4º, da CF/88, não deve ser interpretado restritivamente. O Direito Coletivo, como direito constitucional fundamental, beneficia-se do sistema constitucional das cláusulas pétreas e está protegido contra as reformas constitucionais. Ademais, no Estado Democrático de Direito (art. 1º, da CF/88), a tutela jurídica é integral, a Direito Coletivo e a Direito Individual, não havendo razão para qualquer discriminação que represente restrição a um ou a outro”2).

Nesse sentido, também afirmou Sarlet:

“Todas estas considerações revelam que apenas por meio de uma interpretação sistemática se poderá encontrar uma resposta satisfatória no que concerne ao problema da abrangência do art. 60, § 4º, inc. IV, da CF. Que uma exegese cingida à expressão literal do referido dispostivo constitucional não pode prevalecer parece ser evidente […] não há como negligenciar o fato de que a nossa Constituição consagra a idéia de que constituímos um Estado democrático social de Direito, o que transparece claramente em boa parte dos princípios fundamentais, especialmente no art. 1º, incs. I, III, e art. 3º, incs. I, III e V. Com base nestas breves considerações, verifica-se, desde já, a íntima vinculação dos direitos fundamentais sociais com a concepção de Estado na nossa Constituição. Não resta qualquer dúvida de que o princípio do Estado Social, bem como os direitos fundamentais sociais, integram os elementos essenciais, isto é, a identidade de nossa Constituição, razão pela qual já se sustentou que os direitos sociais (assim como os princípios fundamentais) poderiam ser considerados – mesmo não estando expressamente previstos no rol das ‘cláusulas pétreas’ – autênticos limites materiais implícitos à reforma constitucional […]”.3).

Oscar Vilhena Vieira, ao apresentar estudo sobre a Constituição e sua Reserva de Justiça, afirma que não deve prevalecer a interpretação literal do art. 60, § 4º, IV, da CF/88, pois, para a compreensão dos direitos fundamentais, deve levar-se em conta os elementos indispensáveis à realização da dignidade humana e

“[…] não como um conjunto finito de direitos positivados com uma ou com outra denominação, ou, ainda, numa ou outra posição dentro do texto constitucional […]”.

Conclui o autor que a supremacia dos direitos como cláusulas superconstitucionais não decorre de classificações arbitrárias, mas da sua exigibilidade para a realização da dignidade4).

Escreve Uadi Lammêgo Bulos sobre as cláusulas pétreas:

“[…] são aquelas que possuem um supereficácia, ou seja, uma eficácia total, como é o caso dos incisos I a IV, infra. Daí não poderem usurpar os limites expressos e implícitos do poder constituinte secundário. Logram eficácia total, pois contêm uma força paralisante de toda a legislação que vier a contrariá-las, de modo direto ou indireto”5).


Pós-positivismo jurídico e o Neoconstitucionalismo


a) Pós-positivismo

Afirma Luís Roberto Barroso que a abertura do caminho para um amplo conjunto, ainda inacabado, de reflexões sobre o Direito, sua interpretação e sua função social, decorreu da superação histórica do jusnaturalismo e do fracasso político do positivismo. O pós-positivismo jurídico pretende superar a legalidade estrita, mas não despreza o direito posto. Sem recorrer a categorias metafísicas, a nova concepção teórica procura estabelecer uma leitura moral do Direito. A teoria da justiça é que inspiraria a interpretação e a aplicação do ordenamento jurídico, excluindo, contudo, voluntarismos e personalismos, especialmente os judiciais. Nesse conjunto de concepções ricas e heterogêneas, ainda em construção, estão a atribuição de normatividade aos princípios e a fixação de suas relações com os valores e as regras. Há uma necessária reaproximação entre o Direito e a Filosofia, impondo-se também, entre as várias diretrizes de mudança paradigmática, a reabilitação da razão prática e da argumentação jurídica, a implementação de uma nova hermenêutica constitucional e o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais com base na dignidade humana6).

A expressão pós-positivismo, porém, é equívoca e poderá guardar vários significados, tendo em vista a sua ampla abertura conceitual. Contudo, a doutrina que tem enfrentado o tema faz a análise do assunto a partir da guinada do direito constitucional e da inserção dos seus princípios como diretrizes fundamentais da ordem jurídico-democrática. O pós-positivismo abrangeria todas as concepções de pensamento que procuram valorizar os princípios como mandamentos de otimização de uma ordem jurídica, democrática, pluralista e aberta de valores. As concepções mais atuais em torno do neoconstitucionalismo estão inseridas no gênero pós-positivismo7).

