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cap10:10-2-2-1

2.2.1. Atuação nos interditos possessórios

Legitimação interventiva

Prefacialmente, impende registrar que a intervenção do Ministério Público nas ações que versam sobre conflito coletivo pela posse da terra rural é medida imposta por norma imperativa (jus cogens), que adveio com a alteração efetuada no art. 82, III, CPC, através da edição da Lei nº 9.415/96, impondo, por conseguinte, a nulidade do feito em caso de não-intervenção, em consonância com o que estabelece o art. 84, c/c o art. 246, também do CPC.

Conflito coletivo pela posse da terra rural – Caracterização

A Lei nº 9.415/96 operou relevante alteração no art. 82, III, do Código de Processo Civil quando, em razão dos conflitos sociais caracterizados pela luta pela terra, consagrou a legitimação interventiva do Ministério Público nas lides que versem sobre conflito coletivo pela posse da terra rural.

Tal dispositivo não só estabelece os parâmetros ou condicionantes para a intervenção ministerial, mas também vem a determinar a competência do juízo, notadamente quando estamos diante da criação de Varas Estaduais de Conflitos Agrários, a exemplo dos Estados de Minas Gerais, Pará, Santa Catarina, dentre outras unidades da Federação.

Destacam-se do dispositivo alguns elementos determinantes da legitimação interventiva no âmbito do chamado interesse social: conflito coletivo, posse e terra rural, sem afastar a intervenção em razão da hipossuficiência da parte.

O conflito coletivo caracteriza-se como uma modalidade de conflito social, a exemplo do que também ocorre com o chamado interesse individual homogêneo (v. art. 81, parágrafo único, inciso III, do Código de Defesa do Consumidor), cuja característica mais efusiva consiste na pluralidade subjetiva de, pelo menos, uma das partes demandantes. No caso específico do que se convencionou chamar de conflitos agrários, temos por coletivo o conflito quando várias pessoas, unidas entre si por uma relação jurídica base, via de regra, através da constituição de movimentos sociais organizados, objetivam implementar a reforma agrária, possibilitando a todos o acesso a terra.

Com efeito, exige-se que a ocupação do imóvel rural decorra de unidade psicológica ou mobilização por movimentos sociais, a exemplo do que vem ocorrendo em alguns julgados, conforme se extrai do Feito nº 2.0000.00.471938-2/001 do TJMG, in verbis:

Tratando-se de conflito coletivo de terra rural, que se caracteriza por envolver grande número de possuidores num dos pólos passivos da relação processual, sendo comum a mobilização de trabalhadores pelos movimentos sociais, torna-se, senão impossível, extremamente dificultosa a identificação de todos os requeridos, sendo a exigência processual suprida pela citação editalícia de todos aqueles não identificados.

Portanto, o que qualifica determinado conflito como coletivo é, além da presença de uma pluralidade de pessoas em um dos pólos da relação processual, também a existência de um liame subjetivo entre elas, muitas vezes caracterizado por vinculações a movimentos sociais organizados, com o objetivo comum de ocuparem imóveis rurais, como instrumento de pressão para a implementação da reforma agrária. Há que ser exigida relativa concomitância ou continuidade nos atos de ocupação, de modo que as ações isoladas no tempo, sem nenhum vínculo ou relação com fato de origem comum, não caracterizariam a coletividade descrita na Lei.

A ocupação coletiva apresenta contorno de união na montagem do acampamento, na administração da área ocupada, como plantio, educação, vigilância, apresentando-se os ocupantes como integrantes de um grupo organizado e, inexoravelmente, voltado à reforma agrária.

A posse (de terra rural) caracteriza-se não somente por atos de exteriorização do domínio, dentro da concepção clássica do instituto, devendo ser analisados, ainda que em juízo de prelibação, os elementos a ela intrínsecos e caracterizadores da função social, princípio inserto na Constituição Federal de 1988 (art. 170, II) e minudenciado no art. 186 do aludido Pacto.

