Ferramentas do usuário

Ferramentas do site


cap10:10-4-6-4

4.6.4. O direito à saúde


De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no início da década de 1990, o Brasil ostentava a taxa de mortalidade infantil de 48,3%, índice que alcançava 74,3% na faixa que avaliava a região Nordeste de maneira isolada 1). Já em 2004, segundo o Ministério da Saúde 2), os índices despencaram para 22,5%, tendo sido registrado o menor índice na região Sul – 15,0%, e o maior na região Nordeste, agora com 33,9%.

Mesmo com a significativa redução em relação à década anterior, o Brasil ainda ocupa a 86ª posição da lista de países ordenada por maior índice de mortalidade infantil e tem um dos maiores índices na América do Sul, menor apenas do que os índices de Peru, Bolívia e Guiana 3).

Os países vizinhos Argentina e Uruguai apresentam respectivamente taxas de 13,87% e 11,66%, índices reduzidos se comparados ao do Brasil, mas muito distantes dos invejáveis 2,80% do Japão; 2,75% da Suécia, e 2,30% de Singapura4).

A taxa de mortalidade infantil apresenta estreita ligação com o nível de escolaridade da mãe. A partir de dados coletados entre 1986 e 1995, o IBGE (1996) elaborou o seguinte quadro:

O investimento em saúde é imprescindível para a diminuição da taxa de mortalidade infantil. Sabe-se que a estrutura pública reservada ao atendimento da saúde nem de longe atende todas as necessidades, muito embora os indicadores do Ministério da Saúde apontem acréscimo superior a 110% no orçamento destinado à saúde entre 2000 e 2005 (BRASIL, 2006, p. 32). Na realidade, o orçamento total do Sistema Único de Saúde (SUS) é inferior a R$ 1,00/dia, por habitante, computando-se desde a vacina até o transplante de órgãos.

Um estudo da Organização Mundial da Saúde de 2003 apurou que os recursos públicos anuais per capita, no Brasil, variam entre US$ 125 e US$ 150, o equivalente a R$ 268,75 e R$ 322,50, um dos menores valores do mundo. Argentina e Uruguai ostentam US$ 362,00 e US$ 304,00. Já os países europeus apresentam média de US$ 1,4 mil, despontando o Reino Unido e a Alemanha, com US$ 2.506,00 e US$ 2.081,00, respectivamente.

Em 19 de setembro de 1990, com a promulgação da Lei nº 8.080, foi instituído o Sistema Único de Saúde (SUS), sendo disciplinadas as atribuições que lhe haviam sido conferidas pelo art. 200 da Constituição da República:

”Art. 200. Ao Sistema Único de Saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei:
I - controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos;
II - executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador;
III - ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde;
IV - participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico;
V - incrementar em sua área de atuação o desenvolvimento científico e tecnológico;
VI - fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o controle de seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para consumo humano;
VII - participar do controle e fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos;
VIII - colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho”.

A saúde da criança e do adolescente, assim como os demais direitos fundamentais e sociais que lhe foram conferidos, é incumbência comum da sociedade, da família e do Estado (art. 227, caput, da CF e art. 4º, caput, do ECA).

Entretanto, desse tripé de responsabilidade, o peso maior recai sobre o Estado. Esse rigor diferenciado decorre da Constituição Federal, que, em seu art. 227, §1º, determina-lhe a promoção de programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente de acordo com dois preceitos:

  • 1) a aplicação percentual de recursos públicos destinados à saúde na assistência materno-infantil; e
  • 2) a criação de programas de prevenção e atendimento especializado para as crianças e os adolescentes deficientes.

Realizadas essas ponderações, passa-se a desfragmentar os campos que abarcam o direito da criança e do adolescente à saúde, considerando especialmente as disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente.


