2.3. Hipóteses de coautoria e participação


Questão relevante e que tem suscitado dúvidas em membros do Ministério Público e Magistrados, diz respeito ao modo de proceder quando o operador do Direito se depara com condutas delituosas praticadas em concurso de pessoas, sendo que dentre elas existe um Chefe do Executivo Municipal.

A análise do problema há de ser balizada nas seguintes hipóteses:


Quanto aos crimes dolosos contra a vida


Nessas hipóteses, considerando que a Constituição Federal estabeleceu a competência do Tribunal Popular para os julgamentos de crimes dolosos contra a vida1) e, ainda, que o texto constitucional previu o julgamento dos prefeitos perante os Tribunais de Justiça2), não há dúvida, em princípio, de que o Prefeito será julgado pelo Tribunal de Justiça, por meio do Grupo de Câmaras Criminais3), e que o Tribunal do Júri julgará os demais corréus pelo mesmo delito.

Se, por um lado, o julgamento do mesmo fato delituoso por órgãos jurisdicionais distintos pode ensejar decisões contraditórias, v.g., o Tribunal de Justiça reconhece a existência do homicídio e condena o denunciado prefeito, enquanto o júri nega a ocorrência do episódio criminoso quanto aos corréus, por outro, não se pode perder de vista que o preceito constitucional que estabelece a competência do tribunal do júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida e aquele que prevê o foro por prerrogativa de função para os Chefes do Executivo possuem a mesma hierarquia e, como tal, devem ser respeitados.

O correto, portanto, é desmembrar os autos quanto ao prefeito e julgá-lo pelo Grupo de Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça, e julgar os demais réus pelo Tribunal do Júri. Até recentemente essa era a posição pacífica dos tribunais superiores.

A matéria foi assaz debatida no julgamento do Processo-Crime de Competência Originária, autos nº 1.0000.05.423941-3/000(1), realizado no dia 09 de julho de 2007 pelo 1º Grupo de Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, em que o Desembargador Antônio Carlos Cruvinel suscitou, de ofício, como preliminar, “[…] a avocação dos processos que se encontram em Primeiro Grau pela vis atractiva da competência originária deste Tribunal”. Em outras palavras, Sua Excelência pretendeu que o julgamento dos corréus, que não possuíam direito ao foro privilegiado, fossem também julgados pelo Tribunal de Justiça, para evitar eventuais decisões conflitantes entre a decisão do Grupo de Câmaras e do Tribunal do Júri. A preliminar foi rebatida pelos demais Julgadores, sob argumentos vários.

Sobre o tema, assim se manifestou o Desembargador Reynaldo Ximenes Carneiro:

“[…] Embora pareça razoável a tese sustentada pelo Des. Antônio Carlos Cruvinel, a respeito dela o Superior Tribunal de Justiça decidiu um caso em Minas Gerais, parece-me que da Comarca de Abre Campo, em que determinou que o julgamento do prefeito fosse feito pelo Tribunal de Justiça, e o do mandante e do que contratou o pistoleiro fosse feito na comarca. O julgamento não chegou a se realizar, porque, às vésperas, o prefeito renunciou, e o processo passou para a competência do juízo da comarca.
Além desse, o Supremo Tribunal Federal, por várias vezes, já desmembrou processos envolvendo vários réus, em que entre um dos denunciados, estava alguém sob jurisdição do Supremo. O Supremo entendeu que esse desdobramento era válido, podendo ser feito com fundamento no art. 80 do Código de Processo Penal […]”.

O posicionamento do Desembargador Joaquim Herculano Rodrigues foi do seguinte teor:

“[…] Inexistindo prerrogativa de foro para o co-réu, exsurge a competência do júri popular para julgá-lo, devendo os dispositivos constitucionais serem harmonizados, isto é, mantém-se a competência do Tribunal de Justiça para processar e julgar, originariamente, o prefeito (art. 29, X, CF); e, com relação ao co-réu, a competência é do Tribunal do Júri (art. 5º, inciso XXXVIII, alínea d, CF). Precedentes do STJ e STF […]”

Eis um trecho do voto da Desembargadora Jane Silva:

“Na realidade, tanto a competência do Tribunal do Júri, como a do Tribunal de Justiça para julgamento do prefeito são competências de natureza constitucional, portanto, se equivalem. Os dois comandos devem ser obedecidos, e não podemos admitir, com toda vênia ao eminente Des. Antônio Carlos Cruvinel, que normas de conexão determinadas por normas infraconstitucionais, como o Código de Processo Penal, possam prevalecer sobre normas de competência fixadas pela Constituição.
Assim, pedindo vênia ao eminente Des. Antônio Carlos Cruvinel, acompanho o posicionamento do Des. Herculano Rodrigues, por entender que, em virtude de disposição constitucional, as pessoas comuns que também foram envolvidas no fato criminoso devem ser julgadas pelo Tribunal do Júri, porque a Constituição Federal assim determina , enquanto o prefeito, também por determinação constitucional, deve ser julgado pelo Tribunal de Justiça, não prevalecendo as normas infraconstitucionais constantes do Código de Processo Penal”.

Em oportunidades distintas, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça já se manifestaram no sentido de que, em hipóteses tais, não existe a atração de julgamento de corréus em crimes dolosos contra a vida, sendo um deles detentor de foro por prerrogativa de função.