A norma também exige que o imóvel tenha a configuração de rural. O conceito de zona ou área rural é determinado por exclusão. Isso ocorre porque cabe ao município, através de lei, delimitar sua área urbana, sendo considerada rural toda a área excluída da zona urbana. Noutro giro, a caracterização do imóvel como rural pode decorrer da sua destinação, passando o urbano para a residualidade, em acatamento ao disposto no art. 4º, I, da Lei nº 4.504/64 (Estatuto da Terra), in verbis:

Art. 4º Para os efeitos desta Lei, definem-se: I – Imóvel Rural, o prédio rústico, de área contínua, qualquer que seja a sua localização, que se destine à exploração extrativa agrícola, pecuária ou agroindustrial, quer através de planos públicos de valorização, quer através de iniciativa privada; […]

No que tange, especificamente, à intervenção do Ministério Público e à conseqüente modalidade interventiva, ainda há que ser destacada a freqüente hipossuficiência da parte passiva na lide, uma vez que, ordinariamente, constitui-se de pessoas que não gozam de direitos fundamentais primários e que buscam erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades, iniciando tal sofrível caminhada com a ocupação de imóvel ou com a resistência para se manterem no espaço que ocupam, em frente aos poderosos interesses que envolvem os proprietários de bens imóveis em nosso País. A fragilidade detectada no âmbito do direito subjetivo/material há que ser transportada para o direito adjetivo/processual, de forma que seja buscado o desejado equilíbrio entre as partes, para que possam ser efetivados os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa.

Os interditos possessórios

• ação de Reintegração de Posse;
• ação de Manutenção de Posse; e
• ação de Interdito Proibitório.

Segundo Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves Farias:1)

Reintegração de posse: É o remédio processual adequado à restituição da posse àquele que a tenha perdido em razão de um esbulho, sendo privado do poder físico sobre a coisa. A pretensão contida na ação de reintegração de posse é a reposição do possuidor à situação pregressa ao ato de exclusão da posse, recuperando o poder fático de ingerência socioeconômica sobre a coisa.

Manutenção de posse: Se no esbulho há efetiva privação do exercício direto sobre a coisa, muitas vezes pode o possuidor ser perturbado ou severamente incomodado no exercício da posse, sem que tal agressão seja intensa o suficiente para excluí-lo do poder físico sobre o bem. O interdito de manutenção de posse pretende exatamente interromper a prática dos atos de turbação, impondo-se ao causador da moléstia a obrigação de abster-se da prática de atos contrários ao pleno e livre exercício da posse do autor, garantindo a permanência do estado de fato.

Interdito proibitório: O interdito proibitório pode ser conceituado como a defesa preventiva da posse, diante da ameaça de iminentes atos de turbação ou esbulho, objetivando impedir a consumação do ato de violência temido (art. 932, CPC). O possuidor, inibido pelo fundado receio de sofrer agressão próxima, dirige-se ao magistrado, a fim de pleitear uma liminar que obrigue o réu a abster-se de concretizar a agressão, mediante imposição de preceito proibitório, com a cominação de pena pecuniária – multa diária –, em caso de transgressão do preceito. (p. 129)

Para Humberto Theodoro Júnior:2)

Ação de reintegração de posse (antigo interdicto recuperandae possessionis dos romanos) tem como fito restituir o possuidor na posse, em caso de esbulho. Por esbulho deve-se entender a injusta e total privação da posse, sofrida por alguém que a vinha exercendo.

Ação de manutenção de posse (que corresponde aos interdicta retinendae possessionis do direito romano) destina-se a proteger o possuidor contra atos de turbação de sua posse. Seu objetivo é fazer cessar o ato do turbador, que molesta o exercício da posse, sem contudo eliminar a própria posse.

Interdito proibitório é uma proteção possessória preventiva, uma variação da ação de manutenção de posse, em que o possuidor é conservado na posse que detém e é assegurado contra moléstia apenas ameaçada.

