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cap10:10-1-8

1.8. O controle externo da atividade policial pelo Ministério Público


O constituinte de 1988, ao atribuir no art. 129, VII, da CF/88, o exercício do Controle Externo da Atividade Policial ao Ministério Público, pretendeu que o órgão ministerial atuasse, de ofício ou mediante requerimento de qualquer pessoa, sempre que os direitos e interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis do cidadão e da sociedade fossem objeto de violação, supressão ou ameaça plausível, por parte das forças policiais.

Dessa forma, o controle externo deve ser entendido como instrumento de realização do poder punitivo do Estado. Seu objetivo é dar ao Ministério Público um comprometimento maior com a investigação criminal e, consequentemente, um amplo domínio e lisura na produção da prova, a qual lhe servirá de respaldo na eventual propositura da ação penal pública, bem como na propositura pelo ofendido da ação penal privada.

Ademais, não só a proteção aos direitos e garantias fundamentais do cidadão, como preconizado e tutelado pela Constituição da República, deve ser objeto da atenção e do labor do Ministério Público. Na atividade de controle externo das atividades policiais, deve-se zelar também pelo respeito à legalidade, legitimidade, licitude e efetividade dos trabalhos investigativos desenvolvidos pela polícia judiciária, bem como pelo policiamento ostensivo exercido pelas polícias militares. Há de se registrar que a Promotoria de Defesa de Direitos Humanos da Capital, ao exercer também a fiscalização da atividade policial, não tem se cingido ao conceito restrito de tal papel, exercendo a fiscalização da atividade de bombeiros militares, policiais civis em funções junto ao DETRAN e agentes penitenciários.

A ONU, por sua Assembleia Geral, editou, em 17 de dezembro de 1979, o Código de Conduta para os Funcionários Encarregados de Aplicação da Lei (CCEAL), através da Resolução nº 34/169, refletindo a preocupação mundial com as violações de direitos, regularmente praticadas por funcionários encarregados da aplicação da lei. Tal código preceitua:

“Art. 1º: Os funcionários responsáveis pela aplicação da lei devem sempre cumprir o dever que a lei lhes impõe, servindo a comunidade e protegendo todas as pessoas contra atos ilegais, em conformidade com o elevado grau de responsabilidade que sua profissão requer.
Art. 2º: No cumprimento do dever, os funcionários responsáveis pela aplicação da lei devem respeitar e proteger a dignidade humana, manter e apoiar os direitos humanos de todas essas pessoas.
Art. 3º: Os funcionários responsáveis pela aplicação da lei só podem empregar a força quando estritamente necessária e na medida exigida para o cumprimento de seu dever.
Art. 4º: Os assuntos de natureza confidencial em poder dos funcionários responsáveis pela aplicação da lei devem ser mantidos confidenciais.
Art. 5º: Nenhum funcionário responsável pela aplicação da lei pode infligir, instigar ou tolerar qualquer ato de tortura ou qualquer outro tratamento ou pena cruel, desumano ou degradante, nenhum destes funcionários pode invocar ordens superiores ou circunstâncias excepcionais, tais como o estado de guerra ou uma ameaça de guerra, ameaça à segurança nacional, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública, como justificativa para torturas ou outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradante.
Art. 6º: Os funcionários responsáveis pela aplicação da lei devem garantir a proteção à saúde de todas as pessoas sob sua guarda e, em especial, devem adotar medidas imediatas para assegurar-lhes cuidados médicos, sempre que necessário.
Art. 7º: Os funcionários responsáveis pela aplicação da lei não devem cometer quaisquer atos de corrupção. Também devem opor-se vigorosamente e combater todos estes atos.
Art. 8º: Os funcionários responsáveis pela aplicação da lei devem respeitar a lei e este código. Devem, também, na medida das suas possibilidades, evitar e opor-se com rigor a qualquer violação da lei e deste código.
Os funcionários responsáveis pela aplicação da lei que tiverem motivos para acreditar que houve, ou que está para haver, uma violação deste Código devem comunicar o fato a seus superiores e, se necessário, a outras autoridades competentes ou órgãos com poderes de revisão e reparação”.

No Brasil, o Conselho Nacional do Ministério Público regulamentou recentemente, por meio da Resolução nº 20/07, o exercício do controle da atividade policial pelos seus membros. De acordo com a resolução, o controle deve ser exercido de duas formas: na forma difusa, pelos promotores com atribuição criminal, e na concentrada, através dos membros com atribuições específicas para o controle externo da atividade policial, conforme disciplinado no âmbito de cada Ministério Público. Antes de editada esta resolução, a Lei Orgânica do Ministério Público da União, LC nº 45/1993, trazia contornos do modo como se deveria efetivar o controle da atividade policial pelos membros do órgão ministerial. Apesar de existirem leis que disciplinavam a matéria no âmbito dos estados, estas não esgotavam as formas sobre as quais deveria ser exercida essa função, sendo necessária a aplicação subsidiária da lei complementar referida.

