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cap10:10-13

13. Atuação especializada no combate ao crime organizado


Autor/Organizador:Procurador de Justiça André Estevão Ubaldino Pereira

Introdução

Qualquer exame que se pretenda fazer do assunto usualmente denominado Crime Organizado exige, antes de tudo, que se repita a advertência, já tantas vezes feita, de que não há fenômeno a que se possa chamar de crime organizado, mas, sim, organizações criminosas. Tal observação, à primeira vista despida de maior importância, traduz apenas um dos embaraços que se apresentam no estudo de tema em verdade pouco conhecido e de existência até bem pouco tempo negada por alguns.

O que é, de fato, o tão (impropriamente) citado crime organizado? Existe, verdadeiramente, tal fenômeno?

Compreendido como conduta humana voluntária que lesa ou expõe a risco de lesão bens juridicamente tutelados, o crime é, até mesmo conceitualmente, atividade que pode desenvolver-se individualmente, nada exigindo, para a sua configuração, ordinariamente, plurissubjetividade ativa. Talvez por isso, isto é, exatamente por bastar à existência do delito a ação de um único indivíduo, ter sido tardio o interesse do legislador pela capitulação, como criminosas, de condutas em que a tipicidade decorresse tão só associação destinada à prática de delitos.

Olvidou o legislador brasileiro, de fato, durante muitos anos, que uma tendência irrefreável do homem – a de associar-se – poderia levá-lo a criar (como o levara a criar o próprio Estado) outras sociedades, inclusive criminosas. Assim, não havendo entre nós, até a década de 40, tipo penal por meio do qual se incriminasse a associação para delinquir, o que vigorava, segundo anota Hungria, era – por inspiração do antigo Direito penal francês – uma cumplicidade que se presumia em decorrência do favorecimento prestado a bandos de assassinos e ladrões nos crimes por eles cometidos.

A esse tempo, porém, o próprio Direito penal francês, que antes nos servira de inspiração, já convertera em crime autônomo a associação para delinquir, definida nos arts. 262 a 266 do CPF como association de malfaitures. O mesmo também havia feito o Direito italiano, cujo Código Penal definira no art. 416 a associazione per delinquere, e o argentino, que no art. 210 definia o delito denominado asociación ilícita.

Por outro lado, embora à época ainda não fossem empregadas para designar essas associações as expressões, hoje correntes, crime organizado e organização criminosa, ações evidenciadoras de sua existência já se podiam fazer sentir em vários cantos do mundo.

Com efeito, ao mesmo tempo em que, com corrente emprego de corrupção e violência, criminosos reunidos violavam a lei seca americana, explorando o contrabando, a produção e a venda de bebidas alcoólicas, no oriente se destacavam a organizada produção, comércio e criminosa exportação, inclusive para o ocidente, do ópio e de seus derivados.

Enquanto isso, no Brasil, em que vigorara primeiro o Código Penal de 1890 e depois a Consolidação das Leis Penais de 1932, iniciavam-se os já preocupantes furtos de automóveis, perpetrados por grupos de criminosos, antes do que já mostrava o cangaço o fôlego que permitiu, entre outras coisas, ao seu mais destacado membro – Virgulino Ferreira da Silva – desfrutar da alcunha de Governador do Nordeste.

Manifestação das mais emblemáticas, o cangaço, embora não exibisse o caráter da transnacionalidade, hoje tão comum à delinquência organizada, fartava-se dos elementos que, modernamente, segundo o senso comum, permitem e impõem a constatação do fenômeno.

De fato, ali já se encontravam presentes, dentre outros, o alto poder de intimidação e de corrupção de autoridades públicas, o esforço pelo domínio territorial, a estrutura piramidal e a busca de vantagem econômica.

Além disso, valendo-se de artifício que não se apresentava inédito, mas que, utilizado com habilidade, granjeou-lhe grande e indispensável apoio popular, apresentava-se seu maior líder ante o povo dos sete Estados por cujo sertão livremente trafegou como o miserável injustiçado cuja coragem e desassombro aterrorizavam os poderosos coroneis de sua época.

Exterminado o cangaço com a eliminação física de muitos dos que o compunham e com o terror imposto aos demais – inclusive com a prática consistente de cortar e exibir as cabeças dos seus membros –, que assim debandaram, nem por isso pôs-se o País a forro do fenômeno que, tendo características próprias, estava a exigir medidas específicas.

De fato, à vista de que o que aparentemente permitira ao cangaço impor por mais de três décadas regime de terror às populações tinham sido a pluralidade de normas processuais penais e a impermeabilidade das fronteiras dos Estados, já a Constituição de 34, acompanhada pela de 37, determinava houvesse, no Brasil, um único Código de Processo Penal.