Conforme Alexandre Freitas Câmara:3)

A ação de reintegração de posse é a via adequada para obtenção de tutela da posse quando esta sofreu um esbulho. Define-se o esbulho como a moléstia à posse que a exclui integralmente, de tal modo que o possuidor deixa de o ser. Assim sendo, ocorre esbulho quando há perda total da posse, molestada injustamente por outrem.

Será adequada a utilização da ação de manutenção de posse como forma de obter tutela da posse contra a turbação. Esta espécie de moléstia à posse pode ser definida como todo ato praticado contra a vontade do possuidor, que lhe estorve o gozo da coisa possuída, sem dela o excluir completamente. Difere a turbação do esbulho, pois, pelo fato de que neste ocorre a perda total da posse, enquanto naquela a posse se mantém, com as limitações impostas pela turbação.

É adequada a utilização do interdito proibitório quando ainda não ocorreu moléstia à posse do demandante, existindo apenas uma ameaça de esbulho ou turbação. Trata-se esta, pois, de demanda preventiva, destinada a impedir que a posse seja molestada, enquanto os outros dois interditos destinam-se a proteger uma posse já violada.

Para Sílvio de Salvo Venosa:4)

Ocorrendo esbulho, a ação é de reintegração de posse. Esbulho existe quando o possuidor fica injustamente privado da posse. Não é necessário que o desapossamento decorra de violência.

O interdito proibitório é utilizado para a simples ameaça à posse. A turbação é ofensa média à posse, socorrida pela ação de manutenção. O titular tem o exercício de sua posse prejudicado, embora não totalmente suprimido.

O interdito proibitório é remédio concedido ao possuidor direto ou indireto que tenha justo receio de ser molestado na posse (art. 932 do CPC).

Abordagem clássica da posse

Em virtude, notadamente, da falta de especialização na prestação jurisdicional e da intervenção do Ministério Público, tivemos, por décadas, abordagens puramente privadas dos conflitos agrários/fundiários, aplicando-se indiscriminadamente o direito privado, ou seja, o Código Civil de 1916 e o Código de Processo Civil vigente, procedimentos indesejáveis e de exclusão do Direito Agrário.

Observância do princípio da função social da propriedade (arts. 5º, XXIII, 170, III, e 186 da CF/88)

A intervenção ministerial nos conflitos pela posse da terra rural deve pautar-se essencialmente pela verificação dos vetores de tal princípio, caracterizados pela produtividade, respeito à legislação ambiental e social, exploração voltada ao bem-estar dos proprietários e trabalhadores, ressaltando que tais comandos constitucionais são perfeitamente aplicáveis à seara possessória, tendo em vista que a Constituição Federal conhece da posse agrária, como se extrai do caput do seu art. 191.

Esclarece José Afonso da Silva que “[…] a função social se manifesta na própria configuração estrutural do direito de propriedade, pondo-se concretamente como elemento qualificante na predeterminação dos modos de aquisição, gozo e utilização dos bens”.5)

Para Jaques Távora Afonsin:

À função social da propriedade, enquanto dever do proprietário ou do possuidor, corresponde o direito de todos os não-proprietários, especialmente dos mais necessitados, cujo acesso ao mesmo espaço titulado nunca deixa de estar potencialmente previsto como possível, na exata medida em que a dita função deixe de ser cumprida.6)

Posto isso, como se extrai de vários despachos iniciais do Juízo de Conflitos Agrários de Minas Gerais, devem ser colacionados aos autos elementos probatórios, v.g., no tocante à:

