Essa é uma revisão anterior do documento!
É comum o Promotor de Justiça da Infância e Juventude solicitar ao Conselho Tutelar uma apuração preliminar quando recebe denúncia de violência contra crianças e adolescentes, sobretudo nos casos encaminhados pelos serviços Disque 100 e Disque Direitos Humanos.
O Estatuto da Criança e do Adolescente limita a atuação do Conselho Tutelar à apuração da situação de risco e à aplicação de medida de proteção. A averiguação restringe-se a investigar a existência de situação de risco, e não de ilícito criminal, pois são esferas de extensão e profundidade diversas, pelo menos no nosso entendimento. Assim, não é plausível demandar dos Conselheiros uma averiguação mais apurada em termos criminais, pois não são preparados para este mister.
Além disso, o fenômeno da violência contra crianças e adolescentes é extremamente complexo. Segundo dados apurados pela CPI da Pedofilia, 70% das violações ocorrem no ambiente familiar. Quem deveria proteger, abusa e ofende. Em estudos implementados pela área de psiquiatria da Faculdade de Medicina da UFMG, verificou-se que o agressor, sobretudo aquele autor de ofensas sexuais, em 98% dos casos são homens que conhecem a criança e têm acesso facilitado a ela, por questões familiares ou domésticas.
A investigação de todos esses dados é difícil, pois a violação se infiltra justamente onde deveria haver acolhimento, num contexto de opressão e ameaça. Em 60% das vezes, a mãe sabe, mas se mantém inerte, ou porque teme a violência contra si, ou porque prefere ficar com o companheiro a delatá-lo, ou, ainda, porque tem medo de perder o provedor. Todo o peso deste pacto familiar sinistro é suportado pela criança, que, bem ou mal, guarda para com seus agressores um vínculo de afetividade que a força ao silêncio. O relato da criança é contaminado, e não existe ninguém da família disposto a romper com este mecanismo perverso. Tudo isso já está plenamente catalogado na literatura médica, demonstrando que a apuração de casos tais é realmente árdua, carecendo até da intervenção de um técnico para que a averiguação não se constitua outra vez em uma revitimização do ofendido.
Muitas vezes, a entidade familiar prefere conviver com as violações do que cogitar sua fragmentação em virtude do desvendamento da verdade. Desse modo, não basta que o Conselheiro Tutelar pergunte à pretensa vítima se ela foi agredida, e que estenda tal indagação aos outros membros da família.
É por causa dessa complexidade que entendemos que talvez a atuação do Promotor de Justiça da Infância e do Conselho Tutelar não bastem. Outros atores poderiam ser acionados para atuar, seja a polícia, seja o CREAS (Centro de Referência Especializado em Assistência Social, mecanismo do SUAS).
A detecção da violência familiar pressupõe uma abordagem técnica, permeada pelos saberes da assistência social e da psicologia, já que a criança ou o adolescente reputados como possíveis vítimas devem ser ouvidos com toda cautela para que seu sofrimento não seja agravado. Diante de todos estes aspectos, sugere-se que a averiguação se divida em duas frentes:
1ª - Solicitação ao Conselho Tutelar para que entreviste, com muita discrição e cautela – sem levantar suspeitas e tampouco mencionar os termos da denúncia –, a criança e o seu responsável, atentando-se para o estado de humor infantil e observando se ela ostenta marcas de violência. A abordagem deve ser feita com o maior cuidado porque, se o ofensor detectar que está sob vigilância, poderá atuar no sentido de destruir provas e proceder de forma ainda mais violenta para com a vítima e eventuais testemunhas, a fim de que o segredo não venha à tona. Sendo assim, é recomendável que o Conselho Tutelar justifique que aquele procedimento é de rotina e que aquele agrupamento familiar foi escolhido para uma pesquisa por amostragem sobre as condições das famílias residentes naquela comunidade. É interessante que o Conselho Tutelar busque mais informações na escola, indagando detalhes do comportamento da criança aos educadores: se ela mudou de humor, se está depressiva ou agressiva, se apresenta dificuldades de aprendizado, se dorme durante a aula, se demonstra comportamento erotizado (se fala sobre sexo ou órgãos genitais, demonstra interesse em ver ou tocar o corpo de outras crianças etc). Também é recomendável buscar informações junto ao sistema de saúde. Sempre, insistimos, com a maior discrição. Tudo isso é para verificar se a criança apontada como vítima de violência se encontra na situação de risco descrita no art. 98 do Estatuto e se carece de medida de proteção, a ser aplicada pelo próprio Conselho Tutelar.
Novamente, destaca-se que o Conselho Tutelar não tem qualificação e nem objetivo de investigar crime. Porém, se fizer uma abordagem apropriada, conseguirá reunir um conjunto enorme de informações que poderão municiar o Promotor de Justiça na decisão quanto às providências: requisição de inquérito; ajuizamento de destituição do poder familiar; e encaminhamento ao serviço especializado de assistência social do Município.
A investigação de notícias como essas geralmente dá melhor resultado se for conduzida indiretamente do que diretamente. A requisição direta de um inquérito advertirá a família quanto a suspeitas e poderá fazer com que o pacto de silêncio se intensifique. Se o Conselho detectar indícios na primeira averiguação, poderá requisitar inquérito e encaminhar a criança ao serviço social municipal, que é obrigado a fornecer atendimento. Se houver CREAS, tanto melhor.
Como unidade de atendimento do SUAS (Serviço Único de Assistência Social), o CREAS é destinado a ofertar serviços especializados e continuados a famílias e indivíduos em situações de violação de direitos. Por ser unidade de referência, deve promover a integração de esforços, recursos e meios para enfrentar a dispersão dos serviços e potencializar ações aos usuários. Por meio uma equipe multiprofissional, oferece acompanhamento técnico especializado, de modo a potencializar a capacidade de proteção da família e favorecer a reparação da violência sofrida pela vítima.
As equipes prestam atendimento diretamente na sede do CREAS ou se deslocam aos domicílios e territórios. Os trabalhos devem funcionar em estreita articulação com os demais serviços socioassistenciais, com outras políticas públicas, com Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Conselhos Tutelares e outras Organizações de Defesa de Direitos, no intuito de estruturar uma rede efetiva de proteção social.
A exemplo do Conselho Tutelar, o CREAS também não se destina a verificar a existência de crime. No entanto, a atuação desses entes é importante porque ambos ouvirão a criança de forma mais técnica e adequada, atentando para detalhes que dificilmente a Polícia levaria em consideração e, também, por coletarem informações preciosas que poderão dar suporte para que o Promotor de Justiça faça escolhas mais criteriosas quanto as medidas a serem tomadas, dentre elas a requisição de inquérito policial.