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cap10:10-1-3

1.3. Diversidade sexual


Em um passado não tão remoto, a homossexualidade foi considerada, na visão da psiquiatria, um desvio sexual, uma inversão do masculino e do feminino. No século XIX, mais especificamente, disseminou-se a ideia da homossexualidade como uma das formas emblemáticas da degeneração, o que desencadeou a proibição legal das relações entre pessoas do mesmo sexo. Acrescente-se a essa conotação a forte influência negativa que a Igreja exerceu na formação do pensamento acerca da homossexualidade.

Essa tradição tinha como base à crença de uma natureza comum aos homens e aos animais, em que a conjugação de dois órgãos sexuais distintos acarretaria a perpetuação da espécie. Logo, a sexualidade que se desviava dessa finalidade seria uma prática sexual contrária à natureza.

Com a diminuição do poder da Igreja, a influência do capitalismo, que preza a satisfação individual, e a eclosão dos movimentos de liberação homossexual, essa visão pejorativa vem se alterando e a sociedade abrindo espaço para o respeito à orientação sexual diversa assumida pela pessoa. Isso ocorreu, sobretudo, após o incidente de Stonewall em Nova York, em junho de 1969, entre a polícia norte-americana, que costumava fiscalizar severamente estabelecimentos para público homossexual, proibidos na década de 1960, e os frequentadores do bar. O episódio ficou marcado porque, ao contrário do que ocorria normalmente, houve resistência à ação policial, sendo que o grupo que estava frequentando o local liderou uma série de manifestações, que se prolongaram pelos três dias seguintes e mobilizaram diversas pessoas.

Em consequência desses diversos fatores, a homossexualidade deixou de ser considerada doença pelas principais organizações de saúde. Desde 1973, a homossexualidade não é classificada como tal pela Associação Americana de Psiquiatria e, na mesma época, foi retirada do Código Internacional de Doenças (CID). A Assembleia Geral da Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da sua lista de doenças mentais, na década de 90, declarando que a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão e que os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura da homossexualidade. Todavia, os transtornos de identidade de gênero que englobam travestis e transexuais permanecem classificados no CID-10, indicando-se, em alguns desses casos, terapias hormonais e possibilidade de cirurgia de redesignação de sexo.

Atualmente, a maioria dos países não mais criminaliza as relações entre pessoas do mesmo sexo, havendo alguns, inclusive, que as tratam em absoluta igualdade com as relações entre pessoas de sexo oposto.

No Brasil, contudo, há uma disposição no Código Penal Militar que define o crime de pederastia (art. 235); tal dispositivo vem sendo motivo de acirrado debate entre o Estado e os movimentos sociais de gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros (GLBT), que pleiteiam a sua supressão do ordenamento penal miliciano.

Depois de longo período de ostracismo, de encobrimentos, de traumas, a diversidade sexual reapresenta-se no cenário social buscando derrubar preconceitos e reivindicando o exercício da cidadania e os direitos dos gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais e transgêneros.


Conceitos

1)