Antonio Carlos Diniz e Antônio Cavalcanti esclarecem que o pós-positivismo jurídico constitui, em linhas gerais, um novo paradigma no plano da teoria jurídica, que objetiva contestar as insuficiências, aporias e limitações do juspositivismo formalista tradicional. Afirmam que o próprio termo pós-positivismo, que também é conhecido como não positivismo ou não positivismo principiológico, é detentor de um status provisório e genérico, na sua categoria terminológica, e a sua utilização não é pacífica, inclusive entre os autores que partilham de suas teses axiais. Esclarecem, ainda, que as suas bases filosóficas são ecléticas e compõem uma constelação de autores, os quais mantêm ponto de contato com concepções de um tardio Gustav Radbruch e passam pelas influências da teoria da justiça de John Raws, além de incorporarem elementos da filosofia hermenêutica e as bases da teoria do discurso de Habermas. No quadro da concepção pós-positivista, afirmam que seriam destacáveis cinco aspectos:

Diz a doutrina, ao estudar o tema, que o pós-positivismo não visa à desconstrução da ordem jurídica, mas à superação do conhecimento convencional com base nas ideias de justiça e de legitimidade, inserindo, para tanto, os princípios constitucionais, expressos ou implícitos, como a síntese dos valores consagrados na ordem jurídica9). A nova concepção tem influenciado decisivamente a criação de uma hermenêutica constitucional inovadora.

A própria concepção de sistema jurídico sofre transformações: de sistema jurídico fechado e autossuficiente para sistema jurídico aberto, móvel e composto de valores10).

O pós-positivismo coloca o constitucionalismo em substituição ao positivismo legalista, com profundas mudanças em alguns parâmetros, entre elas convém destacar: valores constitucionais no lugar da concepção meramente formal em torno da norma jurídica; ponderação no lugar da mera subsunção e fortalecimento do Judiciário e dos Tribunais Constitucionais quanto à interpretação e à aplicação da Constituição, em substituição à autonomia inquebrantável do legislador ordinário11).

A metodologia do pós-positivismo inseriu a hermenêutica como o capítulo mais relevante para o novo Direito Constitucional, iniciando-se a superação da metodologia clássica, que pregava a interpretação-subsunção, por uma nova interpretação constitucional criativa: a interpretação-concretização12).

Paulo Bonavides arrola as principais conquistas resultantes da nova hermenêutica do constitucionalismo da segunda metade do século XX:



b) Neoconstitucionalismo

Já o novo constitucionalismo é a denominação atribuída a uma nova forma de estudar, interpretar e aplicar a Constituição de modo emancipado e desmistificado. A finalidade é superar as barreiras impostas ao Estado Constitucional Democrático de Direito pelo positivismo meramente legalista, gerador de bloqueios ilegítimos ao projeto constitucional de transformação, com justiça, da realidade social13).

O neoconstitucionalismo objetiva superar justamente essas barreiras interpretativas impostas pelo positivismo legalista14). Lenio Luiz Streck entende que a superação de tais obstáculos poderá ser viabilizada em três frentes:

Luís Roberto Barroso esclarece que o neoconstitucionalismo pode ser estudado em três aspectos. Primeiro, pelo aspecto histórico, com a análise das transformações do direito constitucional depois da 2ª Grande Guerra Mundial, especialmente por força da Lei Fundamental de Bonn (1949) e das Constituições da Itália (1947), de Portugal (1976) e da Espanha (1978). Também merece ser citada a Constituição Federal do Brasil de 1988. Segundo, pelo aspecto filosófico, o que deve ser realizado pelo estudo das vertentes teóricas que compõem o pós-positivismo jurídico. Terceiro, pelo aspecto teórico, o qual engloba o estudo da força normativa da Constituição, da expansão da jurisdição constitucional e do desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional16). No mesmo sentido, também são os ensinamentos de Eduardo Cambi, o qual aponta o neoprocessualismo como decorrência do neoconstitucionalismo17).