Assim, deve o controle externo ser exercido sobre a instauração, o desenvolvimento e o resultado dos trabalhos persecutórios da polícia judiciária bem como sobre as atividades repressivo-preventivas exercidas pela polícia ostensiva e toda função atinente ao trato com o cidadão e a população em geral, mas nunca sobre a estrutura hierárquica ou os assuntos referentes ao âmbito administrativo interno da polícia.

Mesmo em situações excepcionais, como a decretação do estado de defesa, ou de sítio, cabe a responsabilização civil, criminal e administrativa do agente político (membro do poder público), dos agentes públicos e serventuários civis ou militares, que venham a cometer abusos, desvios ou praticar excessos.

No que tange às atividades praticadas pelas Polícias Civil e Militar, suas atividades-meio devem estar excluídas desse controle para que não se interfira no chamado controle interno.

Em tais casos, a própria administração pública detém o poder de controlar os seus próprios atos, através da chamada autotutela administrativa, de acordo com entendimento da Súmula nº 473, editada pelo Supremo Tribunal Federal:

“Súmula nº 473 - A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, por que deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial”.

Conclui-se que o controle da atividade policial atua buscando promover maior transparência, eficácia e celeridade da atividade policial, não adentrando na organização interna dos órgãos relacionados às atividades investigativas desenvolvidas. Tal instrumento é indispensável na construção de um Estado Democrático de Direito que pretende a realização plena dos direitos e garantias fundamentais.


O poder investigatório do Ministério Público


Atualmente, setores ligados às forças policiais, em especial à polícia civil, questionam a legitimidade da investigação feita pelo Ministério Público. Há os que entendem que a função investigativa constitui atribuição exclusiva da polícia judiciária, de acordo com o art. 144 da CF/88, e, portanto, a investigação pelo órgão ministerial estaria invadindo o âmbito de atuação da instituição policial, de modo a interferir negativamente no desempenho da atividade dessa. O STF já se pronunciou nesse sentido, em acórdão relatado pelo ex-ministro Nelson Jobim (RHC nº 81.326, j. em 05/02/2003). Entretanto, a decisão da Corte superior foi restrita ao caso, não servindo para embasar nenhuma posição definitiva acerca da questão.

A maioria da doutrina, entretanto, entende que a Constituição teve como finalidade apenas delimitar as atribuições investigatórias da polícia em tal dispositivo, não pretendendo afastar a possibilidade de que outros órgãos pudessem investigar infrações penais. Defendem que a parcela dessa atividade investigativa assumida pelo Ministério Público é decorrente do art. 129, VIII, da Constituição Federal e esconde o interesse da sociedade na busca pela verdade real. Não se trata de invasão de competência, mas sim de complementação. Desta forma, a investigação a ser realizada pelo Ministério Público não tem a pretensão de substituir o papel da polícia judiciária, tampouco de comprometer a função a ser assumida pelo órgão no desenvolvimento da ação penal. Assim, não se pode falar que tal atividade irá comprometer a imparcialidade característica da atuação do membro do MP, uma vez que objetiva tão-somente esclarecer os contornos do fato a ser analisado e discutido em fase judicial.

Clémerson Merlin Cléve ainda acrescenta:

“É preciso afastar argumentos apaixonados que insistem numa equivocada pretensão do Ministério Público de substituir-se à polícia judiciária ou mesmo de presidir inquéritos policiais, pois não é disto que se trata. Não há substituição dos órgãos encarregados, em princípio, da investigação criminal. A polícia judiciária deve continuar responsável pelos inquéritos policiais, sendo certo que o Ministério Público haverá de realizar investigações em casos excepcionais, devidamente justificados, sem que isso possa significar o esvaziamento da esfera funcional da instituição policial”.1)

O debate sobre o tema ressurgiu com o julgamento do Habeas Corpus nº 84548 no Superior Tribunal Federal. O paciente fora denunciado pelo homicídio do então Prefeito de Santo André, com base em investigações realizadas pelo Ministério Público. Tal fato ensejou a proposição da ADin nº 3.309-3, pela Associação Nacional dos Delegados de Polícia, pleiteando a declaração pelo STF da inconstitucionalidade da Lei Orgânica do Ministério Público, que confere a este poder investigatório. A ADin recebeu parecer contrário da Advocacia-Geral da União. O julgamento do Habeas Corpus está suspenso, com votação parcial de 3×2, sendo que a maioria dos ministros que já votaram entenderam que a Constituição não impede a realização de investigação pelo Ministério Público.