Homossexual: pessoa que tem desejos e práticas sexuais e relacionamento afetivo-sexual com pessoas do mesmo gênero.
Gay: pessoa do gênero masculino que tem desejos, práticas sexuais e relacionamento afetivo-sexual com outras pessoas do gênero masculino.
Lésbica: pessoa do gênero feminino que tem desejos, práticas sexuais e relacionamento afetivo-sexual com outras pessoas do gênero feminino.
Gênero: o conjunto de normas, valores, costumes e práticas através das quais a diferença entre homens e mulheres é culturalmente definida e hierarquizada. Envolve todas as formas de construção social das diferenças entre masculinidade e feminilidade, conferindo sentido e inteligibilidade às diferenças anatômicas, comportamentais e estéticas.
Bissexual: pessoa que tem desejos, práticas sexuais e relacionamento afetivo-sexual com homens e mulheres.
Transexual2): pessoa com identidade de gênero que se caracteriza por uma afirmativa de identificação, solidariedade constituída e confortável nos parâmetros de gênero estabelecidos (masculino ou feminino), independente e soberano aos atributos biológicos sexualmente diferenciados. Esta afirmativa consolidada pode, eventualmente, transformar-se em desconforto ou estranheza diante desses atributos, a partir de condições socioculturais adversas ao pleno exercício da vivência dessa identidade de gênero constituída. Isso pode se refletir na experiência cotidiana de autoidentificação ao gênero feminino – no caso das mulheres que vivenciam a transexualidade, que apresentam órgão genitais masculinos no momento em que nascem – , e ao gênero masculino – no caso de homens transexuais, que possuem órgãos genitais femininos ao nascerem. A transexualidade também pode, eventualmente, contribuir para a alteração cirúrgica de atributos físicos da pessoa que a vivencia, inclusive de órgãos genitais, para que passem a corresponder estética e funcionalmente ao estado psicoemocional da identidade de gênero constituída.
Travesti: pessoa que nasce do sexo feminino ou masculino, mas tem sua identidade de gênero oposta ao seu sexo biológico, assumindo papel do gênero distinto daquele imposto pela sociedade.


União homoafetiva


A liberação sexual contribuiu sobremaneira para a formação de um novo perfil de família, não mais baseada no objetivo de procriação, mas atrelada à troca de afeto, de amor. Dessa forma, esse novo paradigma que se desenvolve numa sociedade complexa e múltipla pressupõe a aceitação da diversidade sexual.

Elucida Almeida Neto:

“[…] o modelo de família constituído por um homem e uma mulher, casados civil e religiosamente, eleitos reciprocamente como parceiros eternos e exclusivos a partir de um ideário de amor romântico, que coabitam numa mesma unidade doméstica e que se reproduzem biologicamente com vistas à perpetuação da espécie, ao engrandecimento da pátria e à promoção da felicidade pessoal dos pais não esgota o entendimento do que seja uma família. Da mesma forma, sociólogos, antropólogos, historiadores e cientistas políticos sistematicamente têm demonstrado que as noções de casamento e amor também vêm mudando ao longo da história ocidental, assumindo contornos e formas de manifestação e de institucionalização plurívocos e multifacetados, que num movimento de transformação permanente colocam homens e mulheres em face de distintas possibilidades de materialização das trocas afetivas e sexuais”3).

A partir dos anos 90, considerando, em especial, a luta dos movimentos sociais, as entidades familiares passaram a apresentar as mais diversificadas formas. Comumente, encontram-se as famílias monoparentais, formadas por um dos pais e seus filhos – biológicos ou adotivos, as unidades familiares formadas por homossexuais, homens ou mulheres, por irmãos, por avós e netos, tios e sobrinhos, primos, entre outras.

Todavia, a relação homossexual, marcada pela existência de um vínculo afetivo e amoroso e da qual decorre vida em comum e amparo recíproco, não é regulada pelo Direito no que diz respeito à união estável, partilha de bens, direitos sucessórios, entre outras questões. Os tribunais, entretanto, vêm reconhecendo os direitos das pessoas envolvidas nesse tipo de união.

De fato, o amor e a convivência homossexuais são uma realidade que não pode mais ficar à margem da devida tutela jurídica, a fim de alçar-se como entidade familiar reconhecida pelo Estado.

A própria Carta Constitucional consagra a igualdade de todos, vedando qualquer tipo de discriminação. Exemplificando o exposto, a nossa Lei Suprema ressalta como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), exaltando, como direito fundamental, a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de natureza alguma (art. 5º, caput).

Também o art. 3º, inciso IV, da Constituição Federal estabelece, como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e nenhuma outra forma de discriminação.