O nascituro e a gestante


O Estatuto da Criança e do Adolescente assegura à gestante o atendimento pré-natal (período anterior ao parto – a gestação em si) e perinatal (período imediatamente antes e após o parto) custeados pelo Sistema Único de Saúde (art. 8º). O programa de pré-natal e nascimento ofertado pelo SUS foi regulamentado em 1º de junho de 2000, pelo Portaria nº 570/2000, do Ministério da Saúde. Desde então, ficou estabelecido como direito da gestante e do nascituro o tratamento pré-natal que contemple os seguintes procedimentos e exames:

  • a) a realização de, no mínimo, seis consultas de acompanhamento pré-natal, sendo, preferencialmente, uma, no primeiro trimestre; duas, no segundo; e três, no terceiro trimestre da gestação;
  • b) a realização de uma consulta no puerpério, até 42 (quarenta e dois) dias após o nascimento;
  • c) a realização dos exames laboratoriais de: I) ABO-Rh, na primeira consulta; II) VDRL, um exame na primeira consulta e um na 30ª semana da gestação; III) Urina – rotina, um exame na primeira consulta e um na 30a semana da gestação; IV) Glicemia de jejum, um exame na primeira consulta e um na 30a semana da gestação; e V) HB/Ht, na primeira consulta;
  • d) a oferta de teste anti-HIV, com um exame na primeira consulta, naqueles municípios com população acima de 50 mil habitantes;
  • e) a aplicação de vacina antitetânica, em dose imunizante e de reforço;
  • f) a realização de atividades educativas;
  • g) a classificação de risco gestacional a ser realizada na primeira consulta e nas subsequentes;
  • h) às gestantes classificadas como de risco, o atendimento ou acesso à unidade de referência para atendimento ambulatorial e/ou hospitalar à gestação de alto risco.

Após o parto, a mãe deverá ser atendida preferencialmente pelo mesmo médico que a acompanhou na fase pré-natal (art. 8º, § 2º, do ECA), devendo o poder público propiciar apoio alimentar à gestante e à nutriz que dele necessitem (art. 8º, § 3º, do ECA).

Não obstante serem esses os direitos resguardados nos textos constitucional e estatutário, a realidade brasileira é cruel para com a gestante e com o nascituro. Ainda é elevado o número de mortes relacionadas à gravidez – aqui compreendida como a própria gestação, o aborto, o parto e o puerpério – em regra, evitável.

As causas diretas dessas mortes, distribuídas de acordo com a raça/cor da parturiente, ainda conforme dados do Ministério da Saúde 5), revelam os seguintes índices:

Outro grave problema referente às complicações sociais é a gravidez ainda na adolescência. Em 2003, 22% dos partos ocorridos no Brasil - o que significa, aproximadamente, 668 mil partos – foram de meninas com idade entre 10 e 19 anos; destes, 28 mil foram de meninas na faixa etária de 10 a 14 anos (BRASIL, 2006, p. 19).

No que toca a esta faixa de 10 a 14 anos, deve-se atentar para a existência de crime de estupro de vulnerável, nos termos trazidos pela Lei nº 12.015, que entrou em vigor no dia 10 de agosto de 2009. Em tais casos, a prova da autoria é possibilitada pelo exame de DNA do bebê concebido em razão da conduta delituosa.

A gravidez precoce acarreta problemas tanto para a mãe quanto para o filho. A adolescente ficará mais sujeita a problemas de crescimento e desenvolvimento, emocionais e comportamentais, educacionais e de aprendizado, além de complicações da gravidez e problemas de parto.

De acordo com Bueno (2001, p. 06), a adolescente tem maior morbidade e mortalidade por complicações da gravidez, do parto e do puerpério, sendo a taxa de mortalidade duas vezes maior que entre gestantes adultas. A incidência de recém-nascidos de mães adolescentes com baixo peso é igualmente duas vezes maior que em recém-nascidos de mães adultas, e a taxa de morte neonatal chega ao triplo. É dever de todos, portanto, como uma das medidas tendentes a evitar a gravidez precoce, estimular a educação sexual, seja na escola, seja nos lares.


O aleitamento materno


O Estatuto da Criança e do Adolescente conferiu ao bebê o direito de ser amamentado, razão pela qual determina que o poder público, as instituições e os empregadores deverão proporcionar condições adequadas ao aleitamento materno, inclusive aos filhos de mães presas (art. 9º do ECA).

