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cap10:10-4-9

4.9. O Promotor de Justiça e os procedimentos não jurisdicionais


A esfera extrajudicial de atuação é de extrema importância, uma vez que, por meio dela, o Ministério Público obtém soluções preventivas, rápidas e, muitas vezes, na dimensão consensual, seja a outra parte o Estado ou o particular.

Ciente dessa importância, o Estatuto da Criança e do Adolescente, enumerou como atribuição do Ministério Público o zelo

“[…] pelo efetivo respeito aos direitos e garantias legais assegurados às crianças e adolescentes, promovendo as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis” (art. 201, inc. VIII, do ECA).

Para defender e garantir o interesse da criança e do adolescente, o Promotor de Justiça não está restrito ao universo dos processos judiciais e aos gabinetes dos Juízes, na medida em que a lei lhe autorizou a atividade administrativa para a consecução de seus fins institucionais.

Cabe ao Promotor de Justiça desconstruir essa cultura judicialista, que enlaça a tutela do direito à provocação do Poder Judiciário. Nem sempre a prestação jurisdicional representa a efetiva proteção do direito, especialmente quando sua efetivação ocorre apenas após o trânsito em julgado da decisão final, o que pode demorar décadas.

A atuação extrajudicial é atribuição constitucional e estatutária do Ministério Público, e seu exercício em nada fere o direito constitucional de livre acesso à Justiça previsto pelo art. 5º, inc. XXXV, da Constituição Federal.

Para o bom desempenho das funções indicadas no seu art. 201, inc. VIII, o Estatuto da Criança e do Adolescente conferiu ao Parquet algumas faculdades e prerrogativas. Com a permissão do § 5º do art. 201, o representante do Ministério Público poderá:

  • a) reduzir a termo as declarações do reclamante, instaurando o competente procedimento, sob sua presidência (alínea “a”);
  • b) entender-se diretamente com a pessoa ou autoridade reclamada, em dia, local e horário previamente notificados ou acertados (alínea “b”);
  • c) efetuar recomendações visando à melhoria dos serviços públicos e de relevância pública afetos à criança e ao adolescente, fixando prazo razoável para sua perfeita adequação (alínea “c”).

Sem a previsão dessas três faculdades, o Promotor de Justiça se veria atado ao Judiciário, não conseguindo desenvolver suas funções extrajudiciais e, em consequência, não garantiria a efetiva tutela do direito da criança e do adolescente para além dos pleitos jurisdicionais.

O termo de declaração poderá instruir o procedimento administrativo ou mesmo servir como meio probante em via judicial. Caso seja apurada a inverdade da notícia e a má-fé de seu informante, sua assinatura ao final do termo é também meio de prova para a promoção da ação penal pelos crimes de denunciação caluniosa (art. 339 do CP) e de comunicação falsa de crime ou de contravenção (art. 340 do CP). Da mesma maneira, a expedição de recomendações que visem à melhoria dos serviços afetos à criança e ao adolescente confere ao Promotor de Justiça a liberdade para sanar irregularidades sem necessariamente valer-se da via jurisdicional.

O Estatuto da Criança e do Adolescente concede ao representante do Ministério Público livre acesso a todo local onde se encontre criança ou adolescente (art. 201, § 3º, do ECA), podendo requisitar força policial para tanto (art. 201, inc. XII, do ECA).


Os procedimentos administrativos e as sindicâncias


Notícias de desrespeito aos direitos da criança e do adolescente chegam diariamente ao conhecimento do Promotor de Justiça. Para apurá-las, o legislador criou o procedimento administrativo, instrumento que permite inclusive a produção das provas necessárias ao pleito pela tutela jurisdicional.

Na instrução do procedimento administrativo, a Carta Constitucional permite ao Ministério Público expedir notificações requisitando informações e documentos (art. 129, inc. VI, da CF).

O Estatuto da Criança e do Adolescente vai além, como se observa no art. 201, inc. VI:

”Art. 201. Compete ao Ministério Público: […]
VI - instaurar procedimentos administrativos e, para instruí-los:
a) expedir notificações para colher depoimentos ou esclarecimentos e, em caso de não comparecimento injustificado, requisitar condução coercitiva, inclusive pela polícia civil ou militar;
b) requisitar informações, exames, perícias e documentos de autoridades municipais, estaduais e federais, da administração direta ou indireta, bem como promover inspeções e diligências investigatórias;
c) requisitar informações e documentos a particulares e instituições privadas”.