Ademais, a nossa Carta Magna já existe há praticamente duas décadas e naquela época a questão, embora existente, como em todos os períodos da história, não gerava grande polêmica. Conquanto isso, não houve vedação constitucional de relacionamento afetivo entre pessoas do mesmo sexo. Nessa seara, não podemos esquecer a diferença que existe entre a proibição e a não contemplação.

Fato é que as pessoas que possuem orientação sexual diversa da estereotipada heterossexualidade são iguais na diferença e merecem ter seus direitos respeitados e reconhecidos juridicamente para que sejam judicialmente reivindicados e os conflitos pacificados.

Se o legislador não enfrentou tal desafio, como não o fez no Código Civil de 2002, que já nasceu ultrapassado no que tange à regulamentação do Direito de Família, deve o Judiciário promover a interpretação constitucional e a integração das leis para a melhor aplicação do direito.

Ante o quadro apresentado, os Tribunais vêm acolhendo as pretensões de reconhecimento de união homoafetiva e as consequências que dela decorrem.

Recentemente, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul firmou jurisprudência no seguinte sentido:

“EMENTA: APELAÇÃO. UNIÃO HOMOSSEXUAL. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL. A união homossexual merece proteção jurídica, porquanto traz em sua essência o afeto entre dois seres humanos com o intuito relacional. Uma vez presentes os pressupostos constitutivos, de rigor o reconhecimento da união estável homoafetiva, em face dos princípios constitucionais vigentes, centrados na valorização do ser humano. Via de conseqüência, as repercussões jurídicas, verificadas na união homossexual, em face do princípio da isonomia, são as mesmas que decorrem da união heterossexual. NEGARAM PROVIMENTO AO APELO, POR MAIORIA. (Apelação Cível nº 70021085691. Oitava Câmara Cível. Tribunal de Justiça do RS. Relator: Rui Portanova. Julgado em 04/10/2007)”
“EMENTA: AÇÃO DECLARATÓRIA. RECONHECIMENTO. UNIÃO ESTÁVEL. CASAL HOMOSSEXUAL. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS. CABIMENTO. A ação declaratória é o instrumento jurídico adequado para reconhecimento da existência de união estável entre parceria homoerótica, desde que afirmados e provados os pressupostos próprios daquela entidade familiar. A sociedade moderna, mercê da evolução dos costumes e apanágio das decisões judiciais, sintoniza com a intenção dos casais homoafetivos em abandonar os nichos da segregação e repúdio, em busca da normalização de seu estado e igualdade às parelhas matrimoniadas. EMBARGOS INFRINGENTES ACOLHIDOS, POR MAIORIA. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Embargos Infringentes Nº 70011120573. Quarto Grupo de Câmaras Cíveis. Tribunal de Justiça do RS. Relator: José Carlos Teixeira Giorgis. Julgado em 10/06/2005)”

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais, embora com mais atraso, também tem decidido nesse sentido:

