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cap10:10-9-2-2

9.2.2. Inquérito civil e a dignidade da pessoa humana

Tratamento a ser dispensado às partes envolvidas em inquérito civil – Presunção de inocência – Controle e acompanhamento social dos atos ministeriais

Todo o desenvolvimento do inquérito civil público deve ter por objetivo, unicamente, a busca de subsídios ao Promotor de Justiça para formação de sua opinio actio. Embora não seja condição de procedibilidade para ajuizamento de ações a cargo do Ministério Público, nem para a realização das demais medidas de sua atribuição própria1), tendo natureza unilateral e facultativa, o inquérito civil apresenta-se como valioso instrumento a embasar a atividade ministerial, destinado que é à colheita de provas e elementos de convicção, de modo a autorizar e balizar a tutela dos interesses e direitos a cargo do Parquet. Sua natureza procedimental e inquisitiva não dá ensejo à imposição de qualquer sanção ao seu final, mas, comprovada a ocorrência de fato ilícito e colhidos os elementos probatórios, possibilita o manejo de ação judicial para tanto, caso necessário.

A par disso, muitas vezes, a simples instauração de um procedimento investigatório, de qualquer natureza, e sua tramitação implicam diversas outras que devem ser da ciência do seu presidente e por este aquilatadas. Os temas referentes à defesa do patrimônio público, em geral ligados à atividade política, despertam interesses de diversas entidades e segmentos sociais e, especialmente, dos órgãos da imprensa. Também não se devem esquecer os reflexos que qualquer investigação pode causar no meio social e familiar dos envolvidos. Diante desse cenário, não deve o Promotor de Justiça afastar-se dos ditames constitucionais que tratam da preservação da intimidade e proteção da dignidade da pessoa humana (esta última, fundamento do Estado democrático, conforme inscrito no inciso III do art. 1º da Constituição da República).

Como já dito acima, corolário do princípio informador da administração pública, o inquérito civil também tem por característica a publicidade. Embora ela possa ser restringida (hipóteses de sigilo), a regra é o acesso público aos autos do inquérito civil e ao objeto da investigação. A condução das investigações, porém, deve levar em conta as consequências que pode ter a publicidade dada à instauração e à tramitação do procedimento.

A Constituição da República, em seu art. 5º, inciso LV, consagra o princípio da presunção de inocência. Assim, a instauração de inquérito civil, por maiores que sejam os indícios do cometimento da irregularidade ou do ato de improbidade administrativa, não pode igualar o investigado à condição de condenado (ou ímprobo). Ainda que as provas iniciais sejam contundentes, somente ao final da investigação estará formada a opinião do órgão de execução e, portanto, nesse momento, poderá decidir o caminho a seguir: solução extrajudicial, propositura de ação civil pública ou arquivamento. No entanto, até que seja possível essa tomada de decisão, deve ser garantido ao investigado tratamento que não o coloque em situação mais gravosa que esta própria (a de investigado).

Essa linha de conduta tem grande importância na limitação da publicidade a ser dada às investigações, especialmente quanto a pronunciamentos a respeito delas. Tais pronunciamentos devem, além de ter por norte o não prejuízo à apuração dos fatos, ser limitados pela preservação da privacidade e dignidade do investigado. Não se quer com isso dizer que seja impossível qualquer referência ao fato investigado e ao seu indicado autor, o que contrariaria o princípio da publicidade. No entanto, as informações prestadas deverão ser apenas com o intuito de levar à comunidade o conhecimento dos fatos, evitando-se, sempre, afirmações impensadas, apressadas e/ou levianas, bem como a emissão de juízos de valor sobre fatos ainda carentes de apuração.

Não é à toa que as regulamentações internas do Ministério Público mineiro a respeito da condução do inquérito civil prescrevem determinações no sentido da preservação da imagem dos investigados. Assim, tanto o art. 11 da Resolução Conjunta PGJ CGMP nº 03/07, como o § 3º do art. 42 da Consolidação dos Atos Normativos da Corregedoria-Geral do Ministério Público, prescrevem que o membro do Ministério Público, ao prestar esclarecimentos ou informações acerca de procedimentos a seu cargo, deve abster-se de externar ou antecipar juízos de valor a respeito de apurações ainda não concluídas, evitando emitir conceitos pessoais acerca de fatos e situações pendentes de apreciação judicial ou apurações extrajudiciais, sendo seu dever resguardar o estado de presunção de inocência de pessoas investigadas ou processadas.

No mesmo sentido, assim prescreve a Resolução do CNMP nº 23/2007:

Art. 8º. Em cumprimento ao princípio da publicidade das investigações, o membro do Ministério Público poderá prestar informações, inclusive aos meios de comunicação social, a respeito das providências adotadas para apuração dos fatos em tese ilícitos, abstendo-se, contudo, de externar ou antecipar juízos de valor a respeito de apurações ainda não concluídas.