Apesar de reiterar um importante direito do infante, as disposições do art. 9º não são novidades no ordenamento jurídico pátrio. A Consolidação das Leis Trabalhistas já previa à mãe trabalhadora o intervalo para amamentação, nos moldes do art. 396, abaixo transcrito:

”Art. 396. Para amamentar o próprio filho, até que este complete 6 (seis) meses de idade, a mulher terá direito, durante a jornada de trabalho, a 2 (dois) descansos especiais, de meia hora cada um.
Parágrafo único - Quando o exigir a saúde do filho, o período de 6 (seis) meses poderá ser dilatado, a critério da autoridade competente”.

Da mesma forma, ao filho recém-nascido da mãe prisioneira também era estendida a garantia de ser amamentado, conforme se observa da leitura do inc. L do art. 5º da Constituição Federal: “L - às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação.”

Os benefícios da amamentação são inquestionáveis. O leite materno é o melhor alimento e o mais adequado ao bebê: I) supre todas as suas necessidades nutricionais ao longo dos primeiros seis meses de vida; II) não provoca alergia; III) confere imunidade, anticorpos e fatores contra possíveis infecções; e IV) protege contra o desenvolvimento de doenças agudas e crônicas.

Segundo Machado 6), os bebês que se alimentam no peito têm cinco vezes menos chance de serem hospitalizados por doenças. Dessa forma, o ato de amamentar, além de estreitar os laços entre mãe e filho, favorece seu desenvolvimento sadio e esse tipo de alimentação deve ser-lhe garantido em respeito ao direito fundamental à saúde.

Mesmo tendo sido promovidas campanhas em prol da amamentação desde 1980, dados do Ministério da Saúde em 1999 apontam que apenas 9,7% das crianças com até seis meses de idade (idade recomendável) alimentavam-se exclusivamente de leite materno 7).


Os estabelecimentos médicos de atendimento à parturiente


O Estatuto da Criança e do Adolescente disciplinou alguns procedimentos a serem adotados por hospitais, maternidades e demais estabelecimentos de atenção à saúde da gestante, em seu art. 10:

”Art. 10. Os hospitais e demais estabelecimentos de atenção à saúde de gestantes, públicos e particulares, são obrigados a:
I - manter registro das atividades desenvolvidas, através de prontuários individuais, pelo prazo de dezoito anos;
II - identificar o recém-nascido mediante o registro de sua impressão plantar e digital e da impressão digital da mãe, sem prejuízo de outras formas normatizadas pela autoridade administrativa competente;
III - proceder a exames visando ao diagnóstico e terapêutica de anormalidades no metabolismo do recém-nascido, bem como prestar orientação aos pais;
IV - fornecer declaração de nascimento onde constem necessariamente as intercorrências do parto e do desenvolvimento do neonato;
V - manter alojamento conjunto, possibilitando ao neonato a permanência junto à mãe”.

O registro de atividades e o arquivamento de prontuários pelo período mínimo de 18 (dezoito) anos, conforme determina o inc. I, apresenta duas conveniências: são fontes de pesquisa médica e base de consulta ao histórico de saúde da criança, na eventual necessidade de se apurar doença ou mal.

O descumprimento do estabelecido nesse inc. I importa a conduta tipificada no art. 228 da Lei nº 8.069/1990:

”Art. 228. Deixar o encarregado de serviço ou o dirigente de estabelecimento de atenção à saúde de gestante de manter registro das atividades desenvolvidas, na forma e prazo referidos no art. 10 desta Lei, bem como de fornecer à parturiente ou a seu responsável, por ocasião da alta médica, declaração de nascimento, onde constem as intercorrências do parto e do desenvolvimento do neonato:
Pena - detenção de seis meses a dois anos.
Parágrafo único. Se o crime é culposo:
Pena – detenção, de dois a seis meses, ou multa”.

A identificação do bebê e da mãe, conforme determina o inciso II, evita as trocas acidentais de crianças, e os exames indicados no inc. III – o teste do pezinho – permitem diagnosticar doenças congênitas tratáveis.

