A teoria crítica do Direito é um movimento de pensamento aberto e composto de várias correntes teóricas que têm, como causa comum, a apresentação de uma concepção emancipadora em torno do Direito, de forma a desmistificar outras concepções teóricas que representem a manutenção de uma realidade socialmente injusta ou possam provocar retrocessos em relação às conquistas democráticas da sociedade ou possam impedir a evolução do processo democrático de mudanças sociais1).
Ao escrever sobre as vertentes do pensamento crítico, diz Luiz Fernando Coelho que a teoria crítica do Direito não pretende ser inovadora. Sua finalidade é o redirecionamento e mesmo a reunificação dos esforços e das empreitadas que foram realizados em diferentes campos do conhecimento, os quais levam, de modo lento, mas seguro, ao núcleo do pensamento crítico: adesão ao real, descoberta da verdade pela recusa de negar, distorcer ou omitir a realidade. Essa ruptura com o senso comum teórico, levada a efeito pela dialética da participação, não representa um salto quantitativo do formalismo ao concretismo, do idealismo ao realismo, do metafísico ao histórico, mas o longo processo de construção teórica, composto de várias etapas importantes para a formação da teoria crítica do direito, sendo que as categorias com que ela trabalha foram constituídas no plano de um contexto interdisciplinar cujo ponto de convergência é uma visão crítica da sociedade. Afirma Coelho que a seleção das vertentes da teoria crítica do Direito pode conduzir ao risco da omissão, mas as principais concepções que influenciaram a construção do pensamento jurídico crítico estariam situadas no campo da epistemologia, da semiologia, da sociologia e da psicanálise, sem excluir os antecedentes no campo da própria jusfilosofia2).
A epistemologia crítica propôs-se responder à necessidade de um novo paradigma, capaz de combater e ultrapassar os obstáculos relativos à objetividade das ciências sociais, de forma a contribuir para a solução dos grandes problemas da humanidade, muitos relacionados a uma neutralidade científica falsa. Assim, como esclarece Luiz Fernando Coelho, a epistemologia passa a constituir a vertente do pensamento crítico em dois momentos. O primeiro, com o questionamento sobre a pretensão de verdade estabelecida no paradigma neopositivista3). O segundo, por intermédio da constatação de que o critério da objetividade simplesmente elidia os significados brotados da produção social que não pudessem ser reduzidos ao plano de uma objetividade empírica ou analítica, mas não tinha o condão de destruí-la como verdade4).
A constatação de que as interações sociais são envolvidas pela expressão comunicativa foi fundamental para o pensamento crítico. A dimensão comunicativa do existir humano passou a ser enfatizada pela filosofia contemporânea e, com isso, conferiu à linguagem e à comunicação social espaço privilegiado, causando uma revolução linguística. É o que muito bem ressalta Luiz Fernando Coelho, destacando que a dimensão pragmática do discurso científico produziu efeito na ciência do direito, proporcionando a fundamentação lógica e semiótica da nova hermenêutica das normas jurídicas, abrindo as portas para as concepções contemporâneas da nova retórica, tais como a de Perelmann, a tópica de Viheweg e a lógica do concreto. Com esta, inicia-se a teoria crítica do Direito5).
A concepção psicanalítica de Sigmund Freud também contribuiu para a formação do pensamento crítico, especialmente em razão de o pesquisador ter ampliado seus estudos para explicar os fenômenos culturais6). Afirma Luiz Fernando Coelho que o pensamento jurídico dogmático tem resistência às concepções de Freud, tendo em vista que a psicanálise releva que a norma jurídica seria um produto da própria natureza humana e não o resultado de uma criação racional. Há, com isso, uma mudança de paradigma epistemológico quanto aos planos da autonomia e da racionalidade do Direito, os quais orientam o pensamento jurídico desde Platão e Sócrates7).
A vertente fenomenológica, apesar de voltada para uma metafísica que a afasta da realidade, ajudou a ampliar os horizontes do pensamento crítico, seja em razão de ter aberto as portas para uma aproximação ao conceito de estrutura social, na sua condição de objeto que envolve o sujeito que a ela conhece, seja por ter influenciado a criação das categorias importantes do pensamento crítico, principalmente a conceituação de práxis8).
Outras vertentes contribuíram para a construção do pensamento crítico, conforme destaca Luiz Fernando Coelho9).
A sociologia da compreensão, especialmente por força do pensamento de Max Weber, ao estabelecer o conceito de tipo-ideal como conceito histórico-concreto, contribuiu para a ampliação de novos horizontes ao pensamento crítico10).