Diante da controvérsia, merece destaque a carta recebida pelo então presidente da Suprema Corte, ministro Nelson Jobim, no dia 1º de setembro de 2004, enviada pela Secretária-Geral da Anistia Internacional, Irene Khan:

“Atualmente, no Brasil, a grande maioria dos crimes de direitos humanos é investigada por policiais, muitas vezes lotados no mesmo batalhão ou delegacia de polícia que o perpetrador. Isso tem contribuído, na melhor das hipóteses, para uma imagem de corporativismo na impossibilidade de construir casos para julgamento. Na condição de órgão independente do Executivo, o Ministério Público é um dos únicos, senão o único, organismo independente capaz de, atualmente, realizar tais investigações no Brasil”.


A efetivação possível da fiscalização da atividade policial


Há de se ressaltar que as infrações cometidas por policiais no exercício da função pública ou em razão dela devem, dependendo de sua gravidade e repercussão, ser investigadas preferencialmente pelo próprio membro do Ministério Público, por meio de Procedimento Penal Investigatório (Resolução Conjunta PGJ/CMP nº 2/04) ou Inquérito Civil Público. Obviamente, tal instauração só será possível caso seja viável ante a estrutura pessoal e material de que o promotor disponha. Nos casos de crimes militares próprios, a investigação e a eventual propositura da ação penal são de atribuição da promotoria da auditoria militar. Em todos os casos, orienta-se que seja acionada a corregedoria específica do órgão a que pertence o funcionário público infrator para que se proceda à investigação criminal e/ou para fins de punições administrativas. Além da responsabilização penal do agente, cabe também a civil, se caracterizado ato de improbidade administrativa.

O controle deve atuar no conhecimento da notitia criminis, nas apurações policiais e durante o inquérito policial. O promotor deve prezar pela legalidade, celeridade e otimização de tais procedimentos, de modo que a ele é, portanto, atribuída a função de tomar as providências legais cabíveis quando verificadas suspeitas de prevaricação, abuso de autoridade, improbidade administrativa e demais infrações penais que obstaculizem o trâmite do inquérito policial.

Diante de comunicação escrita ou verbal acerca da prática de uma infração penal atribuída a policial, deve o promotor, em princípio, verificar a existência de inquérito ou sindicância administrativa junto à Corregedoria à qual o agente estiver vinculado. Caso o procedimento investigatório já tenha sido instaurado, deve-se verificar a possibilidade da propositura da denúncia, embasada nos elementos constantes da informação (demonstração do fato, autoria, materialidade e qualificação do acusado). Do contrário, as declarações dadas pela vítima ou seu representante legal devem ser lavradas a termo e encaminhadas à autoridade policial corregedora, devidamente acompanhada de ofício requisitório de instauração de inquérito policial. Nos casos de comunicação anônima ou através da leitura de publicação periódica, convém requisitar a instauração do inquérito após a oitiva da suposta vítima ou seu representante legal. Nos crimes de ação pública condicionada, deve-se aguardar a necessária manifestação da vontade da vítima para se apresentar a denúncia.

Determina o art. 4º da Resolução nº 20 do Conselho Nacional do Ministério Público, que incumbe aos órgãos do Ministério Público, quando do exercício ou do resultado da atividade de controle externo:

“I – realizar visitas ordinárias periódicas e, quando necessárias, a qualquer tempo, visitas extraordinárias, em repartições policiais, civis e militares, órgãos de perícia técnica e aquartelamentos militares existentes em sua área de atribuição;
II – examinar, em quaisquer dos órgãos referidos no inciso anterior, autos de inquérito policial, inquérito policial militar, autos de prisão em flagrante ou qualquer outro expediente ou documento de natureza persecutória penal, ainda que conclusos à autoridade, deles podendo extrair cópia ou tomar apontamentos, fiscalizando seu andamento e regularidade;
III – fiscalizar a destinação de armas, valores, substâncias entorpecentes, veículos e objetos apreendidos;
IV – fiscalizar o cumprimento dos mandados de prisão, das requisições e demais medidas determinadas pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário, inclusive no que se refere aos prazos;
V – verificar as cópias dos boletins de ocorrência ou sindicâncias que não geraram instauração de Inquérito Policial e a motivação do despacho da autoridade policial, podendo requisitar a instauração do inquérito, se julgar necessário;
VI – comunicar à autoridade responsável pela repartição ou unidade militar, bem como à respectiva corregedoria ou autoridade superior, para as devidas providências, no caso de constatação de irregularidades no trato de questões relativas à atividade de investigação penal que importem em falta funcional ou disciplinar;
VII – solicitar, se necessária, a prestação de auxílio ou colaboração das corregedorias dos órgãos policiais, para fins de cumprimento do controle externo;
VIII – fiscalizar cumprimento das medidas de quebra de sigilo de comunicações, na forma da lei, inclusive através do órgão responsável pela execução da medida;
IX – expedir recomendações, visando à melhoria dos serviços policiais, bem como o respeito aos interesses, direitos e bens cuja defesa seja de responsabilidade do Ministério Público, fixando prazo razoável para a adoção das providências cabíveis.
§ 1º Incumbe, ainda, aos órgãos do Ministério Público, havendo fundada necessidade e conveniência, instaurar procedimento investigatório referente a ilícito penal ocorrido no exercício da atividade policial.
§ 2º O Ministério Público poderá instaurar procedimento administrativo visando sanar as deficiências ou irregularidades detectadas no exercício do controle externo da atividade policial, bem como apurar as responsabilidades decorrentes do descumprimento injustificado das requisições pertinentes.
§ 3º Decorrendo do exercício de controle externo repercussão do fato na área cível, incumbe ao órgão do Ministério Público encaminhar cópias dos documentos ou peças de que dispõe ao órgão da instituição com atribuição para a instauração de inquérito civil público ou ajuizamento de ação civil por improbidade administrativa”.


A Lei estadual nº 15.301/2004 – Suspensão cautelar do policial civil


A Lei nº 15.301/04 institui as carreiras do Grupo de Atividades de Defesa Social do Poder Executivo do Estado de Minas Gerais. Em seu art. 51, encontramos relevante disposição para a atuação na fiscalização da atividade policial:

“Art. 51 – Ao servidor da Polícia Civil do Estado de Minas Gerais aplicar-se-á imediatamente a medida de suspensão preventiva prevista no inciso VII do art. 20 da Lei nº 5.406, de 16 de dezembro de 1969, assim que for recebida pelo Poder Judiciário a denúncia decorrente da prática dos seguintes ilícitos:
I – crime hediondo, tortura, tráfico de entorpecentes e drogas afins e terrorismo;
II – crime contra o sistema financeiro ou de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores;
III – extorsão ou corrupção passiva ou ativa.
§ 1º - A suspensão preventiva prevista no caput deste artigo perdurará durante a sindicância administrativa e o respectivo processo administrativo.
§ 2º - Ao servidor suspenso preventivamente aplicar-se-ão as seguintes medidas:
I – recolhimento da arma de propriedade do Estado;
II – recolhimento da identidade policial.
§ 3º - Para fins do disposto neste artigo, a autoridade judiciária competente notificará imediatamente a autoridade administrativa a que o servidor se encontra subordinado sobre o recebimento de denúncia-crime contra o servidor”.

De tal forma, convém que os Promotores atuantes na fiscalização da atividade policial, quando do oferecimento da denúncia pela prática de algum dos delitos mencionados em tal dispositivo, requeiram, com o recebimento da inicial acusatória, na forma do § 3º do art. 51 da lei citada, a efetivação da suspensão administrativa do servidor.


O controle interno


As corregedorias são os órgãos destinados a realizar o controle interno das atividades policiais, ou seja, quando de abusos cometidos durante as atividades-meio dos órgãos que compõem o Sistema de Defesa Social. Para facilitar este controle, foi criado o Sistema Integrado das Corregedorias das Polícias Civil e Militar, Bombeiros Militares e da Administração Penitenciária (SICODS), em Belo Horizonte, no ano de 2006. O objetivo de tal projeto foi o de institucionalizar e otimizar os mecanismos de controle da atividade dos corregedores. Esse sistema colegiado é composto, além dos Corregedores, por outros representantes, como o Ministério Público, Defensoria Pública, Ordem dos Advogados do Brasil, Assembleia Legislativa, Subsecretário de Defesa Social etc. O coordenador do CAO-DH tem assento em tal colegiado.

Por sua vez, a Corregedoria da Polícia Militar delega comumente a presidência de inquéritos policiais militares e sindicâncias administrativas ao comando da unidade em que o policial infrator está lotado, o que se deve a sua estrutura deficiente. Já a Polícia Civil possui equipe de delegados designados especialmente para atuar junto àquele órgão, o que não impede que a investigação de policiais civis possa se dar em delegacias regionais.


1)
Cléve, Clémerson. Investigação Criminal e Ministério Público. Disponível em: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5760
cap10/10-1-8.txt · Última modificação: 2015/03/12 09:55 (edição externa)