O neoconstitucionalimo propõe, assim, a superação do paradigma do direito meramente reprodutor da realidade para um direito capaz de transformar a sociedade, nos termos do modelo constitucional previsto na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (arts. 1º, 3º, 5º, 6º, etc.). Essa superação deve ser realizada baseando-se no Estado Democrático de Direito, de forma a proporcionar o surgimento e a implementação de ordenamentos jurídicos constitucionalizados18). Propõe-se também a concepção da Constituição como sistema aberto de valores, dinâmico em suas estruturas e transformador da realidade social.

O plano da efetivação concreta dos direitos constitucionais, individuais e coletivos é o ponto central para o neoconstitucionalismo. A implementação material desses direitos, especialmente no plano coletivo, que é potencializado, transformará a realidade social, diminuindo as desigualdades quanto ao acesso aos bens e valores inerentes à vida e à dignidade da pessoa humana. Para isso, é imprescindível a construção de novos modelos explicativos que superem as amarras construídas em um passado de repressão e até mesmo de indiferença do Estado em relação aos reais problemas sociais.

A própria interpretação do texto constitucional no plano do neoconstitucionalismo deve ser compreendida a partir da sua aplicação (efetivação). Como disse Lenio Luiz Streck, a Constituição será o resultado de sua interpretação, que tem o seu conhecimento no plano do ato aplicativo como produto da intersubjetividade dos juristas que emerge da complexidade das relações sociais19). No neoconstitucionalismo, a interpretação da Constituição é também aberta e pluralista e a ideia que gira em torno da construção de uma sociedade aberta dos intérpretes da Constituição, conforme fundamenta Peter Häberle20), corresponde às novas posturas constitucionalistas, o que mantém perfeita sintonia com a principiologia do Estado Democrático de Direito, implantada na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (arts. 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, etc.).

Convém destacar que deve ser considerada a advertência feita por determinado setor da doutrina, no sentido da necessidade de uma visão mais equilibrada em torno do neoconstitucionalismo, de sorte a evitar posturas radicais que possam colocar em risco a democracia, a segurança jurídica e outros valores inerentes ao Estado Democrático de Direito21).

As cláusulas superconstitucionais no neoconstitucionalismo devem ser protegidas contra o poder reformador e devem, ainda, ser efetivadas e concretizadas materialmente, assumindo uma função ativa. Constituem, assim, ao mesmo tempo, função de proteção e função de efetivação/concretização da Constituição e é nesse contexto que devem ser interpretadas.

Nesse sentido, concluiu Oscar Vilhena Vieira:

“O Estado democrático-constitucional tem historicamente articulado a convivência de um Direito com pretensão de legitimidade e um poder coercitivo que garante respaldo a esse Direito e, ao mesmo tempo, é por ele domesticado. A finalidade de uma teoria das cláusulas superconstitucionais é que o processo de emancipação humana, que o constitucionalismo democrático vem realizando, possa ser preservado e expandido ao longo do tempo […]”22).


O Ministério Público como cláusula pétrea


O art. 127, caput, da CF/88, diz expressamente que o Ministério Público é instituição permanente. Com base na interpretação lógica e na sua correta e perfeita relação com a interpretação teleológica, verifica-se que a Constituição, ao estabelecer que o Ministério Público é instituição permanente, está demonstrando que a Instituição é cláusula pétrea que recebe proteção total contra o poder reformador, ao mesmo tempo em que impõe a sua concretização social como função constitucional fundamental. Nesse sentido, aduziu Cláudio Fonteles: “Se o Ministério Público é instituição permanente, enquanto existir a concepção constitucional do Estado brasileiro, como posta na chamada Carta-cidadã – a Constituição Federal de 1988 – ele jamais poderá ser extinto”23).

Não bastasse isso, observa-se que o Ministério Público tem o dever de defender o regime democrático, conforme está expresso no próprio art. 127, caput, da CF/88. O regime democrático, na sua condição de regime do Estado da cidadania brasileira, é cláusula pétrea, com previsão, inclusive, no art. 60, § 4º, incisos II e IV, da CF/88. Ora, se a Instituição ministerial é defensora do regime democrático, torna-se inquestionável a sua inserção no plano das cláusulas pétreas.

