2.1.3. Ação civil pública e controle difuso de constitucionalidade: a vinculação dos pedidos


Muito se discutiu – e ainda, em alguns setores, discute-se – sobre a possibilidade de se arguir a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo primário com ação civil pública (ACP).

Gilmar Ferreira Mendes assim expõe a questão:

“É que, como já enunciado, a ação civil pública aproxima-se muito de um típico processo sem partes ou de um processo objetivo, no qual a parte autora atua não na defesa de situações subjetivas, agindo, fundamentalmente, com escopo de garantir a tutela do interesse público. Não foi por outra razão que o legislador, ao disciplinar a eficácia da decisão proferida na ação civil, viu-se compelido a estabelecer que 'a sentença civil fará coisa julgada erga omnes'. Isso significa que, se utilizada com o propósito de proceder ao controle de constitucionalidade, a decisão que, em ação civil pública, afastar a incidência de dada norma por eventual incompatibilidade com a ordem constitucional acabará por ter eficácia semelhante à das ações diretas de inconstitucionalidade, isto é, eficácia geral e irrestrita”.1)

E conclui seu pensamento afirmando:

“Nessas condições, para que se não chegue a um resultado que subverta todo o sistema de controle de constitucionalidade adotado no Brasil, tem-se de admitir a completa inidoneidade da ação civil pública como instrumento de controle de constitucionalidade, seja porque ela acabaria por instaurar um controle direto e abstrato no plano da jurisdição de primeiro grau, seja porque a decisão haveria de ter, necessariamente, eficácia transcendente das partes formais”. 2)

Com o devido respeito ao entendimento acima, ousamos dele divergir.

Pensamos que toda celeuma que o tema provoca se resume à distinção que deve ser feita entre pedido e causa de pedir.

Com efeito, em artigo de doutrina, já afirmava, há muito, Almeida:

“A primeira tese a ser analisada mais detidamente concerne ao fato de os tribunais asseverarem ser impossível a declaração de inconstitucionalidade de lei municipal que institui 'taxa de iluminação pública' em sede de ação civil pública, utilizando-se, em regra, da argumentação segundo a qual a decisão proferida nesta seara possui efeito erga omnes.

No particular, entendo que nada mais correto porquanto uma decisão no sentido do reconhecimento da inconstitucionalidade não possuirá efeitos tão-somente inter partes e, sim, por força expressa de lei, erga omnes.

De efeito, consubstancia-se inconcebível a tratativa de inconstitucionalidade nas ações civis públicas. Todavia, o punctum dolens aí não reside, permissa venia. A argüição de inconstitucionalidade realizada em sede de ação civil pública, na maior parte das vezes, é trazida como mera causa de pedir, motivos que irão animar e dar base ao pedido. Este difere daquela posto que se restringe à condenação do Réu a obrigação de não fazer.

Portanto, incorre em profundo desvio de perspectiva o pensamento segundo o qual acoimar de inconstitucional uma lei seja a mesma coisa que pedir o reconhecimento ou declaração de sua inconstitucionalidade. Dessarte, faz-se mister, primeiramente, distinguir pedido e causa de pedir, para a determinação de uma linha de raciocínio estreme de obscuridade”.3)

E ainda:

“A questão prejudicial, como é de grande sabença, é aquela que interfere no mérito da questão, no conflito de interesses posto a julgamento e que, por isso, é questão prévia logicamente relacionada ao litígio. Miranda (1998, p. 128) verbera, sobre o assunto sob comento, que 'Na questão prejudicial, há comunicação de conhecimento, a ser apreciada pelo juiz, que funciona como antecedente lógico, sem ser preciso, ou sem ser provável formar processo separado. Pois bem. A inconstitucionalidade de uma lei quando argüida como mera motivação, causa de pedir, não faz coisa julgada, ou seja, não pertencerá ao comando da sentença posto que é quaestiones praeiudiciales. Dessarte, não é impossível ou processualmente incorreto o pedido da ação civil pública proposta porquanto não há pedido de reconhecimento de inconstitucionalidade da lei que instituiu a referida taxa”.4)

E, concluindo, asseverou Almeida:

“Vislumbra-se, portanto, que a tese da impossibilidade de argüição de inconstitucionalidade de lei em sede de ação civil pública está escorreita, não merecendo qualquer reparo. Porém, não menos certo é que o fato de ser cogitada como questão prejudicial naquela ação não terá, tal entendimento, as qualidades de imutabilidade e indiscutibilidade, próprias dos assuntos que estão sob o manto da coisa julgada”.5)

Portanto, quando a matéria é tratada à luz dos ensinamentos da processualística, com concepções rigorosas de pedido e causa de pedir, não há como se negar a possibilidade de arguição incidental de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo primário no bojo de um processo subjetivo, instaurado através da ação civil pública.

Nesse diapasão, o Supremo Tribunal Federal tem dado agasalho à tese acima exposta, na medida em que deixou consignado, no Recurso Extraordinário n° 424.993-6/DF, Relator Min. Joaquim Barbosa, ratificando precedentes anteriores, que:

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE. OCUPAÇÃO DE LOGRADOUROS PÚBLICOS NO DISTRITO FEDERAL. PEDIDO DE INCONSTITUCIONALIDADE INCIDENTER TANTUM DA LEI n° 754/1994 DO DISTRITO FEDERAL. QUESTÃO DE ORDEM. RECURSO DO DISTRITO FEDERAL DESPROVIDO. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL PREJUDICADO.
Ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Distrito Federal com pedidos múltiplos, dentre eles, o pedido de declaração de inconstitucionalidade 'incidenter tantum' da Lei Distrital n° 754/1994, que disciplina a ocupação de logradouros públicos no Distrito Federal.
Resolvida questão de ordem suscitada pelo relator no sentido de que a declaração de inconstitucionalidade de Lei n° 754/1994 pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal não torna prejudicado, por perda de objeto, o recurso extraordinário.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reconhecido que se pode pleitear a inconstitucionalidade de determinado ato normativo na ação civil pública, desde que 'incidenter tantum'. Veda-se, no entanto, o uso da ação civil pública para alcançar a declaração de inconstitucionalidade com efeitos 'erga omnes'. No caso, o pedido de declaração de inconstitucionalidade da Lei n° 754/1994 é meramente incidental, constituindo-se verdadeira causa de pedir.”. (grifo nosso).

No mesmo sentido, temos os seguintes arestos: Rcl. n° 2.224-2/SP; AI n° 476.058-3/MG; AI n° 504.856-1/ DF; RE n° 227.159-4/GO.

Divisa-se, destarte, que é possível, segundo a reiterada jurisprudência da nossa Suprema Corte, a arguição de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo primário por meio de ação civil pública. Adicione-se a tal assertiva que a natureza do interesse que se protege por esse meio processual é irrelevante para a plena possibilidade da arguição concreta de inconstitucionalidade, podendo figurar no conflito posto em juízo interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos, uma vez que a constitucionalidade de lei ou ato normativo é questão prévia concernente ao ato com densidade normativa objetivamente considerado, nada interferindo diretamente na qualidade do interesse que se protege.


1)
MENDES, Gilmar Ferreira. O controle incidental de normas no direito brasileiro. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 88, n. 760, p. 32-33, fev. 1999.
2)
MENDES, 1999, p. 33.
3)
ALMEIDA, Renato Franco de. O parquet na defesa dos direitos individuais homogêneos. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 790, p. 115, ago. 2001.
4)
ALMEIDA, 2001, p. 116.
5)
ALMEIDA, 2001, p. 118.