“Ementa: AÇÃO ORDINÁRIA - UNIÃO HOMOAFETIVA - ANALOGIA COM A UNIÃO ESTÁVEL PROTEGIDA PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL - PRINCÍPIO DA IGUALDADE (NÃO-DISCRIMINAÇÃO) E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - RECONHECIMENTO DA RELAÇÃO DE DEPENDÊNCIA DE UM PARCEIRO EM RELAÇÃO AO OUTRO, PARA TODOS OS FINS DE DIREITO - REQUISITOS PREENCHIDOS - PEDIDO PROCEDENTE. - À união homoafetiva, que preenche os requisitos da união estável entre casais heterossexuais, deve ser conferido o caráter de entidade familiar, impondo-se reconhecer os direitos decorrentes desse vínculo, sob pena de ofensa aos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. - O art. 226, da Constituição Federal não pode ser analisado isoladamente, restritivamente, devendo observar-se os princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Referido dispositivo, ao declarar a proteção do Estado à união estável entre o homem e a mulher, não pretendeu excluir dessa proteção a união homoafetiva, até porque, à época em que entrou em vigor a atual Carta Política, há quase 20 anos, não teve o legislador essa preocupação, o que cede espaço para a aplicação analógica da norma a situações atuais, antes não pensadas. - A lacuna existente na legislação não pode servir como obstáculo para o reconhecimento de um direito. Súmula: REJEITARAM PRELIMINAR E NO REEXAME NECESSÁRIO, CONFIRMARAM A SENTENÇA, PREJUDICADO O RECURSO VOLUNTÁRIO. (Processo nº 1.0024.06.930324-6/001(1). Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Rel. Heloisa Combat. Data do Julgamento 22/05/2007)”
“Ementa: UNIÃO HOMOAFETIVA. PENSÃO. SOBREVIVENTE. PROVA DA RELAÇÃO. POSSIBILIDADE - À união homo afetiva que irradia pressupostos de união estável deve ser conferido o caráter de entidade familiar, impondo reconhecer os direitos decorrentes deste vínculo, pena de ofensa aos princípios constitucionais da liberdade, da proibição de preconceitos, da igualdade e dignidade da pessoa humana. Súmula: REJEITARAM PRELIMINAR, NO REEXAME NECESSÁRIO, CONFIRMARAM A SENTENÇA, PREJUDICADO O RECURSO VOLUNTÁRIO. (Processo nº 1.0024.05.750258-5/002(1). Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Rel. Belizário de Lacerda. Data do Julgamento 04/09/2007)”

Também o STJ reconhece a união homoafetiva e os direitos e obrigações que dela decorrem:

“Ementa: PROCESSO CIVIL E CIVIL - PREQUESTIONAMENTO - AUSÊNCIA – SÚMULA 282/STF - UNIÃO HOMOAFETIVA - INSCRIÇÃO DE PARCEIRO EM PLANO DE ASSISTÊNCIA MÉDICA - POSSIBILIDADE - DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO-CONFIGURADA.
- Se o dispositivo legal supostamente violado não foi discutido na formação do acórdão, não se conhece do recurso especial, à míngua de prequestionamento.
- A relação homoafetiva gera direitos e, analogicamente à união estável, permite a inclusão do companheiro dependente em plano de assistência médica.
- O homossexual não é cidadão de segunda categoria. A opção ou condição sexual não diminui direitos e, muito menos, a dignidade da pessoa humana.
- Para configuração da divergência jurisprudencial é necessário confronto analítico, para evidenciar semelhança e simetria entre os arestos confrontados. »Simples transcrição de ementas não basta. (Resp. 2387/RS. STJ. Terceira Turma. Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros. Data do Julgamento 07/03/2006)”

Não obstante, há projetos de lei em trâmite na Câmara dos Deputados que visam à regulamentação legal da união homoafetiva, como o Projeto de Lei nº 2285/07 proposto pelo Sr. Sérgio Barradas Carneiro e o Projeto de Lei nº 580/07 do Sr. Clodovil Hernandes, que foi justificado no sentido de acompanhar a tendência mundial de tolerância em relação às diferenças, procurando-se atender a reivindicação dos grupos homossexuais com vistas a integrá-los no ordenamento jurídico e caminhar para a eliminação de preconceitos em razão da orientação sexual.


A questão da transexualidade


Segundo a Classificação Internacional das Doenças (CID-10), a transexualidade caracteriza-se por um desejo imenso de viver e ser aceito como membro do sexo oposto, usualmente acompanhado por uma sensação de desconforto ou impropriedade de seu próprio sexo anatômico e o desejo de se submeter a tratamento hormonal e cirurgia para seu corpo ficar tão congruente quanto possível com o sexo preferido.

Portanto, há um descompasso entre o sexo anatômico e o psicológico, pois o transexual acredita ter nascido num corpo que não corresponde ao gênero por ele exteriorizado social, espiritual, emocional e sexualmente, devendo esse descompasso ser sanado por tratamentos de saúde, não podendo a pessoa continuar designada por um nome que não a identifique.

