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cap10:10-1-1

1.1. Evolução dos direitos humanos nos cenários internacional e nacional


Breve histórico


Muitas controvérsias rondam a busca da origem dos direitos humanos. Entretanto, não há como se negar que o humanismo religioso, o estoicismo e os antigos teóricos dos direitos naturais influenciaram o entendimento moderno de tais direitos. Assim, podemos verificar que textos religiosos como o Alcorão, a Bíblia e textos budistas já incorporavam princípios humanísticos e morais. Segundo Micheline R. Ishay:

“O conceito de direitos humanos não apenas tirou subsídios da descrição do amor fraterno universal, feita por Miquéias (Bíblia), São Paulo, Buda e outros, mas também, de maneira diferente, do amor universal desinteressado professado pelos estóicos, como Epicteto, e paladinos como Platão, Aristóteles e Cícero”1).

A Bíblia, por exemplo, possui diversas injunções que correspondem a conceitos de respeito e garantia dos direitos dos outros, como os comandos não matarás e não roubarás. Já Platão, em sua obra A República (c. 400 a.C), preconizava as ideias de verdade ou de formas representativas do universal e do absoluto. No entender do filósofo, só é possível alcançar a Justiça Absoluta quando os indivíduos conseguem cumprir as tarefas para as quais são aptos, em harmonia com o bem comum. Nesse conceito de bem comum, já se encontrava incorporada, por exemplo, a defesa de direitos iguais para a mulher, em uma época em que eram totalmente marginalizadas da vida política.

Durante o Iluminismo, período no qual a figura do Estado-nação brotava como um ente assegurador dos direitos seculares contra a autoridade papal, diversos pensadores e documentos políticos refletiram essa preocupação em relação a um modelo de Estado protetor e garantidor.

Micheline R. Ishay menciona:

“Thomas Hobbes definiu o Estado em termos seculares, como uma entidade destinada a proteger os direitos naturais do indivíduo à vida e segurança. Enquanto John Locke e Jean-Jacques Rousseau propugnavam um Estado concebido para garantir os direitos do indivíduo à propriedade, à representação política e à igualdade perante a lei, outros como Hugo Grotius, Abbé Charles de Saint-Pierre, Thomas Paine, Immanuel Kant e Maximilien Robespierre aprofundaram o debate propondo um alcance internacional para os direitos humanos”2).

É nesse período da história da humanidade que alguns textos, obras e leis elaborados influenciaram as discussões e a defesa dos direitos humanos. Para elucidar o exposto, podemos citar o livro de Hugo Grotius, O Direito da Guerra e da Paz (1625), no qual se desenvolvia o conceito de guerra justa, Leviatã (1652) de Thomas Hobbes, no qual se procurou estabelecer um sistema de paz mostrando que os indivíduos aglutinados em uma espécie de pacto social deveriam ter assegurado o direito à vida e a obra Dos Delitos e das Penas(1766), de César Beccaria. São também dessa época a Lei de Habeas Corpus (1679), documento liberal promulgado com o objetivo de corrigir as violações dos direitos e da liberdade pessoal pelo Estado, e a Declaração de Direitos (1689), através da qual se instituíram os direitos e liberdades dos súditos da Coroa, ambos de origem inglesa.

Posteriormente, na era industrial, com a consequente miséria urbana oriunda de um modelo econômico que priorizava a produção em detrimento do ser humano mão de obra, os socialistas desenvolveram uma concepção alternativa de direitos humanos, qual seja, a garantia de direitos que o capitalismo não proporcionava, tais como direitos à saúde, a condições adequadas de segurança no trabalho, à educação, à proibição do trabalho infantil e referentes à emancipação das mulheres, que, apesar de serem contingente considerável de mão de obra da indústria, ainda não gozavam da igualdade de direitos e liberdades em relação aos homens.

Durante esse período, a concentração das propriedades nas mãos dos ricos foi duramente atacada como meio de centralização da riqueza, em detrimento de uma demanda pelo mesmo direito de propriedade por parte dos pobres. A propriedade concentrada de terras e dos meios de produção era vista como forma de exclusão social, além de configurar exploração da mão de obra. São dessa época obras como O que é a Propriedade (1840), de Pierre-Joseph Proudhon, O Manifesto Comunista(1848), de Karl Marx e A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado(1884), de Engels.

No século XX, com a Revolução Bolchevique, em 1917, no meio da primeira Guerra Mundial, a luta pelo socialismo galgou outro nível, sendo que, paralelamente, a criação da Sociedade das Nações em 1919 representou um marco na agenda dos direitos humanos.

Todavia, somente após a Segunda Grande Guerra, o processo de universalização e internacionalização dos direitos humanos ganha força maciça.
As atrocidades cometidas pelo Nazismo, culminando no período beligerante, que foi palco dos mais terríveis horrores, chocaram a consciência da humanidade, deflagrando a necessidade de promoção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais em âmbito global.