A desobediência ao disposto nos incs. II e III resulta em crime tipificado no art. 229 do Estatuto da Criança e do Adolescente:

”Art. 229. Deixar o médico, enfermeiro ou dirigente de estabelecimento de atenção à saúde de gestante de identificar corretamente o neonato e a parturiente, por ocasião do parto, bem como deixar de proceder aos exames referidos no art. 10 desta Lei:
Pena - detenção de seis meses a dois anos.
Parágrafo único. Se o crime é culposo:
Pena - detenção de dois a seis meses, ou multa”.

A declaração formal de nascimento indicada pelo inc. IV é documento indispensável à lavratura do Registro Civil no cartório do domicílio do responsável pelo registro, nos moldes da Lei dos Registros Públicos (Lei nº 6.015/1973), sendo recomendada a impetração do remédio constitucional na modalidade de Habeas Data diante da recusa do Hospital ou estabelecimento médico em fornecê-lo.

Por fim, a manutenção de alojamento conjunto que permita a permanência da mãe e do recém-nascido não é novidade na legislação brasileira. A Resolução nº 11/1983, do antigo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), já previa a obrigatoriedade do alojamento conjunto nas maternidades próprias, conveniadas e contratadas por aquele Instituto em todo o território nacional. Da mesma forma, a Portaria nº 508/1987, do Ministério da Educação, determinava obrigatório o alojamento conjunto de mãe e filho nos hospitais universitários.

Mais tarde, a Lei nº 11.108/05 alterou a Lei nº 8.080/90 incluindo nela o art. 19-J, que assim determina:

”Art. 19-J - Os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde - SUS, da rede própria ou conveniada, ficam obrigados a permitir a presença, junto à parturiente, de 1 (um) acompanhante durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato.
§ 1º O acompanhante de que trata o caput deste artigo será indicado pela parturiente.
§ 2º As ações destinadas a viabilizar o pleno exercício dos direitos de que trata este artigo constarão do regulamento da lei, a ser elaborado pelo órgão competente do Poder Executivo”.

Esse constitui um importante direito da criança e da família, a que o Promotor de Justiça deve estar atento, fiscalizando seu cumprimento.


O teste do pezinho


A Lei nº 8.069/90 obrigou hospitais e estabelecimentos médicos, sejam públicos ou particulares, a procederem a exames “visando ao diagnóstico e terapêutica de anormalidades no metabolismo do recém-nascido”. Esses exames são conhecidos como Teste do Pezinho porque o sangue é coletado do calcanhar do bebê. Algumas gotas do sangue são extraídas e absorvidas em um papel especial para análise de hormônios, substâncias químicas e hemoglobina 8).

O exame permite o diagnóstico de quinze doenças congênitas – fenilcetonúria, hipotireoidismo congênito, anemia falciforme e outras hemoglobinopatias, hiperplasia adrenal congênita, fibrose cística, galactosemia, deficiência de biotinidase, deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase, toxoplasmose congênita, sífilis congênita, citomegalovirose congênita, doença de chagas congênita, rubéola congênita, sida congênita e deficiência de mcad – em boa parte tratáveis, se precocemente diagnosticadas.

Para haver uma prevenção efetiva, é necessário realizar o exame nas primeiras 48 horas de vida do bebê. As coletas deverão ocorrer sempre antes da alta hospitalar, e, uma semana após a primeira coleta, o bebê deverá ser levado à Unidade Básica de Saúde mais próxima para a repetição do exame. Infelizmente, é muito comum não ser realizado o segundo exame, ou por desinformação de profissionais da saúde e dos pais ou simplesmente pelo medo dos pais de que a criança sinta dor, conforme apurou Silva.

