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cap2:2-3-1

3.1. Modelo constitucional do Ministério Público


Sem a pretensão de buscar a origem histórica do Ministério Público ou mesmo sua gênese no Direito brasileiro, fato é que a Constituição Federal promulgada em 1988 inaugurou a fase mais moderna e profícua do Ministério Público brasileiro, quer do ponto de vista estrutural, quer sob a ótica funcional, disciplinando a Instituição vocacionada para a tutela dos interesses sociais.

Inspirada por uma Assembleia Nacional Constituinte com ideais progressistas, libertários e humanistas1), mesmo sobre influências contrárias e pressões de alguns segmentos sociais que defendiam interesses menos nobres, eclodiu o Ministério Público brasileiro, delineado na Carta Maior, com autonomia, independência e unidade funcionais, apartado dos Poderes do Estado, voltado à defesa dos interesses maiores da sociedade. Enfim, veio a lume o desenho constitucional de uma instituição que seria reconhecida, em momento posterior, como um dos maiores avanços sociais concebidos pelo Poder Constituinte originário.

A magnitude da tarefa constitucional atribuída ao Ministério Público encontra diretriz no artigo 127 da Constituição Federal, tendo sido concedido à Instituição o caráter permanente e a essencialidade de sua função na defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

A Constituição da República dispôs sobre a normatização fundamental do Ministério Público no título IV, do capítulo IV, que cuida das funções essenciais à Justiça.

Assim, para a salvaguarda dos interesses sociais e individuais mais caros, caberá ao Ministério Público, no desempenho de seu mister, utilizar-se dos instrumentos processuais dispostos pelo legislador, não apenas como mecanismo de atuação da Instituição, mas como garantia conferida à sociedade, com o objetivo de viabilizar ou potencializar a tutela social com que a Instituição se vê compromissada.

Preleciona Emerson Garcia, estribado em Renato Alessi,2) que “[…] toda a função estatal denota o dever de o agente praticar determinados atos, valendo-se dos poderes que a lei lhe confere, visando à consecução do interesse da coletividade”3).

Dessa forma, na defesa da ordem jurídica e do regime democrático, tarefa constitucional compreendida em seu sentido mais amplo, abarcando a noção do próprio Direito, contempla-se, por exemplo, a legitimidade para deflagrar o controle da constitucionalidade das leis (art. 103, I e § 4º, da CF/88).

Extraindo uma interpretação sistemática do artigo 127 da Constituição da República, reproduzida pelo legislador infraconstitucional no artigo 1º da Lei nº 8.625/93, é de todo razoável asseverar que, no desempenho da atribuição constitucional, fica afastada a ideia de que toda e qualquer ordem jurídica merece ser tutelada pelo Ministério Público. Como ensina ainda Emerson Garcia, somente deve ser tutelada a

“[…] parcela que aglutine os interesses tutelados pelas denominadas normas de ordem pública, que abarcam, além dos interesses sociais, os individuais, ainda que disponíveis, que gerem reflexos relevantes e imediatos na própria coletividade (v.g.: as hipóteses contempladas no artigo 82, I e II, do Código de Processo Civil)”4).

Malgrado a história registrar em regimes totalitários a existência de Ministério Público forte, notou-se sua fragilidade quanto a sua independência funcional.

A defesa do regime democrático compreende, pois, que o Ministério Público se apresente como efetivo instrumento de transformação social em ambiente político permeado pela democracia plena, uma vez que fadado a servir à sociedade, e não ao autoritarismo.

O Estado democrático, preleciona Hugo Nigro Mazzilli5), escorado no ensinamento de Ataliba Nogueira, é aquele em que o povo, de acordo com o seu entender livre, toma decisões concretas em matéria política ou, ao menos, decide quais hão de ser as linhas diretivas a que se deve ater a ação dos que são colocados no governo6).

Ensina Hugo Nigro Mazzilli, verbis:

“[…] Ora, para tornar concreto o mandamento constitucional de que o Ministério Público está a serviço da defesa do regime democrático, mister é que tome ele, por exemplo, a iniciativa de propor mandado de injunção, quando a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania, e à cidadania, como a falta de regulamentação da participação popular nas decisões políticas, quer pelo plebiscito, quer pelo referendo, quer pela iniciativa do processo legislativo; necessário é que proponha ações diretas de inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional; preciso é que intervenha na fiscalização de todo o processo eleitoral, bem como nas hipóteses de perda ou suspensão de direitos políticos, e no zelo do livre funcionamento dos partidos políticos”7).