Nesse sentido, manifestou Emerson Garcia:

“Além da necessária adequação material que deve existir entre referido preceito e a legislação infraconstitucional, o fato de o Constituinte originário ter considerado o Ministério Público uma Instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado traz reflexos outros, limitando, igualmente, o próprio poder de reforma da Constituição. Com efeito, partindo-se da própria natureza da atividade desenvolvida pelo Ministério Público, toda ela voltada ao bem-estar da coletividade, protegendo-a, em especial, contra os próprios poderes constituídos, a sua existência pode ser considerada como ínsita no rol dos direitos e garantias individuais, sendo vedada a apresentação de qualquer proposta de emenda tendente a aboli-la (art. 61, § 4º, IV, da CF/1988)”24).

Ademais, o Ministério Público também é instituição essencial à Justiça, outra cláusula superconstitucional. Se o Ministério Público é essencial à Justiça e se a Justiça é cláusula pétrea, ele também é cláusula pétrea.


Os princípios, as atribuições e as garantias constitucionais do Ministério Público como cláusulas pétreas ou superconstitucionais: a impossibilidade de sua eliminação ou restrição e a possibilidade de sua ampliação


Os princípios, as atribuições e as garantias constitucionais do Ministério Público conferem a própria dimensão constitucional da Instituição, além de revelarem o seu verdadeiro e legítimo papel social. A supressão ou a restrição desses princípios e dessas atribuições representam a supressão e a restrição do próprio Ministério Público em sua dimensão substancial.

O Ministério Público, como instituição constitucional, é cláusula pétrea. Como consequência, os seus princípios e as suas atribuições e garantias constitucionais, os quais lhe dão dimensão constitucional e revelam o seu legítimo valor social, também estão inseridos como cláusulas pétreas ou superconstitucionais. Essas cláusulas compõem o núcleo de uma Constituição no Estado Democrático de Direito e, por isso, não podem ser eliminadas nem restringidas. Todavia, podem ser ampliadas.

Da mesma forma, o caráter nacional do Ministério Público e a sua indivisibilidade, unidade, independência funcional, orçamentária e administrativa também são cláusulas superconstitucionais.

Tais diretrizes interpretativas vinculam o legislador constitucional e infraconstitucional, o administrador, o particular e todos os operadores do Direito, bem como as instituições de fiscalização do Ministério Público. Não fosse isso, ainda impõem, pela intensa carga de concretização normativa que carregam, a efetivação concreta da Constituição e das suas instituições democráticas, dentro das quais se insere o Ministério Público.

Essas assertivas são reforçadas com os ensinamentos de Emerson Garcia:

“Por ser inócua a previsão de direitos sem a correspondente disponibilização de mecanismos aptos à sua efetivação, parece-nos que a preservação da atividade finalística do Ministério Público está associada à própria preservação dos direitos fundamentais, o que reforça a sua característica de cláusula pétrea e preserva a unidade do texto constitucional”.

Conclui o autor:

“Além disso, a limitação material ao poder de reforma alcançará, com muito maior razão, qualquer iniciativa que, indiretamente, busque alcançar idêntico efeito prático (v.g.: redução das garantias e prerrogativas de seus membros e supressão da autonomia da Instituição, tornando-a financeiramente dependente do Executivo e, com isto, inviabilizando a sua atuação, que é o elemento indicativo de sua própria existência)”25).

Esse mesmo posicionamento é reforçado pelas substanciosas considerações do jurista Eduardo Ritt:

[…] “Considerando que a Constituição Federal de 1988, no seu art. 60, § 4º, inciso I, erigiu, como cláusula pétrea, a forma federativa, cujo contexto engloba, constitucionalmente, o regime democrático, tanto em relação às regras constitucionais para sua consecução, quanto às regras constitucionais para a sua fiscalização, e considerando, ainda, que o Ministério Público foi colocado como fiscal do regime democrático e da ordem jurídica, também neste sentido o Ministério Público torna-se cláusula pétrea, assim como as prerrogativas e garantias dos seus membros”26).