Assim, o pedido de retificação/alteração do nome e do sexo no registro civil de pessoa transexual tem encontrado amparo nos tribunais brasileiros que vêm se manifestando de modo favorável ao requerimento. Fundamentam que o nome da pessoa, direito personalíssimo, enquanto fator determinante da identificação e da vinculação de alguém a um determinado grupo familiar, assume fundamental importância individual e social, não podendo ser objeto de constrangimento pessoal.

Em conformidade com o exposto, colacionam-se julgados do Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

“Ementa: PEDIDO DE RETIFICAÇÃO DE NOME E SEXO NO ASSENTAMENTO CIVIL DO REQUERENTE - TERAPÊUTICA CIRÚRGICA DE COMPLEMENTAÇÃO GENITAL - PEDIDO ACOLHIDO - PRELIMINAR DE NULIDADE DA SENTENÇA REJEITADA - ERRO DE FATO NO DISPOSITIVO DA SENTENÇA - APELO A QUE SE DÁ PARCIAL PROVIMENTO. Súmula: REJEITARAM PRELIMINAR E DERAM PROVIMENTO PARCIAL. (Processo nº 1.0000.00.263118-2/000(1). Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Rel. Francisco Lopes de Albuquerque. Data do Julgamento 11/02/2003).”
“Ementa: Civil. Sexo. Estado individual. Imutabilidade. O sexo, como estado individual da pessoa, é informado pelo gênero biológico. A redefinição do sexo, da qual derivam direitos e obrigações, procede do Direito e não pode variar de sua origem natural sem legislação própria que a acautele e discipline. Rejeitam-se os embargos infringentes. V.V. EMBARGOS INFRINGENTES - TRANSEXUAL - RETIFICAÇÃO DE REGISTRO - NOME E SEXO - Negar, nos dias atuais, não o avanço do falso modernismo que sempre não convém, mas a existência de um transtorno sexual reconhecido pela medicina universal, seria pouco científico. Embargos acolhidos para negar provimento à apelação, permitindo assim a retificação de registro quanto ao nome e sexo do embargante. Súmula: REJEITARAM OS EMBARGOS, VENCIDOS O RELATOR E O PRIMEIRO VOGAL (Processo nº 1.0000.00.296076-3/001(1). Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Rel. Carreira Machado. Data do Julgamento 22/04/2004)”.


Adoção por casal homoafetivo


Adoção é o ato pelo qual uma pessoa ou um casal acolhe criança ou adolescente como seu filho ou filha, proporcionando-lhe a convivência no seio de uma família e constituindo a relação de maternidade e/ou paternidade. No dizer de Padre Antônio Vieira: “O filho por natureza ama-se porque é filho; o filho por adoção é filho porque se ama”.

A Constituição da República Federativa do Brasil dispõe como dever da família, da sociedade e do Estado salvaguardar, com absoluta prioridade, os direitos fundamentais da criança e do adolescente, incluindo-se, nessa proteção, o direito à convivência familiar, colocando-os a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (art. 227, caput, da CF/88).

A Lei nº 8.069/90, que institui o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), dispõe sobre a adoção.

No que tange aos requisitos legais a serem preenchidos pelo adotante, essa lei não traz nenhuma proibição à adoção por homossexual. Consoante o texto legal, pode adotar o maior de 21 anos, independentemente de estado civil, que guarde uma diferença etária mínima de 16 anos com o adotando, entre outros pressupostos (art. 42, caput e § 3º do ECA).

A polêmica se perfaz, então, sobre a possibilidade de adoção por casal homoafetivo.