Assim, na dicção do artigo 127 da CF/88 e do artigo 1º, caput, da Lei nº 8.625/93, será legítima a tutela ministerial nas questões que tenham por objeto interesses sociais e individuais indisponíveis, bem como interesses difusos ou coletivamente considerados.

Os interesses sociais transbordam o terreno da individualidade para atingir os interesses maiores da sociedade, podendo versar sobre direito disponível desde que tenham expressão para toda a coletividade. Daí a noção de direito individual homogêneo reconhecidamente existente no ordenamento jurídico pátrio. Nota-se, portanto, que será legítima a tutela de interesses individuais, ainda que disponíveis, desde que a defesa manejada busque proteção coletiva, uma vez que não existe previsão constitucional que permita ao Ministério Público que sua atuação se volte à defesa de direito individual disponível.

Mais uma vez vale o ensinamento de Hugo Nigro Mazzilli:

“[…] o objeto da atenção do Ministério Público resume-se nesta tríade: a) ou zela para que não haja disposição alguma de interesse que a lei considera indisponível; b) ou, nos casos em que a indisponibilidade é apenas relativa, zela para que a disposição daquele interesse seja feita conformemente com as exigências da lei; c) ou zela pela prevalência do bem comum, nos casos em que não haja indisponibilidade do interesse, nem absoluta nem relativa, mas esteja presente o interesse da coletividade como um todo na solução do problema”8).

A Constituição da República, refletindo o modelo federativo que inspirou o Estado Brasileiro, estabeleceu os ramos do Ministério Público sob a forma dicotômica: da União e dos Estados, sem elos funcionais entre ambos, administrativo ou hierárquico.

O Ministério Público da União compreende o Ministério Público Federal, o Militar, o do Trabalho e o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios; afastado, pois, o ramo do Ministério Público Eleitoral, sendo este compreensível na medida do exercício das funções junto à Justiça Eleitoral.

Chefiado o Ministério Público da União pelo Procurador-Geral da República, as demais carreiras que o integram são independentes entre si, tendo cada uma delas organização própria, recaindo a chefia em seus respectivos Procuradores-Gerais, que, por força da Lei Orgânica do Ministério Público da União, e para reverter a omissão constitucional, poderão exercer, exclusivamente, atribuições especialmente delegadas pela Lei Complementar nº 75/939).

No âmbito estadual, cabe ao Procurador-Geral de Justiça exercer a chefia institucional (§§ 3º e 4º do art. 128 da CF/88).

A Lei Complementar nº 75/93 dispôs sobre a organização e atribuições do Ministério Público do Trabalho e do Militar. Cabe ao primeiro a atuação nas causas de competência da Justiça do Trabalho (art. 83, caput), e ao segundo nas causas afetas à competência da Justiça Militar (art. 116, caput). O Ministério Público Federal exercerá as funções nas causas de competência do Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça, Tribunal Regional Federal e Juízos Federais. Contudo, suas relevantíssimas funções não serão aprofundadas no presente trabalho.

Ao Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, não obstante pertencerem à abrangência do Ministério Público da União, caberá o desempenho das atribuições junto ao Tribunal de Justiça e juízes do Distrito Federal.


1)
Sobre o Ministério Público na Constituição Federal de 1988, ver: RIBEIRO, Diaulas Costa. Ministério Público: dimensão constitucional e repercussão no processo penal. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 57-67.
2)
ALESSI, Renato. Sistema Istituzionale di Diritto Amministrativo Italiano. 3. ed. Milão: Guiffrè, 1960. p. 2.
3)
GARCIA, Emerson. Ministério Público: organização, atribuições e regime jurídico. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 48.
4)
GARCIA, 2005, p.48
5)
MAZZILLI, Hugo Nigro. Regime Jurídico do Ministério Público. 4. ed. São Paulo: Saraiva, p. 136.
6)
MAZZILLI, Hugo Nigro. Teoria geral do Estado. 4. ed. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1966, p. 67.
7)
MAZZILLI, 1966, p. 136-137.
8)
MAZZILLI, 1966, p. 139.
9)
Sobre o tema, consultar: arts. 22 e 26, VIII, § 1º, e arts. 32, 45, 83, 87, 116, 120, 149 e 155, todos da Lei Complementar nº 75, de 20 de maio de 1993.
cap2/2-3-1.txt · Última modificação: 2014/12/10 17:22 (edição externa)