Além dessas, todas as medidas possíveis também devem ser tomadas, com o fim de resguardar a dignidade do investigado e seu status de inocência, constitucionalmente consagrados.

Quanto à possibilidade de defesa ainda no curso do inquérito civil, é certo que este tem natureza inquisitorial, não estando sujeito ao contraditório. Como já dito, sua função é de fornecer subsídios ao órgão de execução para a formação de sua opinio actio. Não tem o inquérito civil nenhuma função de impor a quem quer que seja sanção ou pena de qualquer natureza, razão pela qual a inexistência de contraditório em sua tramitação não viola a regra insculpida no inciso LV, do art. 5º, da Constituição da República, que assegura o contraditório e a ampla defesa nos processos judiciais e administrativos.

A esse respeito, deve ser destacada a lição de Hugo Nigro Mazzilli:

Somente em sentido lato se pode dizer seja o inquérito civil um processo administrativo; por isso, não está sujeito aos princípios do contraditório e da ampla defesa que iluminam os processos judiciais e os processos administrativos em sentido estrito, nos quais: a) haja litigantes, partes ou acusados; b) se apliquem penas ou sanções; c) se decidam interesses controvertidos. Com efeito, se no inquérito civil não há imputação, pretensão ou exercício de ação, nele também não pode haver exercício de defesa.
Assim, se a Constituição e as leis incumbem ao Ministério Público o dever de promover a ação civil pública em juízo, no zelo de relevantes interesses ligados à defesa do patrimônio público e social, do meio ambiente e do consumidor e outros interesses difusos e coletivos, é natural que lhe caiba, como titular do direito de ação, o poder de investigar, por meio do inquérito civil, se existem os elementos de fato necessários para servir de suporte à pretensão a ser por ele ajuizada. Não sendo um fim em si mesmo, o inquérito civil não é contraditório.2)

Esse entendimento tem sido já adotado em nossos tribunais, tanto para o inquérito civil, como para o inquérito policial.3)

No entanto, tomando-se ainda por base o princípio da dignidade da pessoa humana, essa natureza inquisitorial tem sido mitigada para possibilitar, já no curso das investigações levadas a efeito em procedimentos administrativos como o inquérito civil, oportunidade ao investigado de manifestação, para dar a sua versão dos fatos, possibilitando-lhe, também, a apresentação de defesa, com alguma liberdade para produção de provas (apresentação de documentos, p. ex.). Hoje em dia, a oportunidade de manifestação do investigado no feito, bem como de apresentação de documentos e requerimento de provas, deve ser sempre considerada e ponderada, adotando-a quando viável.

Essa possibilidade, além de atender à ordem constitucional, efetivando a dignidade da pessoa humana, poderá contribuir para a elucidação dos fatos. Pode acontecer, especialmente no âmbito da defesa do patrimônio público, que a investigação (algumas vezes iniciada por representação de adversários políticos) siga um rumo delimitado pelo teor da representação e, então, que um fato tenha realmente a aparência de ilegalidade. Oportunizada a manifestação do investigado, suas explicações poderão alterar esse rumo, indicando ser outra a irregularidade/ilegalidade ou, ainda, a inexistência destas, diante de determinada prova de fato específico. O certo é que a oitiva, com a oportunidade de manifestação do investigado, é providência que se mostra alinhada à ordem constitucional e vem sendo consagrada cada vez mais, tanto pela doutrina como pela jurisprudência.

Mais uma vez, merece destaque a lição de Mazzilli:

O que pode ocorrer, não de forma necessária, mas apenas se convier, é que o presidente do inquérito resolva facultar ao investigado uma bilateralidade consentida em alguns atos determinados. Tomemos estas hipóteses como exemplo: o Ministério Público não está bem instruído se é ou não o caso de propor a ação civil pública, se houve ou não o dano, se a fundamentação do autor do requerimento de instauração do inquérito civil procede ou não. Nesses casos, como em outros, ouvir o requerido e facultar-lhe a produção de provas pode ser extremamente conveniente ou às vezes até mesmo necessário.
[…]
Entretanto, os limites da intervenção do investigado no inquérito civil hão de ser cautelosa e discricionariamente fixados pelo presidente das investigações, sempre tendo-se em conta não se prejudicar a natureza e o escopo do procedimento. Por isso, não tem o investigado o direito de exigir seja ouvida esta ou aquela testemunha, ou seja produzida tal ou qual prova pericial, por exemplo. A conveniência ou o cabimento de cada prova, requerida pelo interessado, serão avaliados discricionariamente pelo presidente do inquérito civil.4)

Além da conveniência do próprio Ministério Público, de que até agora falamos, ainda há o outro lado da questão. Em alguns casos, o próprio investigado, com o interesse de se precaver contra possível ajuizamento de ações que considere injustas, pode comparecer ao inquérito civil assistido por advogado, quando de sua inquirição pelo Promotor de Justiça; pode ainda oferecer documento, peticionar ou sugerir a produção de provas – que serão deferidas ou não conforme o prudente arbítrio do presidente do inquérito. E, muitas vezes, a produção dessas provas, na fase preliminar, poupará muitos custos para a administração da Justiça, evitando o ajuizamento de ações desnecessárias ou infundadas.