Embora tais comandos tivessem representado, em seu tempo, importantes inovações na prática repressiva brasileira, não passaram eles, vistos sob certa ótica, de simples correções de distorções, incapazes por isso de fazer face aos desafios de uma criminalidade de feições nitidamente empresariais.

De fato, em vários cantos do planeta eclodiam práticas ilícitas cujo cometimento pressupunha existência de estruturas organizacionais mais ou menos complexas, merecendo registro, entre outras igualmente lucrativas, o tráfico de mulheres com o fim de prostituição, o tráfico de entorpecentes e o contrabando.

Para contê-las, no entanto, encontrava-se dotado o Direito penal brasileiro, desde 1942, de instrumento que se concebera para atender à realidade nacional das décadas anteriores: o art. 288, do CPB, que, sob o nomen júris de bando ou quadrilha, impunha pena de reclusão de um a três anos aos que se associassem em quadrilha ou bando para o fim de cometer crimes.

A insuficiente capacidade intimidativa das normas até então empregadas fez-se, porém, logo evidente: numa das atividades mais frequentemente exploradas pelas organizações criminosas, o tráfico de entorpecentes, por exemplo, sucederam-se vários tratados e convenções internacionais, cada qual revelando o fracasso do que até então se experimentara e buscando instrumentos punitivos novos, mais adequados e uniformes, com vistas à inibição do fenômeno – desde há muito identificado – denominado transferência de carteis.

Destaque especial, nesse sentido, merece a Convenção contra o Tráfico Ilícito Entorpecentes e Substâncias Controladas, de 1988, em que, em seu preâmbulo, afirmava constituir o tráfico ilícito uma grave ameaça à saúde e às bases econômicas, culturais e políticas da sociedade, um risco para a estabilidade, segurança e soberania dos Estados, bem como um risco, em virtude de seu grande rendimento financeiro, para a administração pública e as atividades comerciais e financeiras lícitas.

Assim é que, constatada a criação, a consolidação e o fortalecimento das organizações criminosas (a um ponto tal que sua ousadia fez tornar conhecida não apenas sua existência, mas suas lideranças), propuseram-se medidas, inclusive econômicas, cuja adoção, todavia, ficava na dependência de iniciativas adotadas por cada qual dos convenentes.

No caso brasileiro, por exemplo, apesar das transformações sucessivas operadas nas leis de tóxicos, opôs-se tenaz resistência ao emprego de um dos mais eficazes tratamentos punitivos encontrados para deter o tráfico: o confisco de bens cuja proveniência ilícita não fosse cumpridamente demonstrada pelo condenado.

É que o Estado brasileiro pareceu satisfeito, por muito tempo, com a tão-só imposição de penas privativas de liberdade, que – verdade se diga –, em face do extenso catálogo de benefícios previstos no CPB e na Lei nº 7.210/84, revelam-se autêntica obra de ficção.

Além disso, embora desde há muito impusessem as leis penais a perda dos proventos obtidos com práticas criminosas, não se criaram mecanismos capazes de permitir a célere, como necessária, demonstração da proveniência ilícita de bens e valores. Sem falar, é claro, nos prazos processuais cuja exiguidade impõe que ou se solte o acusado por sua inobservância ou a ela se dê causa com o fim (muitas vezes frustrado) de demonstrar o patrimônio que possui e sua origem ilícita.

Demais disso, talvez por excessivo pudor, sempre se repudiou veementemente a cooperação para a repressão criminal daqueles que, por sua posição, melhor contribuição poderiam a ela dar: os criminosos arrependidos. Também às testemunhas, mesmo quando sujeitas à represália de criminosos, negou-se, durante muito tempo, qualquer forma de apoio. Mas não é só. Contribuíram também para que chegássemos ao ponto em que nos encontramos a falta de estabelecimentos que efetivamente assegurassem o cumprimento de penas privativas de liberdade e a arcaica estrutura e modo de funcionamento de nossas instituições de controle.

Por tudo isso, o recrudescimento da criminalidade violenta entre nós, como subproduto das ações da criminalidade organizada, hoje dedicada não só ao tráfico, mas a diversificada área de atuação revela-se por meio de ações delituosas, a cada dia mais ousadas.

Em consequência, tem-se assistido a numerosos exemplos de ataques ao Estado, por vezes na pessoa dos que se acham investidos no exercício de funções públicas ligadas à repressão criminal e, é óbvio, aos titulares dos bens jurídicos protegidos por débeis normas penais incriminadoras.

Igual fenômeno ocorreu, anos atrás, em outros países, que a ele respondeu com legislação repressiva consideravelmente mais moderna e severa.



cap10/10-13.txt · Última modificação: 2016/07/21 18:56 (edição externa)