A solução dos conflitos de interesse, quando se dá no bojo do procedimento administrativo, apresenta três benefícios principais com relação aos processos jurisdicionais: é mais célere, pode decorrer de consenso e, principalmente, não eleva a sobrecarga do Poder Judiciário.


A fiscalização das entidades de atendimento


Por previsão do art. 201, inc. XI, do Estatuto da Criança e do Adolescente, compete ao Ministério Público inspecionar as entidades públicas ou particulares de atendimento e os programas de que trata o próprio Estatuto, adotando as medidas administrativas ou judiciais necessárias à remoção de irregularidades. Considerando o histórico das entidades de atendimento à criança e ao adolescente no Brasil, permeado de irregularidades, abusos e desrespeito, o Promotor de Justiça da Infância e da Juventude deverá fiscalizá-las de modo rigoroso.

Para refletir sobre essa função, lembremo-nos do ocorrido em 1999, no Complexo dos Imigrantes, em São Paulo, onde se deu a maior rebelião da história da FEBEM. Um dos internos foi decapitado pelos colegas. Na época, o então presidente do Sindicato dos Monitores da FEBEM, Antônio Gilberto da Silva, contou em entrevista as condições oferecidas pela instituição aos meninos:

”Fisicamente, aquilo parece Auschwitz. É um campo de concentração. Parece o inferno. É parede desabando, banheiro entupido, menino tomando banho com água suja até a canela. No Complexo Imigrantes, são três chuveiros para cada ala de 400 adolescentes. Quando terminam, estão piores do que quando começaram. Fica resíduo de sabão no corpo, dá micose. As doenças de pele passam de um para o outro, porque a roupa de cama é lavada, no máximo, uma vez por semana. As roupas com que eles dormem são as mesmas com que jogam bola e jantam. […] A comida é um arroz duro, com um feijão duro e um ovo duro e sem sal. […] Não tem atividade nenhuma. Tem algumas horas de escola e futebol, quando tem bola. Mas vigora um esquema de revezamento para uso da quadra. Tirando isso, eles ficam sentados no chão do pátio”1).

Naquela oportunidade, ao ser questionado se a FEBEM era capaz de recuperar aqueles adolescentes, o sindicalista confessou que a grande maioria dos internos, ao fim da medida, estava muito mais violenta do que quando entrou. O que se nota é que, mesmo após as disposições estatutárias, o poder público não foi capaz de modificar a estrutura de atendimento a crianças e adolescentes.

O Promotor de Justiça tem acesso livre a qualquer instituição de atendimento, qualquer local onde se encontre criança ou adolescente, independentemente de dia ou horário. O representante do Parquet poderá requisitar auxílio de força policial (art. 201, inc. XII, do ECA) caso o dirigente ou funcionário da entidade tente impedir o acesso, e este responderá pelo tipo penal indicado no art. 236 do Estatuto.

”Art. 236. Impedir ou embaraçar a ação de autoridade judiciária, membro do Conselho Tutelar ou representante do Ministério Público no exercício de função prevista nesta Lei:
Pena - detenção de seis meses a dois anos”.

Os principais objetivos da fiscalização são:

  • a)Estudar a documentação e os registros da entidade, observando se estão em dia.
  • b) Apurar: 1) se a estrutura da entidade é adequada às suas propostas; 2) se os alimentos oferecidos aos internos e abrigados são suficientes em quantidade e valor nutricional; 3) se os procedimentos de higiene são satisfatórios; e 4) se há profissionais qualificados, em número suficiente para o atendimento de todos os internos e abrigados.
  • c) Analisar se as entidades que desenvolvem programas de abrigo encontram-se em harmonia com os princípios ditados pelo art. 92 do Estatuto da Criança e do Adolescente:
”Art. 92. As entidades que desenvolvam programas de abrigo deverão adotar os seguintes princípios:
I - preservação dos vínculos familiares;
II - integração em família substituta, quando esgotados os recursos de manutenção na família de origem;
III - atendimento personalizado e em pequenos grupos;
IV - desenvolvimento de atividades em regime de co-educação;
V - não desmembramento de grupos de irmãos;
VI - evitar, sempre que possível, a transferência para outras entidades de crianças e adolescentes abrigados;
VII - participação na vida da comunidade local;
VIII - preparação gradativa para o desligamento;
IX - participação de pessoas da comunidade no processo educativo”.
  • d) Analisar se as entidades que desenvolvem programas de internação estão cumprindo as obrigações impostas no art. 94 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
”Art. 94. As entidades que desenvolvem programas de internação têm as seguintes obrigações, entre outras:
I - observar os direitos e garantias de que são titulares os adolescentes;
II - não restringir nenhum direito que não tenha sido objeto de restrição na decisão de internação;
III - oferecer atendimento personalizado, em pequenas unidades e grupos reduzidos;
IV - preservar a identidade e oferecer ambiente de respeito e dignidade ao adolescente;
V - diligenciar no sentido do restabelecimento e da preservação dos vínculos familiares;
VI - comunicar à autoridade judiciária, periodicamente, os casos em que se mostre inviável ou impossível o reatamento dos vínculos familiares;
VII - oferecer instalações físicas em condições adequadas de habitabilidade, higiene, salubridade e segurança e os objetos necessários à higiene pessoal;
VIII - oferecer vestuário e alimentação suficientes e adequados à faixa etária dos adolescentes atendidos;
IX - oferecer cuidados médicos, psicológicos, odontológicos e farmacêuticos;
X - propiciar escolarização e profissionalização;
XI - propiciar atividades culturais, esportivas e de lazer;
XII - propiciar assistência religiosa àqueles que desejarem, de acordo com suas crenças;
XIII - proceder a estudo social e pessoal de cada caso;
XIV - reavaliar periodicamente cada caso, com intervalo máximo de seis meses, dando ciência dos resultados à autoridade competente;
XV - informar, periodicamente, o adolescente internado sobre sua situação processual;
XVI - comunicar às autoridades competentes todos os casos de adolescentes portadores de moléstias infecto-contagiosas;
XVII - fornecer comprovante de depósito dos pertences dos adolescentes;
XVIII - manter programas destinados ao apoio e acompanhamento de egressos;
XIX - providenciar os documentos necessários ao exercício da cidadania àqueles que não os tiverem;
XX - manter arquivo de anotações onde constem data e circunstâncias do atendimento, nome do adolescente, seus pais ou responsável, parentes, endereços, sexo, idade, acompanhamento da sua formação, relação de seus pertences e demais dados que possibilitem sua identificação e a individualização do atendimento.
§1º Aplicam-se, no que couber, as obrigações constantes deste art. às entidades que mantêm programa de abrigo.
§2º No cumprimento das obrigações a que alude este artigo as entidades utilizarão preferencialmente os recursos da comunidade”.

Para formalizar a fiscalização, Bordallo (2007, p. 384) recomenda instaurar procedimento administrativo para cada instituição, em que serão emitidos relatórios de fiscalização. Por meio desta formalização, será possível acompanhar a execução de eventuais recomendações, uma vez que todo o histórico da entidade estará devidamente registrado.

Durante a fiscalização, é importante que o Promotor de Justiça converse privativamente com as crianças e os adolescentes e questione sobre o funcionamento da casa e eventuais irregularidades ocultas.

Se apurar problemas passíveis de correção, o Promotor de Justiça expedirá recomendações à direção da instituição dando prazo para regularizar a situação.

Se os problemas forem demasiadamente graves, não sanáveis ou se as recomendações não forem acatadas no prazo indicado, o representante do Ministério Público deverá iniciar procedimento de apuração de irregularidade em entidade de atendimento, cuja disciplina é objeto dos arts. 191 a 193 do Estatuto.


1)
OYAMA, Thaís. Entrevista: Antonio Gilberto da Silva. Disponível in: <http://veja.abril.com.br/061099/p_011.html> Acesso em: 14 ago. 2008.
cap10/10-4-9.txt · Última modificação: 2014/10/07 15:28 (edição externa)