Todavia, não é razoável interpretar as garantias e os princípios constitucionais do Ministério Público para servirem de barreira que impeça a eficácia social da atuação da Instituição. Com isso, as prerrogativas do órgão da Instituição não podem ser utilizadas para o benefício particular do seu próprio titular. Nesses casos, princípios como a independência funcional e a inamovibilidade se destinam a proteger o cargo contra investidas arbitrárias, quaisquer que sejam elas. O membro do Ministério Público não poderia, por exemplo, utilizar-se da independência funcional para deixar de cumprir atribuição constitucionalmente estabelecida; da mesma forma, a inamovibilidade não pode servir de óbice à redistribuição de atribuições em determinada comarca ou unidade de serviço quando patentemente injusta e desproporcional.

A interpretação, portanto, das garantias e das atribuições do Ministério Público como cláusulas superconstitucionais deve ser direcionada para proteger a Instituição, de modo a fortalecer os seus compromissos constitucionais com a sociedade e com os valores que compõem o regime democrático.


1)
VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça: um ensaio sobre os limites materiais ao poder de reforma. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 26.
2)
ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito processual coletivo brasileiro: um novo ramo do direito processual. São Paulo: Saraiva, p. 629.
3)
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 403-404.
4)
E acrescenta: “Assim, aqueles direitos que possam ser moralmente reivindicados e reacionalmente justificados, enquanto elementos essenciais à proteção da dignidade humana e que habilitem a democracia, como procedimento para a tomada de decisão entre seres racionais, iguais e livres, devem ser protegidos como superconstitucionais – estejam eles positivados por intermédio de normas constitucionais ou decorram dos princípios adotados pela Constituição ou, ainda, de tratados de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, o que é expressamente admitido pelo § 2º do art. 5º da Constituição”. (VIEIRA, 1999, p. 245-6.).
5)
BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. 4. ed., rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 775.
6)
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). In: BARROSO, Luís Roberto. Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 58, 2007. p. 133.
7)
A respeito, formulando crítica ao positivismo e demonstrando sua incompatibilidade com o neoconstitucionalismo, escreveu Streck: “Daí a possibilidade de afirmar a existência de uma série de oposições/incompatibilidades entre o neoconstitucionalismo (ou, se assim se quiser, o constitucionalismo social e democrático que exsurge a partir do segundo pós-guerra) e o positivismo jurídico. Assim:
  • a) o neoconstitucionalismo é incompatível com o positivismo ideológico, porque este sustenta que o direito positivo, pelo simples fato de ser positivo, é justo e deve ser obedecido, em virtude de um dever moral. Como contraponto, o neoconstitucionalismo seria uma ‘ideologia política’ menos complacente com o poder;
  • b) o neoconstitucionalismo não se coaduna com o positivismo enquanto teoria, estando a incompatibilidade, neste caso, na posição soberana que possui a lei ordinária na concepção positivista. No Estado constitucional, pelo contrário, a função e a hierarquia da lei têm um papel subordinado à Constituição, que não é apenas formal, e, sim, material;
  • c) também há uma incompatibilidade entre neoconstitucionalismo com o positivismo visto como metodologia, porque esta separou o direito e a moral, expulsando esta do horizonte jurídico […]”. (STRECK, Lenio Luiz. A hermenêutica filosófica e as possibilidades de superação do positivismo pelo (neo)constitucionalismo. In: STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel Severo (Org.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 155.)
No mesmo sentido, vale conferir: ALMEIDA, Gregório Assagra de. Codificação do direito processual coletivo brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 35-40.
8)
DINIZ, Antonio Carlos; CAVALCANTI, Antônio. Pós-positivismo. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (Coord.). Dicionário de filosofia do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 650-654.
9)
Nesse sentido, se posiciona Barroso: “[…] o pós-positivismo não surge com o ímpeto da desconstrução, mas como uma superação do conhecimento convencional. Ele inicia sua trajetória guardando deferência relativa ao ordenamento positivo, mas nele reintroduzindo as idéias de justiça e legitimidade”. (BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro: pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo. In: BARROSO, Luís Roberto (Org.). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2003. p. 28.