Percebida a necessidade de oitiva do investigado durante as investigações em inquérito civil, importa destacar o momento mais adequado para tanto. Deve-se procurar nisso o equilíbrio entre a garantia constitucional e a eficiência e o fim das investigações. Sendo assim, via de regra, a oitiva do investigado deverá ser feita ao final do procedimento, de modo que possibilite que lhe sejam expostos todos os fatos já levantados, para que possa oferecer resposta a eles. Igualmente, a oitiva ao final impedirá que o investigado, tomando conhecimento dos fatos, venha a interferir na colheita futura da prova (que, a rigor, já deve estar encerrada), intimidando testemunhas, produzindo documentos falsos ou mediante qualquer outro artifício do gênero.

A este respeito, deve ser destacada a regra do § 2º do art. 8º da Resolução Conjunta PGJ CGMP nº 03/07, que prescreve que, ao ser notificado, o investigado deverá ser cientificado dessa condição e da faculdade de se fazer acompanhar por advogado e de trazer os subsídios que entender necessários ao esclarecimento dos fatos. Sem dúvida alguma, essa norma extrai sua validade do comando constitucional de garantia da dignidade humana, sem retirar a natureza inquisitorial do inquérito civil público.

Por fim, há de ser dito que, embora deva ser analisada a possibilidade com prudência e diante das vantagens que possa trazer às investigações, a opção do Promotor de Justiça em não ouvir o investigado ou em não lhe oportunizar qualquer meio de defesa não acarreta nulidade do inquérito civil ou de qualquer prova nele produzida, dada a natureza inquisitorial do procedimento. Trata-se, assim, de medida possível, mas não obrigatória. De mais a mais, qualquer prova que possa ser requerida pelo investigado ou que, requerida, seja indeferida pelo Promotor de Justiça, poderá ser produzida em juízo, em momento adequado.

Além disso, todas as demais pessoas que, de qualquer forma, estejam envolvidas na investigação (representante, testemunhas, etc.) devem ser respeitadas na sua dignidade e privacidade, sendo-lhes dispensado tratamento respeitoso. Não se deve expor desnecessariamente aqueles que tenham desenvolvido algum papel nas investigações.

O representante, principalmente quando solicitado, deve ter resguardada a sua identidade. A divulgação do responsável por levar os fatos ao conhecimento do Ministério Público nem sempre auxilia na apuração destes. Isso, ao contrário, em algumas hipóteses, poderá importar prejuízo à elucidação do objeto da investigação (ameaças e retaliações ao representante, p. ex.), até com prejuízo à segurança pessoal do representante. Poderá também inibir a iniciativa daqueles que tenham conhecimento de irregularidades no âmbito da administração pública e queiram solicitar a atuação ministerial. Enfim, poderá prejudicar as investigações de inúmeras formas. Deve, assim, o representante ser tratado como aliado do Ministério Público na busca da verdade, ainda que, ao final, seja possível concluir que ele agira de má-fé ou por interesses escusos, afastado da intenção de proteção ao patrimônio público. Nesta última hipótese, porém, serão aplicáveis as sanções específicas previstas no ordenamento jurídico, inclusive de natureza criminal.

Mesmo no caso de impertinência da representação aviada ao Ministério Público, seja porque os fatos não configuram lesão ao patrimônio público ou ato de improbidade, seja porque são objeto de outra investigação, ou já foram alvo de ação civil pública, ou estão por qualquer outro meio solucionados, os interesses e direitos do representante devem ser resguardados. Em especial, o art. 5º da Resolução CNMP nº 23/07 e o art. 7º da Resolução Conjunta PGJ CGMP nº 03/07 preveem a necessidade de decisão acerca do indeferimento do requerimento de instauração de inquérito civil, com ciência pessoal ao representante (e ao representado), oportunizando-lhe interposição de recurso, a ser apreciado pelo Conselho Superior do Ministério Público (CSMP), caso não haja reconsideração por parte do órgão de execução prolator da decisão. Garante-se assim, integralmente, o direito de acesso do cidadão ao Ministério Público, sendo-lhe assegurado o direito a uma resposta à sua solicitação, ainda que não acolhido seu pleito.