”Existem pessoas que acreditam ser o Teste do Pezinho o 'carimbo' do pé do bebê, a impressão plantar e, se o Hospital/Maternidade libera as mães sem realizar a coleta, elas acabam acreditando que seus filhos já fizeram o teste.
Temos conhecimento de casos que se confirmaram positivos já no exame realizado em coleta na alta precoce e que a mãe não procurou a Unidade de Saúde para repetição; assim como casos de mães que não coletaram na alta hospitalar e que só procuraram a Unidade de Saúde para a primeira coleta quando o bebê já constava mais idade, implicando o risco de já haver-se instalado a seqüela, retardo mental ou outra complicação”. 9).

As crianças portadoras das enfermidades diagnosticáveis com o Teste do Pezinho nascem normais e se desenvolvem normalmente até o quarto ou quinto mês. Todavia, a sequela se instala antes mesmo de um mês de vida, e a única forma de prevenção é realizar o exame em tempo hábil, para que o tratamento seja iniciado precocemente 10).

A realização do exame (ao menos do primeiro) é responsabilidade do médico, do enfermeiro e do dirigente do estabelecimento, que responderão penalmente pela sua não-realização - delito do art. 229 da Lei nº 8.069/1990. A fim de que o diagnóstico precoce seja feito a tempo e garanta possibilidade de tratamento, sugere-se que o Promotor se Justiça encaminhe recomendação às unidades de saúde da Comarca instando-os a proceder ao teste no tempo e no modo estabelecidos.


A saúde da criança e do adolescente


Moldado no art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente, o princípio da prioridade absoluta garante primazia à saúde da criança e do adolescente em relação aos demais setores da saúde pública. O parágrafo único do art. 4º da Lei nº 8.069/90 incorporou quatro premissas ao conceito de prioridade:

”a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;
c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;
d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude”.

A criança e o adolescente deverão ser os primeiros a receber socorro médico em situações emergenciais, e o poder público deverá formular programas específicos para o atendimento de sua saúde, destinando recursos privilegiados para tanto.

A proteção da saúde da criança e do adolescente compreende não apenas o atendimento médico propriamente dito, mas toda a sua extensão, abarcando atendimento odontológico, fisioterápico, psicológico, e, ainda, o fornecimento de medicamentos, próteses e outros recursos relativos a tratamento de saúde, situações especificadas a seguir.

Registre-se, mais uma vez, que a prioridade absoluta da criança e do adolescente decorre da Constituição da República, ao contrário da assegurada a outros sujeitos de direitos. Assim, caso ocorra conflito entre sujeitos diferentes, têm preferência aqueles amparados pela norma constitucional.


a) O atendimento médico

Em pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde 11), apurou-se que a média brasileira de consultas anuais per capita é de 2,4, número que sobe para 3,4 se consideradas apenas crianças e adolescentes, e para 4,0 se analisada apenas a população com idade superior a 64 (sessenta e quatro) anos.

De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, está

“assegurado o atendimento integral à saúde da criança e do adolescente, por intermédio do Sistema Único de Saúde, garantido o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde” (artigo 11 do ECA).

Por ser assegurado atendimento integral à saúde da criança e do adolescente, o atendimento médico deve compreender não apenas a saúde física, mas também a mental e emocional, motivo pelo qual abrange o acompanhamento psiquiátrico ou psicológico sempre que necessário. É necessário ressaltar a necessidade premente de se aperfeiçoar o sistema atinente à saúde mental, sobretudo em razão da drogadição que acomete um sem-número de jovens brasileiros.


b) Os medicamentos e os tratamentos de saúde

A Lei nº 11.185/2005 alterou a expressão “é assegurado o atendimento médico”, prevista anteriormente no caput do art. 11 do Estatuto da Criança e do Adolescente, para “é assegurado atendimento integral à saúde”. Assim sendo, tanto a Constituição da República quanto o Estatuto da Criança e do Adolescente garantem o direito à saúde, e não apenas o direito ao atendimento clínico, motivo pelo qual o acesso aos medicamentos também se constitui direito fundamental.