10)
BARROSO, 2003. p. 34-35.
11)
Nesse sentido, Alexy acrescenta: “A la polémica entre constitucionalistas y legalistas subyacen profundas diferencias sobre la estructura del sistema jurídico. Por ello, una respuesta bien fundamentada a la cuestión acerca de quién tiene razón puede ser respondida sólo sobre la base de una teoría del sistema jurídico […]”. − A polêmica entre constitucionalistas e legalistas subjazem profundas diferenças sobre a estrutura do sistema jurídico. Por isso, uma resposta bem fundamentada a essa questão acerca de quem tem razão pode ser respondida somente com fundamento em uma teoria do sistema jurídico. (tradução livre pelo autor). (ALEXY, Robert. El concepto y la validez del derecho. Trad. Jorge M. Seña. 2. ed. Barcelona: Editorial Gedisa S.A., 1997. p. 159-161.).
12)
BONAVIDES, Paulo. Direito constitucional. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 592.
13)
A esse respeito, se posiciona Daniel Sarmento: “A palavra ‘neoconstitucionalismo’ não é empregada no debate constitucional norte-americano, tampouco no que é travado na Alemanha. Trata-se de um conceito formulado sobretudo na Espanha e na Itália, mas que tem reverberado bastante na doutrina brasileira nos últimos anos, principalmente depois da ampla divulgação que teve aqui a importante coletânea intitulada ‘Neoconstitucionalismo(s)’, organizada pelo jurista mexicano Miguel Carbonell e publicada na Espanha em 2003”. (SARMENTO, Daniel. Neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. In: LEITE, George Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais e Estado constitucional: estudos em homenagem a J.J. Gomes Canotilho. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 11.).
14)
Adverte Sarmento que os adeptos do neoconstitucionalismo embasam suas concepções em ramificações teóricas bem heterogêneas, abrangendo, assim, entre outros, os pensamentos de Ronald Dworkin, Robert Alexy, Peter Häberle, Gustavo Zagrebelshy, Luigi Ferrajoli e Carlos Santiago Nino: “[…] nenhum destes se define hoje, ou já se definiu, no passado, como neoconstitucionalista. Por outro lado, tanto entre os referidos autores com entre aqueles que se apresentam como neoconstitucionalistas constata-se uma ampla diversidade de posições jusfilosóficas e de filosofia política: há positivistas e não positivistas, defensores da necessidade de uso do método na aplicação do direito e ferrenhos opositires do emprego de qualquer metodologia na hermenêutica jurídica, adeptos do liberalismo político, comunitaristas e procedimentalistas. Neste quando, não é tarefa singela definir neoconstitucionalismo, talvez porque, como já revela o bem escolhido título da obra organizada por Carbonell, não exista um único neconstitucionalismo, que corresponda a uma concepção teórica clara e coesa, mas diversas visões sobre o fenômeno jurídico na contemporaneidade, que guardam entre si alguns denominadores comuns relevantes, o que talvez justifique sejam agrupadas sob um mesmo rótulo, mas compromete a possibilidade de uma conceituação mais precisa”. (LEITE; SARLET, 2009, p. 11-12.
15)
Escreve Streck: “[…] Da incindibilidade entre vigência e validade e entre texto e norma, características do positivismo, um novo paradigma hermenêutico-interpretativo aparece sob os auspícios daquilo que se convencionou chamar de giro lingüístico-hermenêutico. Esse ‘linquistic turn’, denominado também de giro ‘lingüistico-ontológico’, proporcionou um novo olhar sobre a interpretação e as condições sob as quais ocorre o processo compreensivo. Não mais interpretamos para compreender e, sim, compreendemos para interpretar, rompendo-se, assim, as perspectivas epistemológicas que coloca(va)m o método como supremo momento da subjetividade e garantia da segurança (positivista) da interpretação”. (STRECK; ROCHA, 2005, p. 159.).
16)
Acrescenta Barroso: “Fruto desse processo, a constitucionalização do Direito importa na irradiação dos valores abrigados nos princípios e regras da Constituição por todo o ordenamento jurídico, notadamente por via da jurisdição constitucional, em seus diferentes níveis. Dela resulta a aplicabilidade direta da Constituição a diversas situações, a inconstitucionalidade das normas incompatíveis com a Carta Constitucional e, sobretudo, a interpretação das normas infraconstitucionais conforme a Constituição, o aumento da demanda por justiça por parte da sociedade brasileira e a ascensão institucional do Poder Judiciário provocaram, no Brasil, uma intensa judicialização das relações políticas e sociais”. (BARROSO, 2007, p. 129-173.).