A filosofia marxista desenvolveu as bases do neo-humanismo partindo da concepção que tem o ser humano como a manifestação do ser social. A criação do pensamento teórico crítico de dimensão social, formado sem preconceitos e dogmas, sofreu forte influência da filosofia marxista. O marxismo e a concepção teórica crítica, dele decorrente, produziram dois resultados fundamentais para o desenvolvimento do pensamento crítico:
A teoria crítica da sociedade, desenvolvida pela Escola de Frankfurt, especialmente por força dos estudos de Walter Benjamin, Max Horkheimer, Theodor Adorno, Hebert Marcuse e Jürgen Habermas, constitui também uma das grandes vertentes de constituição do pensamento jurídico crítico. A referida escola de pensadores alemães procurou desenvolver estudos críticos em relação às repercussões sociais sobre o modo pelo qual é concebida e manipulada a ciência no âmbito da sociedade capitalista contemporânea12).
Contudo, há na doutrina quem destaque alguns momentos na história de expressão do pensamento crítico, especialmente no âmbito da produção acadêmica. Nesse sentido, Luís Roberto Barroso afirma que, especialmente nas décadas de 70 e 80 do século XX, houve significativa manifestação, com produção na área acadêmica, do pensamento crítico, enfatizando a Critique du Droit, na França, o movimento Critical Legal Studies, nos Estados Unidos e, anteriormente, a Escola de Frankfurt, que lançou na Alemanha as bases para a construção de uma teoria crítica13). Antonio Carlos Wolkmer também indica a origem filosófica contemporânea da teoria crítica do Direito na Escola de Frankfurt14). Todavia, Luís Alberto Warat e Albano Marcos Bastos Pêpe apontam que o pensamento crítico contemporâneo teve início nas Universidades francesas, na década de 70 do século XX15).
Em síntese, a teoria crítica do Direito pretende questionar o pensamento jurídico tradicional em vários pontos de suas premissas básicas, tais como a neutralidade, a completude, a cientificidade e, com isso, destacar o caráter ideológico do Direito, buscando a sua equiparação à Política, dentro de um discurso que, estabelecido com base em uma prática libertária e transformadora, objetiva combater o uso do Direito como técnica e instrumento de manutenção da hegemonia da classe dominante16).
Como escreve Michel Miaille, a teoria crítica do Direito permite não apenas o descobrimento das diferentes dimensões escondidas em relação a uma realidade que se encontra em movimento mas também abre, principalmente, os caminhos para uma nova dimensão: a da emancipação17).
Em uma concepção crítica em torno da doutrina clássica sobre o humanismo abstrato, Joaquín Herrera Flores ressalta a importância de uma filosofia crítica em torno dos direitos humanos como produtos culturais, apontando como benefícios imediatos a movimentação de consciências e a denúncia do horror da tortura, da discriminação, da indiferença diante do ser humano e da destruição ecológica18).
A teoria crítica do Direito tem como principal objeto de sua análise outras concepções teóricas tradicionais e, nesse contexto, ela procura integrar as seguintes funções: a) deontológica19), palco da preocupação predominante do jusnaturalismo; b) ontológica20), para onde se volta o positivismo jurídico; c) a fenomenológica21), centro de preocupação do realismo jurídico22). Essa integração é feita de forma desmistificadora e emancipadora, como é próprio da natureza de um pensamento crítico que não se satisfaz com a mera descrição da realidade social ou com a simples interpretação fechada da norma e ou do sistema jurídico.23) Portanto, não se trata de uma concepção teórica pronta e acabada em torno do Direito e do próprio fenômeno jurídico.24)
Escrevem Luís Alberto Warat e Albano Marcos Bastos Pêpe que: a) no plano deontológico, a teoria crítica do direito teria a justiça como uma instância específica da ideologia reinante e, nesta dimensão, visa demonstrar que os problemas de valoração jurídica são opiniões ou crenças de uma visão de mundo da classe dominante; b) no plano ontológico, a teoria crítica do direito combate a neutralidade gnoseológica do positivismo jurídico para demonstrar o íntimo relacionamento existente entre o saber jurídico e o poder e, ao mesmo tempo, destacar que, apesar das tentativas de controle epistemológico, o conhecimento jurídico está política e ideologicamente determinado; c) no plano fenomenológico, a teoria crítica do direito defende a possibilidade de uso emancipatório do Direito e renega uma sociologia do direito do tipo positivista, de modo a demonstrar os benefícios de uma abordagem dialética do processo histórico-social do Direito. Como defensores de uma postura crítica em relação ao Direito, Warat e Pêpe afirmaram que os filósofos do Direito têm o dever moral de denunciar os graus crescentes de uma injustiça cada vez mais tolerada pela indiferença dos seres homens absorvidos pelo consumo e as trivialidades do dia a dia das grandes cidades.25)
No plano da filosofia da hermenêutica jurídica, a teoria crítica do Direito propõe a superação da dogmática jurídica clássica, em suas versões legalista, conceptualista e analítica26). Propõe, também, a superação da zetética27), nas suas dimensões teleológica, sociológica, axiológica, realista e culturalista28). Assim, para a teoria crítica, tanto na concepção dogmática29) quanto na zetética30), o direito continua sendo instrumento de dominação.
