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cap10:10-4-1

4.1. Breve história do direito da criança e do adolescente


O reconhecimento de que crianças e adolescentes são pessoas em estado de desenvolvimento e que, em razão disso, merecem tratamento diferenciado e prioritário é novidade na história da civilização, o que explica, mas não justifica a dificuldade de implementação da lei. O cenário social e o posicionamento do Direito revelam o valor que a criança e o adolescente tinham em cada época e evidenciam quem sempre foi o lado mais fraco.

A supremacia dos interesses da família – considerada sagrada pela maioria das religiões – em detrimento dos interesses da criança parece ter sido a tônica desde o início da história do homem sobre a Terra. Nas antigas civilizações, os laços familiares eram estabelecidos pelo culto à religião, e não pela afetividade ou consanguinidade. O pai era a autoridade máxima e detinha poder absoluto sobre os filhos enquanto morassem com ele, independentemente da maioridade, pois ainda não havia distinção entre maiores e menores.

O direito romano consagrava ao pater família o direito de apor o seu nome nos componentes de seu patrimônio, razão pela qual a esposa e os filhos ganhavam o sobrenome do varão. Havia inclusive a regra de que o pai que não quisesse ressarcir danos causados pelo filho poderia entregá-lo à pessoa prejudicada para que esta o fizesse escravo e explorasse o seu trabalho.

As práticas ocorridas em Esparta também são eloquentes para caracterizar o pensamento vigente. O pai transferia a um tribunal do Estado o poder sobre a vida e a criação dos filhos a partir do momento em que completassem sete anos, com o intento de torná-los guerreiros, o que talvez fosse a principal meta daquela cidade-estado grega.

Na Idade Média, o crescimento da religião cristã influenciou as normas e deu início ao reconhecimento dos direitos das crianças ao pregar o direito de todos à dignidade, indistintamente. A Igreja foi aos poucos outorgando proteção aos menores e aplicando penas aos pais que os abandonassem. No entanto, essa proteção se restringia aos nascidos dentro do casamento, relegando aos filhos extramatrimoniais a bastardia e a discriminação.

No Brasil-Colônia, a legislação manteve o pai como autoridade máxima e assegurou a ele o direito de castigar o filho como forma de educá-lo, ignorando a ilicitude da conduta mesmo em caso de lesão ou morte do filho. O pai não sofria nenhuma sanção, pois entendia-se que estava exercendo legalmente seu direito.

Já com relação aos indígenas, houve uma inversão no tratamento às crianças, segundo Amin 1), por interesses religiosos. Dada a dificuldade de catequizar índios adultos, os jesuítas perceberam que era mais simples educar as crianças e utilizá-las para atingir os pais, a fim de impor uma visão sacralizada. Os filhos passaram a inserir os pais na nova ordem moral.

Desse ponto em diante, iniciou-se uma prática comum por parte do Estado brasileiro em quase quinhentos anos de história: a de se apropriar da criação de crianças e adolescentes, não reconhecendo a família como instância adequada para tal, sobretudo se pertencesse a classes sociais desfavorecidas.

Em 1551, o Estado passou a atuar por meio da Igreja e fundou a primeira casa de recolhimento de crianças do Brasil, gerida por jesuítas. O objetivo era isolar crianças índias e negras do que consideravam má influência e costumes bárbaros dos pais, partindo do pressuposto de que as famílias desvalidas e de ascendência não europeia eram inábeis para educar sua prole. Consolidou-se uma política de recolhimento que se apropriava dos infantes para disseminar os valores caros à ordem dominante.

No século XVIII, o Estado passa a se preocupar ainda mais com órfãos e expostos. Na época, era muito comum abandonar crianças, principalmente ilegítimas (nascidas fora do casamento) e filhas de escravos, na porta de igrejas, conventos, residências e até mesmo na rua, fato que deu causa à importação da roda dos expostos, mecanismo europeu que perdurou no Brasil até a década de 1950. A roda dos expostos era um engenho instalado na porta das Santas Casas de Misericórdia, no qual havia um compartimento para que os bebês fossem ali depositados e que rodava para o interior do recinto, de modo a garantir o anonimato de quem abandonasse a criança. Estava institucionalizado o desamparo, o abandono, e, ainda, oferecia-se ao autor de tal desumanidade um engenho que lhe garantisse o anonimato, como se a criação de uma criança fosse um estorvo. Além disso, afastar o bebê da família era considerado a medida mais adequada para o desenvolvimento e a sobrevivência do infante.