Garantir o acesso a esse aporte é responsabilidade do Estado, conforme se depreende da leitura do § 2º do art. 11 da Lei nº 8.069/90:

“incumbe ao poder público fornecer gratuitamente àqueles que necessitarem de medicamentos, próteses e outros recursos relativos ao tratamento, habilitação ou reabilitação”.
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE. MENOR CARENTE. MEDICAMENTO. FORNECIMENTO. TRANSGRESSÃO A DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL. IMPOSSIBILIDADE DE EXAME NA VIA ESPECIAL. ART. 535 DO CPC. CUSTEIO DE TRATAMENTO MÉDICO. BLOQUEIO DE VALORES EM CONTAS PÚBLICAS. VIABILIDADE. ART. 461, § 5º, DO CPC. 1. Prevaleceu na jurisprudência deste Tribunal o entendimento de que o Ministério Público tem legitimidade ativa ad causam para propor ação civil pública com o objetivo de proteger interesse individual de menor carente, ante o disposto nos arts. 11, 201, V, e 208, VI e VII, da Lei nº 8.069, de 13.07.1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Mudança de entendimento da Turma acerca da matéria (REsp 688.052/RS, Rel. Min. Humberto Martins, DJU de 17.08.06). 2. Descabe recurso especial para apreciar suposta ofensa a artigo da Constituição da República. 3. Não há violação ao art. 535 do CPC quando o tribunal de origem resolve a controvérsia de maneira sólida e fundamentada, apenas não adotando a tese do recorrente. 4. O julgador não precisa responder todas as alegações das partes se já tiver encontrado motivo suficiente para fundamentar a decisão, nem está obrigado a ater-se aos fundamentos por elas indicados. 5. As medidas previstas no § 5º do art. 461 do CPC foram antecedidas da expressão ‘tais como’, o que denota o caráter não exauriente da enumeração. 6. Não obstante o seqüestro de valores seja medida de natureza excepcional, a efetivação da tutela concedida no caso está relacionada à preservação da saúde do indivíduo, devendo ser privilegiada a proteção do bem maior, que é a vida. 7. Recurso especial improvido. REsp nº 841871 / RS. RECURSO ESPECIAL 2006/0078359-2. Relator: Ministro CASTRO MEIRA. Órgão Julgador: SEGUNDA TURMA. Data do Julgamento: 24.10.2006. Data da Publicação/Fonte: DJ 08.11.2006. p. 179.
RECURSO ESPECIAL - FAZENDA PÚBLICA - FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS - CRIANÇA - LEITE ESPECIAL COM PRESCRIÇÃO MÉDICA - BLOQUEIO DE VERBAS PÚBLICAS - CABIMENTO - ART. 461, § 5º DO CPC - PRECEDENTES. 1. Preliminarmente, o recurso especial deve ser conhecido pela alínea “a”, uma vez que a matéria federal restou prequestionada. O mesmo não ocorre com a alínea “c”, pois o recorrente não realizou o necessário cotejo analítico, bem como não apresentou, adequadamente, o dissídio jurisprudencial. 2. A hipótese dos autos cuida da possibilidade de bloqueio de verbas públicas do Estado do Rio Grande do Sul pelo não-cumprimento da obrigação de fornecer medicamentos a criança que necessita de leite especial, por prescrição médica. 3. A negativa de fornecimento de um medicamento de uso imprescindível ou, no caso, de leite especial de que a criança necessita, cuja ausência gera risco à vida ou grave risco à saúde, é ato que, per si, viola a Constituição Federal, pois vida e a saúde são bens jurídicos constitucionalmente tutelados em primeiro plano. 4. A decisão que determina o fornecimento de medicamento não está sujeita ao mérito administrativo, ou seja, conveniência e oportunidade de execução de gastos públicos, mas de verdadeira observância da legalidade. 5. O bloqueio da conta bancária da Fazenda Pública possui características semelhantes ao seqüestro e encontra respaldo no art. 461, § 5º, do CPC, pois trata-se não de norma taxativa, mas exemplificativa, autorizando o juiz, de ofício ou a requerimento da parte, a determinar as medidas assecuratórias para o cumprimento da tutela específica. Precedentes da Primeira Seção. Recurso especial conhecido em parte e improvido. Resp nº 900487 / RS. RECURSO ESPECIAL 2006/0245696-5. Relator: Ministro HUMBERTO MARTINS. Órgão Julgador: SEGUNDA TURMA. Data do Julgamento: 13.02.2007. Data da Publicação/Fonte: DJ 28.02.2007. p. 222


c) A saúde bucal

O atendimento à saúde bucal sempre ficou à margem dos demais procedimentos clínicos, já que, até pouco tempo, o tratamento público dental limitava-se à extração de dentes. Hoje, estima-se que mais de 10 milhões de brasileiros não possuam dentes ou dentaduras, fato que resulta em milhares de óbitos em decorrência do câncer de boca e estômago 12).