Como afirmou Antônio Alberto Machado, a teoria crítica do Direito objetiva combater o mito da neutralidade do Direito, de modo a demonstrar que a interpretação e a aplicação da lei, realizadas de forma supostamente neutra e distante da realidade social, é uma manutenção servil dos interesses das classes superiores, consagrados na norma jurídica. Torna-se, assim, fundamental a estratégia que busca um pluralismo jurídico mais democrático, explorando as contradições, as fissuras do ordenamento jurídico positivo31).
Lênio Luiz Streck defende uma nova crítica do Direito. Essa nova concepção, diz ele, procura contrapor a experiência, a historicidade e a faticidade e representa um importante passo para a definição do pensamento jurídico como pensamento prático, como pensamento orientado à coisa mesma. A finalidade é contribuir para que o jurista se dê conta de que nas situações da vida existe similitude, porém não há identidade. Os traços caracterizadores da situação particular não podem ser desconsiderados por força do caráter abstrato da pauta geral 32). A tarefa de uma nova crítica do Direito será a de estabelecer condições para o plano da reflexão jurídica, permitindo a compreensão da crise do Direito e do Direito como crise, de modo a possibilitar a construção de fatores necessários para a sua superação33).
Esclarece Luiz Fernando Coelho que, no plano epistemológico, a teoria crítica do Direito possui categorias próprias, as quais não constituem um a priori formal ou material e sim estruturas de pensamento que foram construídas para o fenômeno jurídico como seu objeto reflexivo. São, assim, categorias da teoria crítica: sociedade; ideologia; alienação e práxis34). O Direito, assim, passa a ser compreendido em função da sociedade, da ideologia, da alienação e da práxis, diversamente da concepção positivista. Elas não são estudadas como objeto do Direito; este é que é estudado pelo ponto de vista da sociedade, da ideologia, da alienação e da práxis. A sociedade não é concebida como ordem e progresso, mas como movimento social35). A ideologia é compreendida como uma imagem manipulada que a sociedade tem sobre ela mesma36). A alienação é o próprio produto da ideologia dominante, configurando-se como situação de inconsciência da maioria dos integrantes da sociedade sobre o papel que nela desempenham bem como sobre seus direitos fundamentais37). Por fim, a práxis, apresentada como a dimensão ética da teoria crítica do Direito, seria a união do saber com o fazer, visando, precipuamente, à transformação da realidade social38).
Com efeito, a teoria crítica do Direito, por intermédio de uma visão libertadora e emancipadora, construtiva e prospectiva, propõe a revisão e a superação da hermenêutica jurídica tradicional.
Em relação ao que foi analisado, observa-se que a teoria crítica do Direito é uma concepção teórica aberta e flexível. Ela propõe uma visão teórica emancipadora, livre de preconceitos ou de barreiras artificiais da racionalidade, bem como uma práxis transformadora da realidade social. Teoria e práxis são compreendidas em conjunto. A dialética da participação é sua proposta metodológica, a qual exige uma interação interdisciplinar efetiva, que tenha o condão de abranger várias dimensões teóricas num compromisso não só de compreender e interpretar, mas também e principalmente, compreender e interpretar para transformar a realidade39).
Tomando a teoria crítica do Direito como uma das diretrizes reflexivas, propôs-se uma nova leitura constitucional, superadora de uma visão clássica em torno da summa divisio Direito Público e Direito Privado, que não corresponde ao Estado Democrático de Direito brasileiro e, por ainda prevalecer, tem impedido a transformação da realidade social40).
