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cap2:2-1-6

1.6. A multifuncionalidade dos direitos e das garantias constitucionais fundamentais e novas técnicas de atuação do Ministério Público


Os direitos e as garantias constitucionais fundamentais compõem o núcleo de uma Constituição democrática e pluralista e possuem tanto dimensão subjetiva, a qual se liga às pessoas individuais ou coletivas titulares dos direitos, quanto objetiva, constituindo, nesse caso, parâmetro básico para a interpretação e a concretização da própria ordem jurídica e da fixação dos parâmetros e dos valores do próprio Estado Democrático de Direito1).

Sobre isso, escreveu Konrad Hesse que as circunstâncias referentes à singularidade, à estrutura e à função dos direitos fundamentais não só garantem direitos subjetivos dos indivíduos como também revelam princípios objetivos básicos para o ordenamento jurídico constitucional e para o Estado Democrático de Direito. Essas circunstâncias dos direitos fundamentais revelam, portanto, os fundamentos do Estado Constitucional, por meio dos referidos direitos subjetivos e do respectivo ordenamento jurídico objetivamente considerado. O duplo caráter dos direitos fundamentais, o subjetivo e o objetivo, demonstram que os diferentes níveis de significação, respectivamente, condicionam-se, apoiam-se e complementam-se, de forma que os direitos fundamentais atuam legitimando, criando e mantendo o consenso. Eles garantem a liberdade individual, limitam o poder estatal e são imprescindíveis para os processos democráticos do Estado de Direito. Em síntese, os direitos fundamentais influem sobre todo o ordenamento jurídico em seu conjunto, satisfazendo uma parte decisiva da função de integração, organização e direção jurídica da própria Constituição como Lei Fundamental2).

Em outra oportunidade, escreveu Hesse:

“Nos direitos fundamentais da Lei Fundamental unem-se, distintamente acentuadas e, muitas vezes, em passagens correntes, várias camadas de significado. Por outro lado, eles são ‘direitos subjetivos’, direitos do particular, e precisamente, não só nos direitos do homem e do cidadão no sentido restrito (por exemplo, arts. 3º, 4º, 5º, 8º e 9º da Lei Fundamental), mas também lá onde eles, simultaneamente, garantem um instituto jurídico ou a liberdade de seu âmbito de vida (por exemplo, arts. 6º, alínea 1, 14, alínea 1, e 5º, alínea 3, da Lei Fundamental). Por outro, eles são ‘elementos fundamentais para a ordem objetiva’ da coletividade. Isso é reconhecido para garantias, que não contêm, em primeiro lugar, direitos individuais, ou, que em absoluto, garantem direitos individuais, não obstante estão, porém, incorporados no catálogo de direitos fundamentais da Constituição (por exemplo, art. 7º, alínea 1, alínea 3, frase 1 e 2, alínea 5º, da Lei Fundamental). Vale também para aqueles direitos fundamentais que são organizados, em primeiro lugar, como direitos subjetivos”3).

Entre as principais diretrizes principiológicas e interpretativas, relativas aos direitos e garantias constitucionais fundamentais, decorrentes da dupla conjugação de caráter subjetivo e objetivo, destacam-se a imprescritibilidade, a aplicabilidade imediata, a imunidade em relação ao poder reformador constituinte derivado, a imunidade em relação ao legislador infraconstitucional, o caráter pétreo desses direitos,4) a interpretação aberta e extensiva, a não taxatividade ou não limitação, a proteção integral, etc.5)

A multifuncionalidade dos direitos e das garantias fundamentais adquire, também nas ações coletivas em geral e, assim, na atuação do Ministério Público, um papel de destaque seja para impor a sua aplicabilidade imediata, seja para garantir a sua interpretação ampliativa, seja para impor a adoção de mecanismos que garantam a tempestividade da tutela coletiva6). Essa multifuncionalidade também impõe ao Ministério Público a adoção de novas técnicas de atuação, principalmente na tutela coletiva, por exemplo, a utilização de projetos sociais como mecanismos de atuação da Instituição visando à transformação social.