17)
CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. In: FUX, Luiz; NERY JUNIOR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda (Coords). Processo e Constituição: estudos em homenagem ao Professor José Carlos Barbosa Moreira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 664-72.
18)
Nesse sentido, escreve Streck: “[…] Em síntese, o fenômeno do neoconstitucionalismo proporciona o surgimento de ordenamentos jurídicos constitucionalizados, a partir de uma característica especial: a existência de uma Constituição ‘extremamente embebedoura’ (persuasiva), invasora, capaz de condicionar tanto a legislação como a jurisprudência e o estilo doutrinário, a ação dos agentes públicos e ainda influenciar diretamente nas relações sociais”. (STRECK; ROCHA, 2005, p. 160.) Com abordagem sobre o neoconstitucionalismo, inclusive com inúmeros artigos e texto de capa nesse sentido, conferir: (Neo)constitucionalismo: ontem, os códigos, hoje as constituições. In: Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, v. 1, n. 2, 2004; e também: CARBONEL, Miguel (Org.). Neoconstitucionalismo(s). 2. ed. Madrid: Editorial Trotta S.A., 2005
19)
Diz ainda Streck: “Ora, a construção das condições para a concretização da Constituição implica o entendimento da ‘Constituição como uma dimensão que banha todo o universo dos textos jurídicos, transformando-os em normas, isto porque a norma é sempre produto da atribuição de sentido do intérprete, o que ocorre sempre a partir de um ato aplicativo, que envolve toda a historicidade e a faticidade, enfim, a situação hermenêutica em que se encontra o jurista/intérprete. Por isto, Gadamer vai dizer que o entender contém sempre um fator de ‘applicatio’. Entender sem aplicação não é um entender”. (STRECK, Lenio Luiz. Ontem, os Códigos; hoje, as Constituições: o papel da hermenêutica na superação do positivismo pelo neoconstitucionalismo. In: ROCHA, Fernando Luiz Ximenes; MORAES, Filomeno (Coord.). Direito constitucional contemporâneo: estudos em homenagem ao professor Paulo Bonavides. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 541.).
20)
Escreveu Häberle: “Interpretação constitucional tem sido, até agora, conscientemente, coisa de uma sociedade fechada. Dela tornam parte apenas os intérpretes jurídicos ‘vinculados às corporações’ (zünftmässige Interpreten) e aqueles participantes formais do processo constitucional. A interpretação constitucional é, em realidade, mais um elemento da sociedade aberta. Todas as potências públicas, participantes materiais do processo social, estão nela envolvidas, sendo ela, a um só tempo, elemento resultante da sociedade aberta e um elemento formador ou constituinte dessa sociedade ([…] weil Verfassungsinterpretation diese offene Gesellschaft immer von neunem mitkonstituiert und Von ihr Konstituiert wird). Os critérios de interpretação constitucional hão de ser tanto mais abertos quanto mais pluralista for a sociedade”. (HÄRBELE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997. Reimpressão 2002. p. 13.).
21)
Nesse sentido, optando por uma concepção mais moderada em torno do neoconstitucionalismo, manifestou Sarmento: “Contudo, eu assumo o rótulo, sem constrangimentos, se o neconstitucionalismo for pensado como uma teoria constitucional que, sem descartar a importância das regras e da subsunção, abra também espaço para os princípios e para a ponderação, tentando racionalizar o seu uso. Se for visto como uma concepção que, sem desprezar o papel protagonista das instâncias democráticas na definição do direito, reconheça e valorize a irradiação dos valores constitucionais pelo ordenamento, bem como a atuação firme e construtiva do Judiciário para proteção e promoção dos direitos fundamentais e dos pressupostos da democracia. E, acima de tudo, se for concebido como uma visão que conecte o direito com exigências de justiça e moralidade crítica, sem enveredar pelas categorias metafísicas do jusnaturalismo”. (LEITE; SARLET, 2009, p. 49.).
22)
VIEIRA, 1999, p. 227.
23)
FONTELES, Cláudio. O art. 127 da Constituição Federal: reflexões. In: MOURA JÚNIOR, Flávio Paixão; ROCHA, João Carlos de Carvalho (Coord.). Ministério Público e a ordem social justa. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 1.
24)
GARCIA, Emerson. Ministério Público: organização, atribuições e regime jurídico. 2. ed. rev. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 47.
25)
GARCIA, 2005, p. 48.
26)
RITT, Eduardo. O Ministério Público como instrumento de democracia e garantia constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 184.