Há, entre outros, quatro grandes fundamentos que negam a summa divisio clássica. Primeiro, por ela partir de uma visão autoritária que impõe privilégios ao poder público, contrariamente aos direitos e interesses individuais e coletivos. Segundo, porque a summa divisio clássica pressupõe, pelo menos em tese, a separação entre o Estado e a Sociedade, dualismo esse incompatível com a concepção de Estado Democrático de Direito, pois todo poder emana do povo e em seu nome deverá ser exercido (art. 1º, parágrafo único, da CF/88). Na verdade, o Estado Democrático de Direito é a dimensão organizacional da própria sociedade. Terceiro, porque, em uma concepção crítica, de dimensão transformadora e na concepção do novo constitucionalismo, não basta o reconhecimento do Direito; torna-se fundamental também a sua proteção e a sua efetivação concreta. Portanto, são imprescindíveis a compreensão e o enquadramento metodológico do Direito no plano de sua proteção e de sua efetivação, não sendo suficiente a natureza jurídica ou a qualidade de parte como parâmetros de enquadramento metodológico. Quarto, porque, no caso precisamente do Brasil, a Constituição Federal consagrou expressamente uma nova summa divisio constitucionalizada e relativizada – Direito Coletivo e Direito Individual –, inserindo-a no plano da teoria dos direitos e das garantias constitucionais fundamentais (Título II, Capítulo I, da CF/88), que compõe o núcleo de uma Constituição democrática, como a brasileira, e, por isso, impõe as verdadeiras diretrizes para enquadramento metodológico dos modelos explicativos do sistema jurídico.
Não é de se admitir, portanto, nenhuma concepção fechada que não faça da Constituição um constituir transformador da realidade social. Da mesma forma, não podem ser aceitas concepções fechadas que têm o Direito como mera técnica – ou como mera técnica de dominação. O Direito é instrumento de transformação, com justiça, da realidade social e deve ser compreendido como tal. O Direito é ciência e não mera técnica jurídica.
O Direito como mera técnica de manutenção do poder não tem compromisso, como muito bem enfatizou Rosa Maria de Andrade Nery, nem com o ser humano, nem com os seus valores, como aconteceu com o massacre humanitário provocado pelo nazismo alemão, em que havia técnica jurídica, mas não havia valores, nem a identificação do Direito como ciência41).
O enfoque sobre o acesso à justiça como movimento de pensamento constitui atualmente um dos pontos centrais de transformação do próprio pensamento jurídico, que ficou por muito tempo atrelado a um positivismo neutralizante que só serviu para distanciar o Estado de seu mister, a democracia do seu verdadeiro sentido e a justiça da realidade social.
Não há como pensar no Direito, hoje, sem pensar no acesso a uma ordem jurídica adequada e justa. Direito sem efetividade não faz sentido. Da mesma forma, não há democracia sem acesso à justiça, que é o mais fundamental dos direitos, pois dele, como manifestaram Mauro Cappelletti e Bryant Garth42), é que depende a viabilização dos demais direitos. Com efeito, a problemática do acesso à justiça é, atualmente, a pedra de toque de reestruturação da própria ciência do Direito.
O estudo do acesso à justiça pressupõe a compreensão dos problemas sociais. Não é mais aceitável o enfoque meramente dogmático-formalista. Cappelletti, um dos estudiosos mais autorizados a falar sobre a matéria, esclarece que o dogmatismo jurídico é uma forma degenerativa do positivismo jurídico, que conduziu a uma simplificação irrealística do próprio Direito ao seu aspecto normativo, deixando de lado outros valores não menos importantes, relacionados aos sujeitos, às instituições, aos procedimentos, aos deveres e às responsabilidades das partes, dos juízes e dos próprios juristas43).
A atenção dos juristas, antes voltada para a ordem normativa, hoje somente tem sentido se também direcionada para a realidade social em que esta ordem normativa está inserida44); está voltada para a efetividade dos direitos, principalmente para os direitos constitucionais fundamentais.
Assinala Roberto Omar Berizonce que a transformação do pensamento jurídico passa, fundamentalmente, por duas vertentes:
Novamente Cappelletti ressalta que o aspecto normativo do Direito não é renegado, mas visto como um dos elementos em relação aos quais devem ser observadas, em primeiro plano, as pessoas, as instituições e os processos, pois é por intermédio deles que o Direito vive, forma-se, desenvolve-se e impõe-se46).