• produtividade do imóvel rural (art. 186, I, da CF/88, e arts. 6º e 9º, I, ambos da Lei nº 8.629/93), apresentando o respectivo Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR) atualizado, bem como a ficha do gado porventura nele apascentado, seja ele do(s) requerente(s) ou do possuidor direto;
• situação ambiental do imóvel (art. 186, II, da CF/88 e art. 9º, § 2º, da Lei nº 8.269/93), demonstrando se há averbação da reserva legal em certidões de inteiro teor das matrículas e/ou transcrições imobiliárias, bem como eventuais licenças ambientais para exploração da terra e da água, concedidas para si ou em favor do arrendatário;
• regularidade das relações trabalhistas (carteira de trabalho, recolhimento do INSS, etc) mantidas com os eventuais empregados que laboram no imóvel, sejam ou não eles subordinados ao requerente (art. 186, III, da CF/88 e art. 9º, III, da Lei nº 8629/93);
• eventuais medidas implementadas no sentido do favorecimento da saúde, lazer e educação do requerente (proprietário, possuidor e/ou arrendatário) e dos trabalhadores (função bem-estar – art. 186, IV, da CF/88, e art. 9º, IV, da Lei nº 8.629/93).

Também é necessário que se colacione aos autos planta de situação e localização do imóvel no respectivo município, com seus limites e confrontações (indicar as propriedades vizinhas), principais vias de acesso e o local onde se encontram efetivamente os requeridos, além de indicar as atividades agropastoris desenvolvidas pelo(s) requerente(s) – ou terceiros – em toda a área, identificando-as.

Com efeito, devem ser cientificados o INCRA, o Ministério do Trabalho, o IBAMA, o ITER, o IEF, o IGAM, a PMMG e a Polícia Ambiental local acerca do conflito instalado, solicitando-se à autarquia federal (INCRA) informações sobre a eventual existência de decreto expropriatório do imóvel rural e/ou procedimento administrativo de desapropriação; ao IBAMA e ao IEF informações acerca de eventual ocorrência de ilícito ambiental no imóvel; e ao IGAM informações quanto à regularidade do uso de recursos hídricos no imóvel.

De se registrar que, quando se constata intensa produtividade do imóvel, pode-se estar diante da chamada produtividade ilícita, uma vez que, ao se sacrificar o ser humano e/ou o meio ambiente, pode haver configuração de ilícito civil, caracterizado também pela teoria do abuso do direito ou prática de atos de emulação, instituto objetivamente consagrado no art. 187 do Código Civil de 2002. As hipóteses em testilha freqüentemente ocorrem em monoculturas (cana-de-açúcar, eucalipto, etc).

Competência/atribuições – Resolução nº438/04/TJMG e LC nº34/94

A competência para dirimir conflitos agrários no Estado de Minas Gerais é da Vara de Conflitos Agrários de Belo Horizonte, consoante o estabelecido na Resolução TJMG nº 438/2004, que prescreve, em seu art. 2º:

Art. 2º O Juiz de Direito da Vara de Conflitos Agrários, com sede em Belo Horizonte, tem jurisdição em todo o Estado de Minas Gerais e competência para processar e julgar as ações que envolvam litígios coletivos pela posse de terras rurais, mencionadas no art. 82, inciso III, do Código de Processo Civil, e as que lhe são conexas.

De se ressaltar que tal competência também abrange as chamadas ações discriminatórias concernentes a terras devolutas estaduais sobre as quais incidem conflito coletivo agrário.

As atribuições ministeriais para intervenção nos interditos possessórios pertinem à Promotoria de Justiça de Conflitos Agrários de Belo Horizonte, que funciona junto ao aludido Juízo, tendo sido criada pela Lei Complementar nº 34/94, consoante o disposto em seu art. 61, IV, alterada pela LC nº 61/01.

Competência da Vara de Conflitos Agrários de Belo Horizonte, pelas atribuições da Promotoria de Justiça de Conflitos Agrários e pela competência da Justiça Federal

Devem os órgãos de execução locais e/ou Promotoria de Justiça de Conflitos Agrários de Belo Horizonte, atentos a fatos tão relevantes socialmente, peticionar ao juízo no qual eventualmente tramite feito versando sobre conflito coletivo pela posse da terra rural, bem como respectivas discriminatórias, pleiteando o deslocamento da competência para a Vara Estadual de Conflitos Agrários, que tem competência absoluta ratione materiae, cientificando o Centro de Apoio Operacional de Conflitos Agrários.