Como efeito dessa multifuncionalidade dos direitos e das garantias constitucionais fundamentais, verifica-se, por exemplo, que ação civil pública, na condição de garantia constitucional fundamental, possui aplicabilidade imediata (art. 5º, § 1º, da CF/88), não lhe sendo compatível interpretação restritiva. Está também inserida entre as cláusulas superconstitucionais e, assim, não poderá ser restringida ou eliminada da Constituição (Título II, Capítulo IV, arts. 127, caput, e 129, III, da CF/88). Possui prioridade na tramitação processual em razão da relevância social dos bens e dos valores jurídicos por ela tuteláveis. O seu objeto material, por se tratar de direito fundamental (Título II, Capítulo I, da CF/88), no caso os direitos coletivos em geral, deverá receber interpretação aberta e flexível, o que tem plena incidência sobre a causa de pedir e o pedido nela formulado7).

E mais: a máxima amplitude da tutela jurisdicional coletiva deve ser conferida à ação civil pública e às ações coletivas em geral, com a admissibilidade de formulação de todos os pedidos e causas de pedir, desde que compatíveis com o direito material coletivo a ser discutido, assegurado ou efetivado pela via jurisdicional. A máxima utilidade da tutela jurisdicional coletiva, com a possibilidade da sua transferência in utilibus para o plano individual, também tem incidência na coisa julgada coletiva, favorável à sociedade, formada em decorrência do ajuizamento de uma ação civil pública. Além disso, a imprescritibilidade formal e substancial da ação civil pública é outra consequência da multifuncionalidade dos direitos e das garantias constitucionais fundamentais.

Todas essas diretrizes interpretativas, decorrentes da multifuncionalidade dos direitos e das garantias constitucionais fundamentais, deverão ser respeitadas no plano do estudo, da aplicação e das reformas legislativas, relacionados com a atuação constitucional do Ministério Público na defesa dos direitos fundamentais.


O modelo constitucional sobre normas de direitos e garantias fundamentais adotado pela CF/88 e a necessária abertura do Ministério Público para a sociedade


Em relação aos modelos constitucionais e à sua análise no contexto dos direitos e das normas de direitos fundamentais, tanto em sua dimensão formal quanto material, a doutrina aponta a existência de três modelos8).

O primeiro é o modelo puramente procedimental, no qual Constituição só dispõe sobre normas de organização e de procedimento. A Constituição não chega a excluir, diretamente, conteúdos possíveis ao direito positivo. O que é criado de acordo com os procedimentos e as formas previstas compõe o direito positivo. A influência da Constituição na criação do direito positivo é somente mediata. O legislador tem liberdade para dispor sobre quaisquer espécies de conteúdo de direito positivo. A tal modelo, corresponderia uma teoria dos direitos fundamentais que parte da concepção na qual os direitos fundamentais não têm força vinculante contra o legislador. Na concepção deste modelo, afirma Robert Alexy, é nula a importância material dos direitos fundamentais9).

O segundo, totalmente oposto ao modelo puramente procedimental, é o modelo puramente material. Nesse modelo, a Constituição contém exclusivamente normas materiais, de acordo com as quais, por intermédio de operações metódicas e independentemente de qual seja a sua configuração, torna-se possível obter o conteúdo de cada norma do sistema jurídico. Enquanto no modelo puramente procedimental as questões devem ser solucionadas por intermédio de uma decisão proposta pela disciplina regulatória da Constituição, no modelo puramente material, a obtenção de soluções se dá com o conhecimento do conteúdo da Constituição10).

O terceiro modelo constitucional é o misto, conciliatório ou eclético, no qual há uma junção entre os modelos puramente procedimental e puramente material. Neste modelo misto, há elementos materiais que determinam, em relação aos direitos fundamentais, os objetivos do Estado, bem como elementos procedimentais, cujo núcleo contém normas sobre o procedimento legislativo11). A Lei Fundamental alemã de 1949, a Constituição brasileira de 1988, entre outras, seguem o modelo constitucional misto.