Cappelletti chega a propor, para substituir a concessão unidimensional, limitada à análise da norma, uma concessão tridimensional do Direito e da sua análise, que se constitui:
Essa visão de acesso à justiça não representa apenas o acesso ao Judiciário, mas o acesso a todo meio legítimo de proteção e efetivação do Direito, tais como o Ministério Público, a Arbitragem, a Defensoria Pública, etc. Até no plano jurisdicional, o direito de acesso à justiça não é só o direito de ingresso ou o direito à observância dos princípios constitucionais do processo, mas também o Direito constitucional fundamental de obtenção de um resultado adequado da prestação jurisdicional (art. 5º, XXXV, da CF). A decisão que se projeta para fora, atingindo as pessoas, como resultado da prestação jurisdicional, deverá ser constitucionalmente adequada e justa48).
A concepção democrática do Direito impõe a união entre teoria e práxis, entre teoria e resultado, entre o Direito e sua efetividade material. Os modelos teóricos explicativos devem atentar para esse binômio: Direito-efetividade.
A própria ciência jurídica é atualmente concebida como uma ciência prática, voltada para casos concretos, e abrange as três dimensões da dogmática jurídica: a analítica, a empírica e a normativa. A conjugação dessas três dimensões revela o caráter integrativo e pluridimensional da ciência jurídica como ciência prática, que se desenvolve para a resolução de casos reais. Nesse sentido, Robert Alexy afirma que, por mais abstratos que possam ser os enunciados ou as teorias da ciência jurídica, eles estão sempre ligados à solução de casos, mais precisamente à fundamentação de juízos jurídicos concretos do dever-ser49).
A velha hermenêutica, que tinha a interpretação não valorativa da lei como a essência relativa à aplicação do Direito, é superada pela nova hermenêutica constitucional, cuja construção tem início após a Segunda Grande Guerra Mundial. Na nova hermenêutica, afirma Paulo Bonavides, concretizam-se preceitos constitucionais, de modo criativo, com a ponderação de valores, especialmente no plano dos direitos e das garantias constitucionais fundamentais, em relação aos quais a aplicabilidade imediata e a eficácia irradiante vinculatória geral são uns dos seus traços característicos50).
Por outro lado, o pensamento sistemático, construído e desenvolvido pelo positivismo legalista, tornou-se o principal responsável pela elaboração de modelos classificatórios ou de enquadramento teórico meramente abstratos, fechados, autossuficientes, dentro dos quais não havia preocupação com a efetividade dos direitos ou com a realidade social e concreta. Atualmente, passa-se por um momento em que devem ser considerados também os problemas, as situações concretas e, fundamentalmente, o plano da proteção e da efetivação dos direitos, como condições legitimantes do próprio Direito. O período atual é de transição, de mudança de paradigma e nele assume relevância extraordinária o pensamento problemático que vê o Direito também como problema. Theodor Viehweg foi um dos grandes responsáveis pelo início da virada paradigmática quando revisitou, com sua inserção no contexto da era atual, a tópica como técnica do pensamento que se orienta para o problema51).
Essas mudanças de paradigma encontram amparo na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e exigem novos modelos explicativos de enquadramento metodológico que levem em conta o Direito não só em relação ao que ele é, mas como ele deve ser para transformar a realidade social, como compromisso central do Direito e do próprio Estado Democrático de Direito. É fundamental a consideração da teoria e da práxis para que haja uma relação legítima e adequada de correspondência entre elas.
Na esteira desse raciocínio, defendeu-se um novo modelo explicativo, tomando em consideração duas das principais dimensões da nova concepção em torno do Direito no contexto do Estado Democrático:
No plano do Direito Processual, só existem dois tipos de processos: o processo de tutela jurídica de direito individual e o de tutela jurídica de direito coletivo. Em verdade, isso ocorre porque somente existem dois grandes blocos do Direito: Direito Individual e Direito Coletivo.
Ora, se as formas e os meios de proteção e de efetivação dos direitos ou são coletivas ou são individuais, impõe-se um novo modelo de summa divisio superador do modelo clássico Direito Público e Direito Privado, o qual não leva em conta o plano da proteção ou da efetivação do Direito, mas outros valores que não são legítimos para um sistema constitucional democrático e servem apenas como bloqueio na construção de novos modelos que possibilitem ao Direito tornar-se realmente instrumento de transformação da realidade social.