O mesmo há de ser dito em relação às testemunhas, peritos e a todos os que venham a desempenhar alguma função relevante no curso do inquérito civil. Deve ser dispensado a eles tratamento o mais respeitoso e cordial possível, como verdadeira expressão da igualdade garantida pelo texto constitucional.

Também nas diligências externas a serem realizadas, deve-se ter em mente a aplicação do mesmo princípio. Embora diferentemente das questões ambientais, em que elas são uma constante (perícias, avaliações, inspeções, etc.), na defesa do patrimônio público, dependendo do curso e do objeto das investigações, é possível que se mostre necessária a realização de diligências externas, fora dos limites da Promotoria de Justiça. É o caso, por exemplo, de cumprimento de mandados judiciais de busca e apreensão (de documentos, computadores e outros objetos, etc.). Como já exposto no tópico anterior sobre a colheita de provas, muitas vezes a requisição para apresentação de documentos ou informações, com todo o rigor que a lei lhe imprime (por exemplo, quanto aos prazos mínimos para acatamento), não atingirá o fim buscado no inquérito civil, possibilitando a ocultação de provas ou, até mesmo, a confecção de documentos que venham a dar aparência de legalidade a versões ou argumentos defensivos apresentados. Nesses casos, o ideal é que se busque ordem judicial para obtenção do necessário à elucidação dos fatos de forma direta. Evidentemente, a chave para o sucesso de tais iniciativas está em seu sigilo, tanto que assim devem ser tratadas, na medida do possível, também no âmbito do Judiciário. No desenvolvimento de tais atividades, munido do respectivo mandado, o Promotor de Justiça deve, sempre que possível, acompanhar o desenvolvimento da diligência, que, não raras vezes, há de ser cumprida no interior de órgãos públicos ou empresas. A presença do Promotor de Justiça servirá para dar segurança ao Oficial de Justiça encarregado do cumprimento do mandado, evitando tentativas de intimidação por parte de terceiros, até mesmo de outras autoridades, o que poderia frustrar os objetivos da diligência. De outro lado, o Promotor de Justiça deverá atuar na coordenação da atividade, tendo por finalidade coibir abusos, apresentando-se como espécie de interlocutor para a solução de eventuais conflitos que possam surgir, solucionando-os sempre com atenção à melhor técnica jurídico-processual. Estando à frente da diligência, também deverá o Promotor de Justiça aquilatar o melhor momento e forma de repassar informações à imprensa, limitando-se a esclarecimentos que não comprometam o curso das investigações. Em toda diligência, ainda, é necessário evitar atitudes que caracterizem excesso de exposição, tanto do Promotor de Justiça, quanto das demais pessoas envolvidas na investigação (em especial, o representante e o investigado). Tais atitudes pouco ou nada contribuem para a conclusão das investigações, e podem acarretar prejuízos pessoais injustificáveis.

Nunca é demais ressaltar que, como já referido, o fim último do inquérito civil sempre deve ser, única e exclusivamente, propiciar ao Promotor de Justiça a formação de sua convicção diante de fato oferecido a seu conhecimento, atingindo assim o desiderato constitucional estampado no art. 129, inciso III, da Carta Magna. Para isso, deve o órgão de execução servir-se de todos os meios legalmente permitidos que estejam ao seu alcance. O desenvolvimento das atribuições segundo uma linha de respeito e urbanidade em nada compromete a operosidade e não constitui omissão ou leniência; ao contrário, além de obediência aos princípios e fundamentos da Constituição da República, expressa o cumprimento a deveres impostos pelos incisos VI e IX do art. 43 da Lei Complementar nº 34/94 (Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais). A busca da preservação do patrimônio público, em todas as suas vertentes, como missão constitucional, deve pautar-se invariavelmente pelo respeito aos direitos e garantias também constitucionalmente consagrados, sem espaço para abusos ou vaidades de cunho pessoal.


1)
Art. 1º, parágrafo único, da Resolução Conjunta PGJ CGMP nº 03, de 14 de dezembro de 2007.
2)
O inquérito civil: investigações do Ministério Público, compromissos de ajustamento e audiências públicas. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 191-192.
3)
STJ, REsp. 476.660, 2ª T, j. 20/05/2003; STJ, REsp. 644.944, 2ª T, J. 17/02/2005; STF, HC 82.354, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 10.8.04, DJ de 24/9/04; STF ADI 1.285-MC, Rel. Min. Moreira Alves, j. 25/10/95, DJ de 23/3/01.
4)
Obra citada, p. 193-194.
cap10/10-9-2-2.txt · Última modificação: 2014/08/11 14:17 (edição externa)