Assinala Robert Alexy que o fato de estarem reciprocamente vinculados em uma Constituição elementos procedimentais e materiais traz consequências para o sistema jurídico, em sua totalidade, pois há conteúdos desse sistema que, do ponto de vista da Constituição, são meramente possíveis, há também alguns conteúdos constitucionalmente necessários e outros, impossíveis. Portanto, no modelo constitucional misto, à fundamental formal, soma-se a fundamentação material. Os direitos fundamentais e as normas de direitos fundamentais seriam materialmente fundamentais tendo em vista que, a partir delas, tomam-se decisões a respeito da estrutura normativa básica do Estado e da Sociedade. Aqueles que conferem pouco conteúdo à Constituição acabam conferindo muito conteúdo ao legislador. As questões referentes à liberdade e à igualdade não teriam incidência parcial, mas em todos os âmbitos do sistema jurídico. Nas diretrizes das teses da fundamentação formal e material se tem dito que as normas de direito fundamental exercem um papel central no sistema jurídico12).

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 segue, como afirmado, o modelo misto, eclético ou conciliatório, mas com algumas peculiaridades importantes. A primeira delas decorre do compromisso constitucional com a transformação da realidade social, manifestado em um conjunto de objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, muito bem delineado em seu art. 3º. A segunda é fruto da inserção, inédita em nossa história, dos direitos ou dos interesses coletivos como direitos fundamentais, que passam a compor o núcleo principal, com eficácia irradiante máxima, do sistema jurídico brasileiro, conforme previsto no Título II, Capítulo I, da CF/8813). Sobressai aqui o papel de destaque conferido ao sistema de tutela coletiva, também integrante do núcleo central da ordem jurídica brasileira e diretamente ligado à transformação da realidade social.

Nesse contexto, é destacado o projeto constitucional conferido ao Ministério Público, um dos principais protagonistas da tutela coletiva do País (arts. 127, caput, e 129, II e III, da CF/88). Na prática, doutrina e jurisprudência reconhecem esse papel de destaque do Ministério Público brasileiro no plano da tutela coletiva. Entretanto, é fundamental que a Instituição avance e aperfeiçoe a sua atuação, com planejamento institucional, unidade de atuação coordenada e sistematizada. É importante, também, uma mudança cultural que fomente, entre membros e servidores, um diálogo aberto em torno das questões institucionais primordiais, especialmente as relativas à proteção e à efetivação dos direitos e das garantias constitucionais fundamentais, individuais e coletivos.

Outro aspecto extremamente relevante refere-se à necessária abertura do Ministério Público para a Sociedade, principalmente para os movimentos sociais que representam as pessoas mais carentes e marginalizadas, até porque o compromisso constitucional com a transformação da realidade social é de todos que integram a República Federativa do Brasil (art. 3º da CF/88): Sociedade Política, Sociedade Civil e Sociedade Econômica. Um excelente exemplo dessa abertura foi a criação recente, no âmbito do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, da Coordenadoria da Inclusão Social, idealizada pelo Procurador de Justiça Fernando Antonio Fagundes Reis e encampada pelo Procurador-Geral de Justiça Alceu José Torres Marques.

Nos últimos cursos dos novos Promotores de Justiça, um dos painéis foi a discussão entre líderes de movimentos sociais, o que serviu para preparar os novos membros da Instituição para esses horizontes complexos que envolvem a defesa da sociedade pelo Ministério Público.

Grandes desafios existem para que o novo Ministério Público brasileiro consiga sedimentar a sua identidade política, jurídica e social. Para que a Instituição caminhe no rumo certo, é fundamental que os seus membros e servidores não se esqueçam de duas questões básicas:

  • a) a função constitucional do Ministério Público deve ser compreendida, explicada e planejada partindo dos direitos e das garantias constitucionais fundamentais, em observância ao modelo constitucional adotado na CF/88 (Título II);
  • b) todo poder emana do povo, que o exerce pelos seus representantes eleitos ou diretamente nos termos da Constituição (parágrafo único do art. 1º da CF/88).