Lado outro, há que ser observada a competência da Justiça Federal – que, em Minas Gerais, possui Vara Especializada (12ª Vara Federal de Belo Horizonte) – quando a hipótese fática convergir para o art. 109, I, da Constituição Federal. As situações mais comuns de competência da Justiça Federal são: a) expedição de decreto presidencial destinando o imóvel rural para fins de reforma agrária; b) existência de ação na Justiça Federal relativa ao imóvel objeto de conflito; c) manifestação da União demonstrando seu interesse na causa (v. Lei nº 9.469/97).

De registrar que compete à Justiça Federal decidir sobre a existência de interesse jurídico que justifique a presença, no processo, da União, suas autarquias ou empresas públicas (Enunciado 150 da Súmula do STJ). Nesse prisma, perfaz-se de notória importância manifestação perante o juízo, requerendo a remessa dos autos à Justiça Federal, com a conseqüente revogação de eventual ordem judicial prolatada nos autos da possessória.

Oitiva prévia do Ministério Público

O Ministério Público deve ser previamente instado a manifestar-se diante de pleito de concessão de liminar, ou seja, antes do juízo de prelibação. Isso porque as liminares apresentam cunho satisfativo. Do contrário, a norma insculpida no art. 82, III, do CPC, que trata da intervenção obrigatória do Ministério Público, seria materialmente violada, caso tal intervenção ocorresse após o juízo antecipatório, pois seria praticamente ineficaz. Em face da existência de diversos julgados a esse respeito, a seguir colacionados, a Resolução nº 438/04-TJMG passou assim prescrever:

Art. 10. Recomenda-se, ressalvadas as situações de extrema urgência, a prévia oitiva do Ministério Público antes da decisão liminar, bem como no curso da lide, a cientificação dos órgãos envolvidos nos conflitos agrários, a fim de que possam prestar as informações pertinentes e eventual auxílio técnico administrativo para a composição dos conflitos.

Conflitos possessórios envolvendo remanescentes de comunidades de quilombos

O regramento jurídico envolvendo a territorialidade dos remanescentes das comunidades quilombolas está previsto no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que dispõe:

Art. 68 – Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o estado emitir-lhes o título respectivo.

Os arts. 215, § 1º, e 216, § 1º e § 5º, da CF/88 também tratam da questão, ao prescreverem:

Art. 215
[…]
§1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional;
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira […];
§1º O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação e de outras formas de acautelamento e preservação […];
§5º Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos.

À normatização transcrita também devem ser acrescidos os Decretos nº 4.887/2003 e nº 5.051/2004 e as disposições da IN nº 20/2005-INCRA.

A compreensão das questões respectivas deve passar necessariamente pelo processo hermenêutico, calcado na interpretação sistemática e teleológica, sobretudo dos dispositivos constitucionais, não bastando exegese literal, já que vinculada a investigações antropológica, sociológica e histórica. Nesse contexto, quilombo é mais que expressão geográfica na qual, em certa época, escravos ou não, foragidos ou não, resistiam a recaptura e se insurgiam contra o regime escravocrata e as perversas conseqüências. Ponto central que envolve a questão do território quilombola encontra-se na expressão que estejam ocupando.

Não se apresenta concebível que a Constituição Federal cingiu-se apenas aos aspectos temporal e espacial da questão quilombola, quando direta (art. 68, ADCT) e reflexamente (arts. 215, § 1º, e 216, §1º e § 5º) regulou a matéria; evidentemente, considerou os aspectos sociológicos e históricos (em analogia à ocupação dos índios). É preciso, portanto, identificar os remanescentes de quilombos e os próprios quilombos, vetores daquilo que a Constituição estabeleceu como que estejam ocupando (v. art. 2º do Decreto nº 4.887/03), de modo a envolver o território necessário ao pleno exercício dos direitos culturais e a difusão das manifestações culturais (art. 215, CF/88), bem como a proteção do patrimônio cultural tutelado (art. 216, CF/88).