Para elucidar o exposto, cita-se Comparato, que demonstra a crueldade dos campos de concentração do regime nazista, no trecho que se segue:

“Ao dar entrada num campo de concentração nazista, o prisioneiro não perdia apenas a liberdade e a comunicação com o mundo exterior. Não era, tão-só, despojado de todos os seus haveres: as roupas, os objetos pessoais, os cabelos, as próteses dentárias. Ele era, sobretudo, esvaziado do seu próprio ser, da sua personalidade, com a substituição altamente simbólica do nome por um número, freqüentemente gravado no corpo, como se fora a marca de propriedade de um gado. O prisioneiro já não se reconhecia como ser humano, dotado de razão e sentimentos: todas as suas energias concentravam-se na luta contra a fome, a dor e a exaustão”3).

A humanidade compreendeu, com tal nefasto evento histórico, o valor supremo da dignidade humana. Segundo o mesmo autor, “o sofrimento como matriz da compreensão do mundo e dos homens […] veio aprofundar a afirmação histórica dos direitos humanos”4).

Para selar essa nova perspectiva, a Organização das Nações Unidas, em Assembleia Geral, no ano de 1948, aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento que foi sucedido por uma gama de outros documentos internacionais versando sobre os direitos humanos, firmados pelos Estados.

Consoante Hersch Lauterpacht, citado por Flávia Piovesan, “os indivíduos passaram a adquirir um status e uma estrutura que os transformaram de objetos de compaixão internacional em sujeitos de direito internacional”5). Reconhece-se o ser humano como titular de direitos e liberdades fundamentais, a ele inerentes e inalienáveis, não passíveis de redução ou negação pelo Estado, qualquer que seja o motivo.

Tal momento de transição mundial também requeria a configuração do conceito de direitos humanos. Dessa forma, o que se poderia entender por tais direitos?

Na definição de Perez Luño, são

“[…] um conjunto de faculdades e instituições que, a cada momento histórico, concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível nacional e internacional”6).

O respeito à dignidade constitui a base sobre a qual se fundam os direitos humanos, pois por meio deles é que se asseguram as múltiplas dimensões da vida humana, garantindo-se a realização plena e integral da pessoa.

Não obstante o reconhecimento cada vez mais acentuado dos direitos humanos no cenário internacional, apenas com a promulgação da Constituição da República de 1988, o Brasil passou a comungar dessa nova perspectiva humanitária.

De fato, os regimes anteriores se pautaram pelo flagrante desrespeito aos direitos humanos, tendo a escravidão como sustentáculo da economia nacional por quase três séculos e, posteriormente, a Ditadura Militar veio cercear e violar ainda mais esses direitos, ainda incipientes nos textos nacionais legais, postergando em décadas a consagração e efetiva realização dos direitos humanos no ordenamento jurídico pátrio.

A Atual Carta Constitucional, que reinstaura a ordem democrática no Brasil, introduz, de forma inédita, uma vasta consolidação legislativa dos direitos e garantias fundamentais e a proteção de setores desfavorecidos e vulneráveis da sociedade brasileira.

Desde o preâmbulo, a Constituição de 1988 afirma a importância de salvaguardar os direitos fundamentais:

“Instituindo um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias […]”.

Ademais, a República Federativa do Brasil constitui-se em um Estado Democrático de Direito fundado, consoante art. 1º, na soberania, na cidadania, na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e no pluralismo político. Tomando como referência, neste trabalho, o princípio da dignidade humana, convém ressaltar que ele serve de critério interpretativo para todas as normas do nosso ordenamento jurídico, como parâmetro a ser seguido na realização dos direitos inerentes a cada ser humano, em respeito à sua integridade física, psíquica e moral, essencial à realização da sua felicidade plena. Como afirma Jorge Miranda:

“A Constituição confere uma unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema dos direitos fundamentais. E ela repousa na dignidade da pessoa humana, ou seja, na concepção que faz a pessoa fundamento e fim da sociedade e do Estado”7).

O nosso País tem ainda como objetivos primordiais construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3°, da CF/88). Como bem salienta Flávia Piovesan:

“Infere-se desses dispositivos quão acentuada é a preocupação da Constituição em assegurar os valores da dignidade e do bem-estar da pessoa humana, como imperativo de justiça social”8).

Pode-se acrescentar também que, em suas relações internacionais, o Brasil rege-se pelos princípios da independência nacional; prevalência dos direitos humanos; autodeterminação dos povos; não intervenção; igualdade entre os Estados; defesa da paz; solução pacífica dos conflitos; repúdio ao terrorismo e ao racismo; cooperação entre os povos para o progresso da humanidade e concessão de asilo político (art. 4° da CF/88).

