2.1. Foro privilegiado e o princípio da igualdade


“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, diz o caput do art. 5º, da Constituição Federal. O princípio, por certo, busca minorar, ao menos no plano da ideação, as grandes diferenças e desigualdades sociais existentes no País.

Não obstante, o texto constitucional prevê que certas autoridades públicas, como por exemplo, Presidente da República, Vice-Presidente, integrantes do Congresso Nacional, Ministros de Estado, Magistrados, membros do Ministério Público, Governadores, Prefeitos Municipais e outros, em razão da importância do múnus público que desempenham, são julgadas pelos tribunais superiores.

Comungamos com o entendimento de Guilherme de Souza Nucci, no sentido de que não existe razão jurídica que justifique o privilégio:

“[…] A doutrina, de maneira geral, justifica a existência do foro privilegiado como maneira de dar especial relevo ao cargo ocupado pelo agente do delito e jamais pensando em estabelecer desigualdades entre os cidadãos. Entretanto, não estamos convencidos disso. Se todos são iguais perante a lei, seria preciso uma particular e relevante razão para afastar o criminoso do seu juiz natural, entendido este como o competente para julgar todos os casos semelhantes ao que foi praticado. Não vemos motivo suficiente para que o Prefeito seja julgado na Capital do Estado, nem que o juiz somente possa sê-lo pelo Tribunal de Justiça ou o desembargador pelo Superior Tribunal de Justiça e assim por diante. Se à justiça cível todos prestam contas igualmente, sem qualquer distinção, natural seria que a regra valesse também para a justiça criminal […]”.1)

Não se trata, na ótica da Carta Magna, de quebra do princípio da igualdade. O objetivo do legislador constituinte seria o de proteger o cargo, não o seu ocupante. Coerente com tal premissa, findo o exercício do cargo ou mandato, não mais subsistindo os motivos que ensejaram o foro especial, o ex-agente político retorna à condição de cidadão comum e, como tal, responderá por eventuais delitos no juízo criminal de primeira instância.

A questão não é tranquila no nosso sistema jurídico.

Em um passado recente, o próprio Supremo Tribunal Federal entendeu que o chamado foro privilegiado deveria ser deferido aos ex-agentes políticos. A Súmula 394 daquele Sodalício, que vigorou desde os primórdios do período ditatorial 2), estabelecendo foro privilegiado para ex-agentes políticos, foi cancelada pela Corte Suprema em 25 de agosto de 1999. Evidentemente, o cancelamento da referida súmula desagradou a muitos setores diretamente atingidos pela mudança de posição do Pretório Excelso.

Em 24 de dezembro de 2002, foi editada, de afogadilho, a Lei nº 10.628/2002, alterando os dispositivos do art. 84 do Código de Processo Penal, atribuindo o foro privilegiado para ex-agentes políticos.

Em virtude de tal anomalia, a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP) ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal3), pleiteando a declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 10.628/2002.

No dia 15 de setembro de 2005, o Pleno do Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, julgou procedente a ADI, para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 10.628, de 24 de dezembro de 2002, que acrescera os §§ 1º e 2º do art. 84 do Código de Processo Penal. Atualmente, tramita no Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional nº 358/2005, que objetiva estender o foro por prerrogativa de função para os ex-agentes políticos. O texto proposto – “A competência especial por prerrogativa de função, em relação a atos praticados no exercício da função pública ou a pretexto de exercê-la, subsiste ainda que o inquérito ou a ação judicial venham a ser iniciados após a cessação do exercício da função” – a toda evidência entra em choque com o princípio da igualdade, uma vez que atribui privilégio pessoal a alguns cidadãos, apenas pelo fato de haverem exercido um munus público.

Em contrapartida, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprovou, recentemente, projeto de emenda à Constituição que acaba com o foro privilegiado para as autoridades do País nos casos de crimes comuns. Pelo projeto, somente os casos de crime de responsabilidade – que podem levar ao impeachment de um presidente da República – continuariam a ter julgamento por corte especial4).

Como se vê, a questão polêmica ainda não está solucionada.


1)
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 13. ed. rev., atual. e com. São Paulo: Forense, 2014. pág. 246.
2)
Editada em 03/04/64.
3)
ADI nº 2797.
4)
Vide: estadao.com.br/nacional/not_nac142425,0.htm – última consulta 18/04/08.