“COMPETÊNCIA – CRIME DOLOSO CONTRA A VIDA – INEXISTÊNCIA DE ATRAÇÃO – PREVALÊNCIA DO JUIZ NATURAL – TRIBUNAL DO JÚRI – SEPARAÇÃO DOS PROCESSOS.
[…]
O envolvimento de co-réus em crime doloso contra a vida, havendo em relação a um deles a prerrogativa de foro como tal definida constitucionalmente, não afasta, quanto ao outro, o juiz natural revelado pela alínea ‘d’ do inciso XXXVIII do artigo 5º da Carta Federal. A continência, porque disciplinada mediante normas de índole instrumental comum, não é conducente, no caso, à reunião dos processos. A atuação de órgãos diversos integrantes do Judiciário, com duplicidade de julgamento, decorre do próprio texto constitucional, isto por não lhe poder sobrepor preceito de natureza estritamente legal.
Envolvidos em crime doloso contra a vida Prefeito e cidadão comum, biparte-se a competência, processando e julgando o primeiro o Tribunal de Justiça e o segundo o Tribunal do Júri […]4)
HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIMES DE HOMICÍDIO TENTADO E CONSUMADO DUPLAMENTE QUALIFICADO CONTRA A MULHER DO PREFEITO, A MANDO DESTE. DECRETO DE PRISÃO PREVENTIVA. ARGÜIÇÃO DE EXCESSO DE PRAZO E FALTA DE PROVAS DA AUTORIA. IMPROCEDÊNCIA. COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA PARA PROCESSAR E JULGAR O PREFEITO, NÃO O CO-RÉU QUE NÃO POSSUI PRERROGATIVA DE FORO. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI. CISÃO DO PROCESSO. CONCESSÃO DE ORDEM DE OFÍCIO
[…]
5. Inexistindo prerrogativa de foro para o co-réu, exsurge a competência do Júri Popular para julgá-lo, devendo os dispositivos constitucionais serem harmonizados, isto é, mantém-se a competência do Tribunal de Justiça para processar e julgar, originariamente, o Prefeito (art. 29, inciso X, CF); e, com relação ao co-réu, a competência é do Tribunal do Júri (art. 5º, inciso XXXVIII, alínea d, CF). Precedentes do STJ e do STF”.5)

Em decisões recentes, no entanto, o Superior Tribunal de Justiça, com supedâneo em manifestações do Supremo Tribunal Federal, admitiu o julgamento de corréus em crimes dolosos contra a vida pelo Tribunal de Justiça.

No Habeas Corpus nº 42.576, de relatoria do Ministro José Arnaldo da Fonseca, da 5ª Turma do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, à unanimidade de votos, foi decidido:

“HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO TRIPLAMENTE QUALIFICADO. PRISÃO PREVENTIVA. DECRETO DEVIDAMENTE FUNDAMENTADO. ART. 312 DO CPP. REVOGAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. EXCESSO DE PRAZO. INSTRUÇÃO ENCERRADA. SÚMULA 52-STJ. PREFEITO. FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO. CONTINÊNCIA. UNIDADE DE PROCESSO E JULGAMENTO. GRADUÇÃO DE JURISDIÇÃO. COMPETENCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AUSÊNCIA DE NULIDADE ABSOLUTA.
[…]
O foro por prerrogativa de função relativo aos Prefeitos Municipais tem assento na Constituição Federal. Embora a competência do Tribunal do Júri também decorra de norma constitucional, o foro do Tribunal de Justiça prevalece sobre o Colegiado Popular, em razão da maior graduação daquele sobre este, conforme dispõe o art. 78, inciso III, do Código de Processo Penal.
Ordem parcialmente concedida para que seja determinada a remessa dos autos da Ação Penal nº 000.304.011.362-7, em trânsito perante o Juízo de Direito da Comarca de Abre Campo/MG, ao Eg. Tribunal de Justiça de Minas Gerais, tendo em vista a sua atração por continência ao foro por prerrogativa de função do co-réu e Prefeito […]”.

Em seu voto, o Ministro Relator fez alusão à decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, no Habeas Corpus nº 83.583/PE, da relatoria da Ministra Ellen Gracie, cuja ementa é do seguinte teor:

“COMPETÊNCIA. CRIME DOLOSO CONTRA A VIDA. ATRAÇÃO POR CONEXÃO DO CO-RÉU AO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO.
1. Tendo em vista que um dos denunciados por crime contra a vida é desembargador, detentor de foro por prerrogativa de função (CF, art. 105, I, ‘a’), todo os demais co-autores serão processados e julgados perante o Superior Tribunal de Justiça, por força do princípio da conexão. Incidência da Súmula 704/STF. A competência do Tribunal do Júri é mitigada pela própria Carta da República. Precedentes”.6)

Em seu voto, a Ministra Relatora transcreve a Súmula nº 704 daquele Sodalício, in verbis:

“Não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do co-réu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados”.

Pelo que se observa, estamos vivenciando uma mudança de postura do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal quanto à matéria que, como salientado, até recentemente era pacífica, no sentido de que, nas hipóteses de concurso de pessoas, sendo um deles detentor de foro privilegiado, deveria ser procedido ao desmembramento do feito, sendo julgado pelo Tribunal de Justiça somente aquele, e os demais, pelo Tribunal do Júri.


1)
Art. 5º, XXXVIII, “d”, CF.
2)
Art. 29, X, CF.
3)
Art. 21, II, do Regimento Interno do Tribunal de Justiça.
4)
STF - HC nº 70581-2- Alagoas – Rel. Ministro Marco Aurélio, j 21.09.1993 – DJ 29.10.1993
5)
STJ – HC nº 36.844 – MA (2004/0100656-7) – Rel. Ministra Laurita Vaz.
6)
HC 83.853-0 – Pernambuco, 2ª Turma, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 20.04.2004 – DJU 07.05.2004