Comenta Maria Berenice Dias:

“O art. 28 do indigitado Estatuto permite a colocação no que chama de família substituta, não definindo qual a conformação dessa família. Limitou-se a lei, em seu art. 25, a conceituar o que seja família natural: Entende-se por família natural a comunidade formada pelos pais, ou qualquer deles, e seus descendentes. Diante da especificidade dessa definição, não se pode ter por coextensivos esses conceitos: que a família substituta deva ter a mesma estrutura da família natural. Sob esse enfoque, não há vedação para um casal homossexual ser reconhecido como uma família substituta apta a abrigar uma criança. A única objeção que ainda poderia ser suscitada emerge da dicção do art. 29 do diploma menorista: Não se dará a colocação em família substituta a pessoa que revele, por qualquer modo, incompatibilidade com a natureza da medida ou não ofereça ambiente familiar adequado. Porém, a priori, não se pode declarar ser o ambiente familiar inadequado com a natureza da medida ou que a relação afetiva de duas pessoas do mesmo sexo seja incompatível. Dita postura revela-se nitidamente preconceituosa, e, conforme lembra Delma Ibias, as relações homoafetivas assemelham-se ao casamento e à união estável, devendo os julgadores atribuir-lhes os mesmos direitos conferidos às relações heterossexuais, dentre eles o direito à guarda e à adoção de menores”4).

Poder-se-ia, segundo a mesma autora, argumentar no sentido de que “a ausência de referência de ambos os gêneros poderia eventualmente tornar confusa a própria identidade sexual […]5)”, gerando-se o perigo da identificação das crianças com o modelo dos pais, o que as levaria, por lealdade afetiva, a se tornarem também homossexuais.

Todavia, há entendimento no sentido de que, na formação da personalidade da criança, há realmente a identificação com os papéis que os pais representam, ou seja, a figura feminina e a masculina. Porém, a forma física, ou seja, a configuração biológica dos órgãos genitais, não importaria para tal identificação, desde que existisse o desempenho desses papéis diferenciados pelo casal homossexual, de modo que uma pessoa representaria o feminino e a outra, o masculino.

Para reforçar esse argumento, questiona-se, se a afirmação de que se os filhos, em tudo, imitam os pais, como se explicam crianças geradas, criadas e educadas no seio de uma família heterossexual com orientação homossexual?

Por outro lado, a grande questão apresentada pelas pessoas contrárias à adoção por casal homossexual seria a de que possivelmente as crianças seriam alvo de discriminação no meio que frequentam, sofrendo ataques vexatórios, de modo a dificultar seu convívio social.

Considerando que qualquer forma de discriminação é vedada constitucionalmente, teoricamente, criança ou adolescente adotados por casal homossexual teriam o direito de não sofrer tais atos atentatórios. Contudo, na prática, não é tão fácil inibir esse tipo de conduta preconceituosa.

Outro ponto invocado seria o que tange ao registro civil, que deveria consignar o nome dos adotantes como pais (art. 47, § 1º, do ECA), pressupondo, assim, a diversidade de sexo do casal. Dessa forma, na adoção, ocorrendo a substituição da filiação biológica, incoerente que os pais registrais sejam do mesmo sexo. Tal silogismo impossibilitaria a formalização da adoção por dois homens ou duas mulheres, porque não poderiam constar como pais no registro de nascimento.

De um enfoque diverso, a necessidade de haver a diversidade de sexos para o registro como mãe e como pai do adotado não deve prosperar, tendo-se em vista que a configuração registral, questão meramente formal, pode ser modificada, de modo a incorporar a possibilidade de inclusão de duas mães ou dois pais, em analogia à certidão em que só consta o nome da genitora.

Convém frisar que o objetivo maior do Estatuto da Criança e do Adolescente é resguardar os direitos do adotando de forma a inseri-lo numa convivência familiar segura e equilibrada, proporcionando sua completa formação como pessoa. Para tanto, não se deferirá a sua colocação em família substituta se esta não se moldar à natureza da medida ou não oferecer ambiente adequado (art. 29 do ECA), uma vez que a adoção somente será efetuada quando apresentar reais vantagens para o adotando (art. 43 do ECA).