O caput do art. 14 do Estatuto da Criança e do Adolescente faz expressa menção à necessidade de se promover programas de atendimento odontológico da população infantojuvenil. Dentre as campanhas, destaca-se a fluoretação na água potável com o objetivo de reduzir a incidência de cárie dentária, apontada pelo Ministério da Saúde 13) como responsável por um impacto na saúde bucal coletiva muito maior do que os serviços assistenciais, não obstante seu baixíssimo custo (custa anual per capita de R$ 0,50 – cinquenta centavos de real).


d) O direito ao acompanhante

O Estatuto da Criança e do Adolescente impôs aos estabelecimentos de atendimento à saúde que proporcionassem condições para a permanência de um dos pais ou do responsável durante a internação da criança e do adolescente (art. 12). Essa prática já era rotineira em hospitais e clínicas privadas e se estendeu a todos os estabelecimentos de atenção à saúde da criança e do adolescente, tanto públicos quanto privados, devido aos visíveis benefícios na rapidez da recuperação do paciente.

Mais tarde, a Lei nº 9.656/1998 (Lei dos Planos de Saúde) determinou em seu art. 12, inc. II, alínea “f “, que, quando o plano de saúde cobrisse internação, deveria abranger despesas de acompanhante no caso de pacientes com menos de 18 (dezoito) anos. A Lei nº 11.108/05 disciplinou que as condições de permanência devem ser minimamente decentes. De acordo com Monteiro Filho, podem ser consideradas condições hospitalares ideais para a permanência do acompanhante:

”1) poltrona reclinável ao lado do leito da criança ou cama própria para acompanhante; 2) todas as refeições diárias; 3) banheiros com banho; 4) armários individuais; 5) avental ou uniforme apropriado com crachá de identificação; 6) reuniões semanais com a equipe de saúde (pediatra, enfermeira, assistente social e psicóloga), para esclarecimentos sobre a rotina do hospital e a enfermidade da criança e do adolescente internado14).

O remédio jurídico para pleitear o direito de acompanhar a criança e o adolescente, durante o período da internação, quando não é permitido pelo estabelecimento médico, é o Mandado de Segurança, sendo legítima sua interposição, pelo Ministério Público, nos moldes do artigo 201, inciso IX, do Estatuto.


e) As doenças crônicas

Algumas doenças necessitam de tratamento contínuo, por toda a vida ou por longo prazo, como é o caso dos doentes renais, transplantados, soropositivos, diagnosticados com câncer e outros. Para essas doenças, é importante que seja fornecido o tratamento sem interrupção. Recomenda-se sempre a criação de programas específicos para seu atendimento, com cadastramento de pacientes, agendamento de avaliações periódicas e compra antecipada dos medicamentos 15).


f) A criança e o adolescente com deficiência

O Estatuto da Criança e do Adolescente garante atendimento especializado a crianças e adolescentes com deficiência (art. 11, §1º, do ECA). A Constituição Federal já havia determinado a criação de programas e atendimento especializado

“para os portadores de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetônicos” (art. 227, §1º, inc. II, da CF).


g) Os Programas de Saúde da Família

Uma pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde do Brasil, com o auxílio da Universidade de Nova Iorque, demonstrou que, entre 1990 e 2002, programas de saúde familiar reduziram mais a mortalidade infantil do que o acesso a hospitais, o aumento do número de médicos e até mesmo a ampliação da água tratada, como demonstra o quadro a seguir 16):

O Estatuto da Criança e do Adolescente conferiu competência ao Sistema Único de Saúde para promover programas de prevenção e educação sanitária voltados para pais, educadores e estudantes (art.14 do ECA). Diante dos números supracitados e considerando que o Promotor de Justiça poderá recomendar a melhoria dos serviços públicos e de relevância pública afetos à criança e ao adolescente (art. 201, § 5º, “c”, do ECA), o Promotor de Justiça deverá, sempre que possível, expedir tais recomendações com vista à criação ou ampliação dos programas voltados à conscientização da família no que se refere aos cuidados de saúde.