A abertura para a sociedade e, em especial, para os movimentos sociais organizados, é fator de legitimação social da Instituição e, ao mesmo tempo, mecanismo para o exercício direto da soberania popular, como ocorre nas audiências públicas realizadas pelo Ministério Público.

Também a ocupação de espaços sociais vazios, onde não há a atuação de instituições de defesa social, é fundamental para a realização de direitos fundamentais consagrados na CF/88, com destaque, neste aspecto, para a tutela coletiva na área dos direitos das famílias (Cartas das Famílias do Ministério Público do Estado de Minas Gerais), para a tutela do transporte coletivo, etc., conforme tem sinalizado o Ministério Público mineiro.


1)
Como assinalou Antonio E. Perez Luño, os direitos fundamentais, no horizonte do constitucionalismo atual, desempenham dupla função: a) no plano subjetivo, eles seguem atuando como garantias das liberdades individuais, sendo que a esse papel clássico soma-se agora a defesa dos aspectos sociais e coletivos da subjetividade; b) no plano objetivo, eles assumem uma dimensão institucional a partir da qual seus conteúdos devem funcionar visando a consecução dos fins e dos valores proclamados constitucionalmente. (LUÑO, Antonio E. Perez. Los derechos fundamentales. 6. ed. Madrid: Tecnos, 1995. p. 25.).
2)
HESSE, Konrad. Significado de los derechos fundamentales. In: BENDA, Ernst; MAIHOFER, Werner; VOGEL, Hans-Jochen; HESSE, Konrad (Org.). Manual de derecho constitucional. Tradução de Antonio López Pina. 2. ed. Madrid-Barcelona: Marcial Pons, Ediciones Jurídicas y Sociales S.A., 2001. p. 90.
3)
HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Trad. da 20. ed. alemã de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1998. p. 228-229.
4)
MARTINS NETO, João dos Passos. Direitos fundamentais: conceito, função e tipos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 79-96.
5)
Sarlet: “Consoante ficou devidamente comprovado no item anterior, a dupla perspectiva (objetiva e subjetiva) dos direitos fundamentais revela que estes exercem várias e diversificadas funções na ordem jurídica, o que deflui tanto das conseqüências atreladas à faceta jurídico-objetiva, quanto da circunstância de existir um leque de posições jurídico-subjetivas que, em princípio, integram a assim denominada perspectiva subjetiva. Além disso, há que levar em conta, neste contexto, o fato de que o Constituinte de 1988 foi diretamente influenciado, quando da formatação do catálogo dos direitos fundamentais, pelas diferentes teorias formuladas sobre estes, razão pela qual a doutrina sustenta a tese de uma multifuncionalidade dos direitos fundamentais, que de longe não se restringem à clássica função de direitos de defesa contra os poderes públicos […]”. (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 170-171.).
6)
Não obstante as divergências existentes em outros países, a doutrina e a jurisprudência no Brasil caminham no sentido seguro da eficácia vertical e horizontal dos direitos fundamentais, conforme orientação consagrada na Constituição Federal de 1988. Salienta Sarmento: “No direito brasileiro, não há maiores dificuldades processuais para a aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas, diante do exercício, por todos os juízes, da jurisdição constitucional. Não obstante, é importante destacar que, corroborando a tese da vinculação direta dos particulares aos direitos fundamentais, a doutrina e a jurisprudência admitem que entidades privadas figurem no pólo passivo de remédios constitucionais voltados para a tutela desses direitos, como o ‘habeas corpus’, o ‘habeas data’, a ação popular e a ação civil pública”. (SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 376.).
7)
ALMEIDA, Gregório Assagra de. A natureza da ação civil pública como garantia constitucional fundamental: algumas diretrizes interpretativas. In: MILARÉ, Edis. A ação civil pública após 25 anos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 268-270.
8)
Conferir: ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. 1. ed., 3. reimpressão. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2002. p. 503-506.
9) , 10)
ALEXY, 2002, p. 503-504.
11)
ALEXY, 2002, p. 505.
12)
ALEXY, 2002, p. 505-506.
13)
ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito material coletivo: superação da summa diviso direito público e direito privado por uma nova summa divisio constitucionalizada. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 14.
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