Dessa forma, independentemente da orientação sexual do casal adotante, esse deve proporcionar condições ao desenvolvimento integral da criança, sendo-lhe garantidos os direitos fundamentais e o atendimento às suas necessidades afetivas familiares.

Há julgamento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul entendendo ser possível a adoção por casal homoafetivo:

“EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO. CASAL FORMADO POR DUAS PESSOAS DE MESMO SEXO. POSSIBILIDADE. Reconhecida como entidade familiar, merecedora da proteção estatal, a união formada por pessoas do mesmo sexo, com características de duração, publicidade, continuidade e intenção de constituir família, decorrência inafastável é a possibilidade de que seus componentes possam adotar. Os estudos especializados não apontam qualquer inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão inseridas e que as liga aos seus cuidadores. É hora de abandonar de vez preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base científica, adotando-se uma postura de firme defesa da absoluta prioridade que constitucionalmente é assegurada aos direitos das crianças e dos adolescentes (art. 227 da Constituição Federal). Caso em que o laudo especializado comprova o saudável vínculo existente entre as crianças e as adotantes. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Apelação Cível nº 70013801592. Sétima Câmara Cível. Tribunal de Justiça do RS. Relator: Luiz Felipe Brasil Santos. Julgado em 5/04/2006)”

Por fim, o tema em pauta pode ser apresentado invocando-se argumentos em sentido favorável ou contrário. Cabe ao Promotor de Justiça, ao deparar com a questão, analisar, precipuamente, o bem-estar da criança ou do adolescente a serem adotados, baseando-se na perícia psicossocial juntada aos autos e despindo-se de quaisquer formas de preconceito, para, a partir do estudo do caso, firmar um posicionamento.


Sanções legais a práticas homofóbicas


Homofobia6) é a consequência direta da hierarquização das sexualidades e do status superior conferido à heterossexualidade, considerada natural, em detrimento de outras manifestações e expressões das identidades e das práticas sexuais, tidas como inferiores e anormais. A homofobia é um fenômeno que costuma produzir ou se vincular a preconceitos e mecanismos de discriminação, de estigmatização e violência contra gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis e, mais genericamente, contra todas as pessoas (inclusive heterossexuais) cujas expressões de masculinidade e feminilidade não se enquadram nas normas de gênero, culturalmente estabelecidas. Dessa forma, desencadeia e realimenta processos discriminatórios, de exclusão, entre outros, voltados contra tudo aquilo que remeta, direta ou indiretamente, à orientação sexual discordante do padrão heterossexual e dos papéis estereotipados do gênero. A lesbofobia7) é uma expressão específica da homofobia, voltada a preconceito, estigmatização e violação de direitos de mulheres homossexuais. O não reconhecimento da legitimidade social da vivência e da expressão pública da lesbianidade associa-se até mesmo à privação do direito de as lésbicas serem vistas ou entendidas como mulheres.

Na seara de proteção à diversidade sexual, o Estado de Minas Gerais editou a Lei nº 14.170/02, que determina a imposição de sanções a pessoa jurídica por ato discriminatório praticado contra pessoa em virtude de sua orientação sexual. Dessa forma, cabe ao Poder Executivo impor, no limite da sua competência, sanção à pessoa jurídica que, por ato de seu proprietário, dirigente, preposto ou empregado, no efetivo exercício da atividade profissional, discrimine ou coaja pessoa, ou atente contra os seus direitos, em razão de sua orientação sexual, conforme disposição do art. 1º da lei citada.

O Decreto nº 43.683/03, que regulamenta a Lei Estadual nº 14.170/02, atribui ao Conselho Estadual de Direitos Humanos, vinculado à Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social de Minas Gerais, a competência para aplicar tais sanções legais. Dessa forma, o CONEDH estará implementando durante esse ano a câmara processante prevista no decreto referido.