Norberto Bobbio dizia que não adianta só reconhecer direitos ou declará-los formalmente. O mais importante atualmente é saber como efetivá-los, como garanti-los, evitando-se, assim, que sejam violados continuamente53). Essa efetivação constitui a problemática do acesso à justiça, novo método de pensamento que confere à ciência jurídica uma nova dimensão conceitual e impõe uma revisão completa nos modelos clássicos de enquadramento conceitual e metodológico.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 demonstra preocupação quanto à proteção e à efetivação dos direitos, ao consagrar o acesso amplo e irrestrito à justiça (art. 5º, XXX), ao conferir dignidade constitucional a um rol enorme de ações constitucionais, individuais e coletivas, especialmente coletivas (art. 5º, LXVIII, LXIX, LXX, LXXI, LXXII, LXIII, e art. 129, III, etc.) e, também, ao determinar a aplicabilidade imediata dos direitos e das garantias constitucionais fundamentais (art. 5º, § 1º).
A aplicabilidade imediata dos direitos e das garantias constitucionais fundamentais é garantia constitucional fundamental e, portanto, cláusula pétrea, sendo-lhe incompatível qualquer interpretação restritiva. A aplicabilidade imediata tem incidência tanto em relação aos direitos e às garantias constitucionais fundamentais individuais quanto aos coletivos.
Consideraram-se essas diretrizes na sistematização da nova summa divisio, bem como para a fixação das regras e dos princípios de interpretação e aplicação do Direito Material Coletivo, em suas diversas dimensões54).
A exigência de efetividade dos direitos é diretriz que traça o espírito da CF/88; sua incidência alcança todos os planos do exercício do poder. A própria exigência de eficiência da administração pública, na condição de princípio da administração pública (art. 37, caput, da CF/88), decorre dessa visão principiológica em torno da efetividade dos direitos.
A própria compreensão da Constituição somente tem sentido se for levado em consideração o plano da sua aplicação. Pela nova hermenêutica constitucional, fala-se em interpretação-concretização da Constituição como lei fundamental. Portanto, o verdadeiro sentido da Constituição prende-se à sua concretização55).
A discussão atual em torno da proteção e da efetivação dos direitos, propondo a implantação de novas formas e de novos meios de solução de conflitos, é realmente o ponto mais importante para fazer do Direito um instrumento legítimo de transformação, com justiça, da realidade social. Não adianta somente a interpretação constitucional e a formulação de novas diretrizes teóricas. Os resultados concretos são essenciais e a explicitação de meios e canais, para o cumprimento dos compromissos assumidos no pacto constitucional, depende de uma visão crítica, como afirmou Konrad Hesse56).
Por outro lado, a discussão em torno dos pontos de tensão entre segurança jurídica e efetividade deve ser superada por uma pauta de análise que leve em conta, acima de tudo, a proteção e a efetivação dos direitos fundamentais57), principalmente aqueles que compõem as necessidades humanas básicas58).
Como analisar a relação entre a concepção crítica do Direito e as funções constitucionais do Ministério Público?
O Ministério Público brasileiro assumiu função social primordial com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (arts. 127/129 c/c o art. 1º, o art. 3º e o Título II). Passou a ser instituição de defesa do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, tornando-se instituição detentora de função promocional de mudança da realidade social.
Nesse contexto, não seria compatível com o papel constitucional do Ministério Público uma visão meramente fechada e unidimensional do fenômeno jurídico. É fundamental que se compreenda a Instituição e o seu compromisso constitucional por intermédio de uma visão pluridimensional do fenômeno jurídico. Essa visão deverá abranger a fenomenologia, a deontologia e a ontologia, contrapondo-as e desmistificando-as, de forma a extrair as diretrizes fundamentais para a atuação da Instituição na promoção efetiva da mudança da realidade social.
Para tanto, a Teoria Crítica do Direito, por englobar o Direito como aquilo que é e aquilo que deve e pode ser – isso em uma visão abrangente, emancipadora e transformadora –, contribui, e muito, para que o Ministério Público, como instituição fundamental de defesa social, possa melhor compreender e melhor exercer as suas funções constitucionais no processo de democratização da sociedade brasileira e de suas instituições fundamentais.
As categorias do pensamento crítico (sociedade, ideologia, alienação e práxis), já antes aqui analisadas, devem estar presentes em todas as reflexões que envolvam a atuação do Ministério Público e os seus compromissos constitucionais, principalmente os que estão diretamente relacionados com o princípio da transformação social, consagrado no art. 3º da CF/1988. Por intermédio dessas diretrizes teóricas e reflexivas, a Instituição e seus membros terão melhores condições para compreender adequadamente o próprio Direito e os desafios que existem para a garantia do acesso à justiça como um dos mais básicos e importantes direitos fundamentais.