Assim, o reconhecimento dos direitos humanos no texto constitucional reforçou a introdução do tema na agenda internacional do País, que ratificou os principais tratados acerca da matéria em pauta, buscando a consolidação efetiva de tais direitos, inclusive permitindo a intervenção externa na fiscalização dessa efetivação.


O Ministério Público brasileiro e a defesa dos direitos humanos


A Constituição de 1988 preceitua, em seu art. 127, caput, que o Ministério Público é

“instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.

A mesma ordem constitucional que consagrou os direitos e garantias fundamentais consolidou o Ministério Público como uma instituição com autonomia, munida dos instrumentos necessários para a efetiva realização de tais direitos.

Assim preceitua Marum:

“Em primeiro lugar, o regime democrático, cuja defesa o Constituinte de 88 incumbiu ao Ministério Público, indiscutivelmente envolve a preservação dos direitos humanos, o que se infere já pelo art. 1° da Constituição, onde se lê que, dentre os fundamentos do Estado Democrático de Direito em que se constitui o Brasil, estão a cidadania, a dignidade da pessoa humana e o pluralismo político. Assim, na sua função de defensor do regime democrático, cabe ao Parquet zelar pelo respeito a esses e outros princípios que caracterizam a democracia e envolvem a proteção e promoção dos direitos humanos”9).

Ora, a efetivação e a garantia dos direitos fundamentais são alicerces para a realização de um estado democrático de direito, que deve ser resguardado, na prática, pelo Ministério Público.

O mesmo autor acrescenta:

“[…] na verdade, não há direitos humanos sem democracia. Como foi visto, num Estado totalitário ou ditatorial, a dignidade da pessoa humana é simplesmente ignorada em benefício da consecução das finalidades do regime. Direitos fundamentais como a vida, a liberdade e a integridade física são maciça e impunemente desrespeitados pelos agentes do poder. O povo não é ouvido e o poder é exercido despoticamente segundo os caprichos do governante. Mas democracia não significa apenas liberdade, requerendo também justiça social e busca da igualdade material, ou seja, condições de vida, saúde, moradia, educação e alimentação adequadas, o que se realiza mediante a garantia dos direitos (individuais), sociais, econômicos e culturais”10).

Daí a profunda ligação entre o regime democrático e os direitos sociais e individuais indisponíveis, que cabe ao Ministério Público defender, e os direitos humanos.


As atribuições do Ministério Público de Minas Gerais na atuação em defesa dos direitos humanos


Em se tratando de Ministérios Públicos estaduais, as atribuições na defesa de direitos humanos encontram-se diversamente distribuídas de acordo com cada instituição. O Ministério Público mineiro possui alto grau de especialização, o que acarreta uma pulverização da defesa de tais direitos em diversas promotorias especializadas. Em razão de tal fato, as atribuições da Promotoria Especializada na Defesa dos Direitos Humanos são subsidiárias às demais especializadas, não havendo resolução que defina especificamente tais atribuições.

A título de ilustração podemos mencionar a atuação nas questões de racismo, defesa da diversidade religiosa, homofobia, tratamentos desumanos e degradantes em quaisquer situações, direito a alimentação e a questão da segurança alimentar, direito a moradia, etc.

No tocante à questão do direito à moradia, recomenda-se a leitura da inovadora tese do colega Marcelo de Oliveira Milagres, apresentada no VII Congresso Estadual do Ministério Público de MG, disponibilizada na página do CAO-DH, no site institucional.

Considerando-se a transversalidade do tema direitos humanos, há sempre que se atentar para a eventual e aconselhável atuação conjunta com outras especializadas, inclusive à luz do que dispõe o art. 1º, § 5º, da Resolução nº 72, da PGJ de 2006.

A discussão sobre a conveniência e a necessidade de se fixarem ou não as atribuições da Promotoria Especializada na Defesa dos Direitos Humanos encontra-se por hora superada ante a prevalência do entendimento de que não se devem engessar as atribuições da especializada em face da pluralidade de frentes de defesa desses direitos, assim como a pluralidade de violações dessas garantias.


1)
ISHAY, Micheline R.Direitos Humanos: Uma Antologia – Principais Escritos Políticos desde a Bíblia até o Presente. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2006. p. 17.
2)
Ishay, 2006, p. 23.
3)
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 23.
4)
Comparato, 2001, p. 54.
5)
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 07.
6)
PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, estado de derecho y Constitución. 3. ed. Madri: Teccnos, 1990. p. 48 (tradução livre).
7)
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Coimbra: Coimbra. 1988. p. 166. (vol. 4.).
8)
Piovesan, 2007, p. 27.
9)
Marum, 2005.
10)
Marum, 2005, p. 395.
cap10/10-1-1.txt · Última modificação: 2015/03/11 14:41 (edição externa)