Para coibir tais práticas preconceituosas, também foi apresentado o PL nº 5.003/01, no Congresso Nacional, que “determina sanções às práticas discriminatórias em razão da orientação sexual das pessoas”. Esse PL, oriundo da Câmara dos Deputados, passou a ser designado, no Senado, por PLC (Projeto de Lei da Câmara) nº 122/2006, onde atualmente tramita.


Benefícios previdenciários para companheiros homossexuais


Outra questão que se tem apresentado é a possibilidade de inscrição do companheiro homoafetivo como dependente para fins previdenciários.

A decisão judicial proferida na Ação Civil Pública nº 2000.71.00.009347-0, proposta contra o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), pelo Ministério Público Federal, visando o reconhecimento dos direitos decorrentes da união entre homossexuais jungidos ao Regime Geral de Previdência, culminou na edição da Instrução Normativa/INSS/DC nº 50, de 8 de maio de 2001, que regulamentou os benefícios previdenciários para companheiros homossexuais.

A Juíza Federal, que proferiu liminar de alcance nacional, na referida ação, assim motivou sua decisão:

“Efetivamente, a negativa do Instituto Nacional do Seguro Social em reconhecer a companheiros homossexuais direitos previdenciários, sob o argumento de que não é devida a concessão destes benefícios nos casos de relação homossexual, face o contido no § 3º do art. 16 da Lei nº 8.213/91 e no art. 226, § 3º da Constituição Federal […], é violadora de diversos princípios e garantias constitucionais. (Juíza Federal Simone Barbisan Fortes, da Terceira Vara Previdenciária de Porto Alegre/RS)”

Dessa forma, o próprio Estado, através de seu órgão de seguridade social, reconheceu a união homossexual como união estável, conferindo os direitos decorrentes do Regime Geral de Previdência Social a companheiro ou companheira homossexual, que poderá ser inscrito como dependente, concorrendo, preferencialmente, em caso de pensão por morte do segurado.
Para consulta à íntegra da Ação Civil Pública nº 2000.71.00.009347-0, acessar o link: http://cf-internet.pgr.mpf.gov.br.

Alguns estados brasileiros, como o Rio de Janeiro e Pernambuco, além de alguns municípios, seguindo essa tendência, incluíram a possibilidade de inscrição de companheiro ou companheira homossexual como dependente para fins previdenciários.

O governo de Minas Gerais encaminhou o projeto de Lei Complementar Estadual nº 41/2008 para a Assembleia Legislativa, visando contemplar tal possibilidade no IPSEMG, havendo resistência em se estender o benefício para o Instituto de Previdência do Servidor Militar.

O CAO-DH instaurou procedimento administrativo para acompanhar a questão e propor, eventualmente, as medidas judiciais cabíveis.

Sugere-se que cada Promotor de Justiça, em sua Comarca de atuação, promova a discussão no âmbito municipal, visando a admissão da inscrição do companheiro homoafetivo para fins previdenciários nos institutos de previdência municipais.


1)
Conceitos baseados no Texto-base da Conferência Nacional de Gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais (2008), Presidência da República – Secretaria Especial dos Direitos Humanos.
2)
Abordaremos a transexualidade no item 4.3, inclusive a questão judicial de consequente alteração do registro civil, no que tange ao nome e sexo.
3)
ALMEIDA NETO, Luiz Mello de. Família no Brasil dos Anos 90: Um Estudo sobre a Construção Social da Conjugalidade Homossexual. Tese de doutorado. Universidade de Brasília, 1999. In: http://www.asselegis.org.br.
4)
DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito e a justiça. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
5)
Dias, 2001.
6)
Definição de homofobia baseada no Texto-base da Conferência Nacional de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais (2008), Presidência da República – Secretaria Especial dos Direitos Humanos.
7)
Definição de lesbofobia baseada no Texto-base da Conferência Nacional de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais (2008), Presidência da República – Secretaria Especial dos Direitos Humanos.
cap10/10-1-3.txt · Última modificação: 2015/03/11 14:55 (edição externa)