Com efeito, a expressão terras que estão ocupando compreende o todo necessário à sobrevivência e também às manifestações culturais e religiosas dos remanescentes das comunidades quilombolas.

O próprio auto-reconhecimento deve revelar a extensão territorial tutelada pelo art. 68 do ADCT, cuidando de uma territorialidade cultural sui generis.

O texto constitucional prescreve “[…] é reconhecida a propriedade definitiva”, como induvidosa afirmação de propriedade antecedente, constituída pela ocupação e pela condição de ser remanescente de comunidade de quilombo, com oponibilidade erga omnes, como corolário típico dos direitos reais e da própria dimensão constitucional. Entretanto, o ordenamento jurídico impõe o reconhecimento coletivo da propriedade, por estarmos diante de remanescente de comunidade, caracterizada, também, pela indivisibilidade e inalienabilidade (v. art. 17, Decreto nº 4.887/03).

Quando o texto constitucional determina devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos, impõe, evidentemente, um dever, prevalecendo sobre bens públicos e particulares.

A responsabilidade pela titulação, nessa linha, dependerá diretamente da respectiva competência administrativa sobre as terras ocupadas, quando públicas (v. art. 12, Dec. nº 4.887/03). Quando disser respeito a terras legitimamente registradas como de domínio particular, competirá à União e aos Estados a desapropriação por interesse social, com as respectivas indenizações das benfeitorias.

Sobre o tema, indica-se o laborioso e brilhante Parecer nº AGU/MC-1/2006, da lavra do ilustre Consultor-Geral da União, Manoel Lauro Volkmer de Castilho, datado de 24 de novembro de 2006 e aprovado pelo Excelentíssimo Senhor Advogado-Geral da União, Álvaro Augusto Ribeiro Costa.

Com tais considerações, tem-se que, após a identificação, reconhecimento, delimitação e demarcação da área, eventual conflito possessório haverá que ser solucionado observando-se a titularidade preexistente da propriedade. Devido ao notório interesse público incidente e à impossibilidade de ocorrência de prescrição aquisitiva, o pleito possessório aviado contra os indivíduos remanescentes de comunidade quilombola deverá ser julgado improcedente, restando ao “proprietário” indenização indireta, se hígido seu título.

Com efeito, nos conflitos coletivos envolvendo comunidade remanescente de quilombos, além da investigação quanto ao cumprimento da função social da propriedade/posse, deve-se colacionar elementos probatórios visando aquilatar a incidência, em especial, do art. 68, ADCT: auto-reconhecimento (Decreto nº 4.887/03), delimitação e demarcação do território pelo INCRA. Somente após a adoção das providências respectivas, poder-se-á exercer o juízo de prelibação na abordagem da liminar, se, por óbvio, pleiteada pela parte.


1)
ROSENVALD, Nelson, e FARIAS, Cristiano Chaves. Direitos Reais. 3. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2006. p. 122/129.
2)
Theodoro JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Procedimentos especiais. 38 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 131.
3)
CÂMARA, Alexandre Freitas Câmara.Lições de Direito Processual Civil. 11 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006. v.3. p. 388-389.
4)
VENOSA, Sílvio de Salvo.Direito Civil: direitos reais. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 128/130.
5)
SILVA, José Afonso da.Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 256.
6)
ALFONSIN, Jaques Távora. Os conflitos possessórios e o Judiciário. Três reducionismos processuais de solução. In: DRESCH DA SILVEIRA, Domingos Sávio e Xavier, Flávio Santánna (Org.).O Direito Agrário em debate. Livraria do Advogado, POA, 1998. p. 280.
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