O sistema preventivo e as campanhas de vacinação


O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) elaborou um quadro com base numa pesquisa nacional sobre demografia e saúde realizada em 1996, mostrando a proporção de mães com cartão de vacinação e filhos, estes com idade entre 12 e 23 meses, que receberam doses de vacina nas regiões Nordeste e Sudeste, por tipo de vacina, segundo a situação do domicílio.

O estudo constatou também que as chances de a criança ter recebido corretamente todas as vacinas aumenta quanto maior for o nível de escolaridade da mãe.

O Estatuto da Criança e do Adolescente determinou como obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias (art.14, parágrafo único, do ECA), incumbindo sua promoção ao Sistema Único de Saúde (art. 14, caput, do ECA).

Na hipótese de não serem promovidas as campanhas de vacinação ou diante da notícia de inexistência da própria vacina nos postos de saúde, o Promotor de Justiça poderá interpor Ação Civil Pública e Mandado de Segurança, nos moldes do que lhe faculta o art. 201, nos incs. V e IX, respectivamente.


1)
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Evolução e perspectivas da mortalidade infantil no Brasil. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/evolucao_perspectivas_mortalidade/default.shtm>. Acesso em: 25 jul. 2008.
2)
BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Indicadores e dados básicos - Brasil/2006. Disponível em: <http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/idb2006/matriz.htm#mort>. Acesso em: 27 jun. 2008.
3)
CIA – Central Intelligence Agency. The World Factbook 2008. Text Version. Disponível em: <https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/rankorder/ 2091rank.html>. Acesso em: 25 jul. 2008.
4)
CIA, 2008.
5)
BRASIL, 2006, p. 21.
6)
MACHADO, Orandina. O alfabeto da amamentação. Trabalho apresentado como requisito à conclusão do Curso de Manejo Ampliado da Amamentação, oferecido Clínica Interdisciplinar de Apoio à Amamentação, Florianópolis, 2008. Disponível in: 278 - Centro de Apoio Operacional da Infância e Juventude <http://www.aleitamento.com/a_arts..asp?id=3&id_art.=1787&id_subcategoria=4> Acesso em: 25 jul. 2008.
7)
UNICEF. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA. Educação: contexto brasileiro em educação. Disponível em: http://www.unesco.org.br/Brasil/contextonacionalEDU//mostra_padrao. Acesso em: 29 jul. 2008. p. 20.
8)
MARTON DA SILVA, Marly B. G.; LACERDA, Maria Ribeiro. Teste do pezinho: por que coletar na alta hospitalar. Revista eletrônica de enfermagem. v. 5, n. 2. p. 60-64, 2003. Disponível em: <http:/www.fen.ufg.br/revista>. Acesso em: 25 jul. 2008.
9)
MARTON DA SILVA, 2003, p. 62.
10)
MARTON DA SILVA, 2003, p. 63.
11)
BRASIL, 2006, p. 11.
12) , 13)
BRASIL, 2006, p. 17.
14)
MONTEIRO FILHO, Lauro. “Art. 12”. In: CURY, Munir (coord). Estatuto da criança e do adolescente comentado. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 68.
15)
AMIM, Andréa Rodrigues. Doutrina da Proteção Integral e Princípios Orientadores do Direito da Criança e do Adolescente. In: MACIEL, Kátia (coord.). Cursode direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007. p. 41.
16)
BRASIL, 2006.
cap10/10-4-6-4.txt · Última modificação: 2014/10/03 17:58 (edição externa)