O início do período republicano foi marcado pelo crescimento da população de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo. As mazelas sociais, como doenças e falta de moradia, se agravaram, exigindo medidas urgentes e cruciais, pois aquele era o momento de construção da imagem da República. Entidades assistenciais foram fundadas para intensificar o recolhimento, e o pensamento social oscilava entre assegurar direitos e “se defender” dos menores. Mais de um século depois, o anseio social dominante não é muito diferente.

Construiu-se nesse contexto a Doutrina do Direito do Menor, fundamentada no binômio carência/delinquência e na noção de que o Estado deveria “proteger” os menores, mesmo à custa da supressão de suas garantias. Naquele momento, a tutela da infância se caracterizou pelo regime de internações e a quebra de vínculos familiares, substituídos por vínculos com instituições. O objetivo era “recuperar” o menor, adequando-o ao comportamento desejado pelo Estado, mesmo que fosse necessário afastá-lo dos familiares. A preocupação era correcional, higienista, e não afetiva. O próprio fato de ser menor já trazia em seu bojo a ideia de alguém a ser recuperado, como se menoridade fosse delinquência.

A criação da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem), na década de 1960, foi mais um incentivo à política de segregação, a qual demonstrou ser um instrumento hábil para imposição da instituição estatal como forma de controle político sobre a população mais jovem.

No entanto, esse paradigma foi quebrado entre 1980 e 1990, quando se difundiu o pensamento de que as crianças deveriam ser criadas por suas famílias e que a entidade familiar (biológica ou não) é essencial à pessoa em formação. Esse novo conceito se consolidou e foi incorporado à Constituição da República de 1988, nos art. 227, 4º e 16, inc. V, e de modo destacado no Capítulo III, Título II da Lei nº 8.069/90.

Essa ruptura de paradigma não ocorreu de um dia para outro, muito pelo contrário, e por isso merece ser devidamente contextualizada. No século XX, houve um notável avanço de disciplinas como pedagogia, psicologia, medicina e psicanálise, que elaboraram teorias sobre o estado de ser criança e suas necessidades diferenciadas. Os trabalhos empreendidos por Freud, Melanie Klein, Lacan, Piaget, Winnicott e Paulo Freire, por exemplo, foram extremamente reveladores das vicissitudes enfrentadas por quem se encontra em desenvolvimento físico e psíquico. O entendimento propiciado por esses estudos e o cenário político brasileiro entre 1980-1990 deram vazão ao novo paradigma que viria nortear o direito da criança e do adolescente e encarregaria de sua tutela o Ministério Público.

Ao fim do longo regime militar instituído pelo Golpe de 1964, que suprimiu os direitos de reunião e de expressão do pensamento e privou a população de participar de atos ligados à República, a sociedade de dezembro de 1983 se viu mais apta a se manifestar contra os problemas sociais, até então mascarados pela censura aos meios de comunicação.

O cenário social foi se revelando na medida em que a censura caía e os meios de comunicação se reorganizavam. Desemprego, fome, violência, altos índices de analfabetismo, aglomeração de populações em favelas em torno dos grandes centros urbanos e uma total ausência de políticas públicas e exclusão impulsionaram as manifestações populares a reivindicar direitos que lhe foram negados. Crianças e adolescentes se destacaram como as vítimas mais frágeis das mazelas que se descortinavam, causando comoção e revelando o efeito negativo dos 500 anos de negação dos direitos fundamentais.

Por outro lado, os partidos políticos começaram a se organizar. A Assembleia Nacional Constituinte foi convocada a reparar a omissão em relação ao público infantojuvenil, até então tratado como objeto de intervenção do mundo adulto e não reconhecido como sujeito de direitos. Diante desse panorama, a Constituinte estabeleceu a proteção dos interesses da infância e da juventude como única prioridade absoluta da República e elaborou o art. 227 da Carta Magna. Passou-se do princípio da situação irregular para o da proteção integral.


1)
AMIN, Andréa Rodrigues. Doutrina da Proteção Integral e Princípios orientadores do direito da criança e do adolescente. In: MACIEL, Kátia R. F. L. A. (Coord.). Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
cap10/10-4-1.txt · Última modificação: 2014/09/25 10:40 (edição externa)