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cap8:8-3-18

3.18. Perdimento de bens e alienação antecipada


Durante muitos anos, o operador jurídico brasileiro preocupou-se mais com a prisão dos traficantes de droga que com a possibilidade de fazê-los perder o lucro auferido com a prática criminosa. Tal atitude, certamente, era reflexo da ideia errônea de que o caráter pessoal da prisão, por si só, era elemento dissuasório suficiente para a prática delitiva, o que refletia o ultrapassado pensamento do direito penal clássico. Realmente, para o criminoso solitário, o caráter punitivo da prisão possui um poder intimidador considerável. Acontece que o crime e o criminoso, com o passar dos anos, mudaram. O crime organizado, que já existia de forma embrionária em muitos lugares do mundo, começou a lançar suas raízes para além das fronteiras de seus países e teve na globalização o seu catalisador.

Ninguém discorda de que a globalização trouxe muitos benefícios, que se traduziram numa melhoria da qualidade de vida em escala mundial, mormente no mundo ocidental. O consumismo mundial, alimentado pela filosofia hedonista, fez com que todos os cidadãos do mundo tivessem acesso aos mais variados bens e serviços. As fronteiras mundiais tornaram-se mais flexíveis para atender a esse mercado consumidor. Sobre esta página da história discorre Moisés Naím:

“Há a história que conhecemos. E há também a outra história.
Eis a que conhecemos: a última década do século XX mudou o mundo. Uma erupção súbita e inesperada de novas idéias e novas tecnologias mudou a política e a economia em todo o mundo. Bilhões de vidas se transformaram. O legado da União soviética desacreditou o comunismo e deu à política liberal e ao livre mercado uma popularidade sem precedentes. Como resultado, os anos 90 ficaram para a história como um período em que o poder das idéias tornou-se óbvio para todos.
Aqueles anos também serão lembrados como um período em que o ritmo da mudança tecnológica pegou a todos de surpresa. As novas tecnologias encolheram o mundo, e as distâncias geográficas nunca foram tão insignificantes. Durante aquela década, a única coisa que parecia cair mais que o custo de um transporte marítimo de cargas de Xangai a Los Angeles era o custo de uma ligação telefônica intercontinental. Viagens a lugares que, antes, eram financeiramente proibitivos ou que estavam politicamente fora de alcance tornaram-se, de repente, uma experiência rotineira para milhões de pessoas. As conseqüências políticas foram tão grandes quanto as econômicas. As democracias se multiplicaram, e durante os anos 90 o número de países onde ocorreram eleições atingiu níveis nunca alcançados. O mesmo se deu com as bolsas de valores, o comércio internacional, o fluxo internacional de capitais e o número de filmes, livros, mensagens e ligações telefônicas que atravessaram fronteiras.
Essa é a parte conhecida. Essa é a história da qual todos participamos e que foi objeto de inúmeros livros e ampla cobertura da mídia. Mas uma outra história desenrola-se paralela a essa e, embora seja igualmente crucial, é menos conhecida.
Essa história trata de contrabandos e, de forma mais ampla, de crimes. Nunca os contrabandistas foram tão internacionais, ricos e politicamente influentes como nos anos 90. O crime global não só se expandiu como, graças à sua capacidade de acumular lucros colossais, tornou-se também uma poderosa força política […]”1).

O surgimento da internet e a globalização de seu acesso mudaram a forma de o homem se relacionar socialmente e a forma de se fazerem negócios, sejam eles lícitos ou ilícitos. O procurador de justiça Marco Antônio de Barros discorre sobre tal fenômeno social e financeiro e suas consequências no que tange ao incremento do crime organizado:

“O ciberespaço sem fronteiras, formado pelo conjunto das redes de computador interligados à internet é uma realidade funcional e virtual. Do ponto de vista econômico-financeiro, ao se acessar qualquer computador ligado a esta rede, ou até mesmo o celular, ou outro aparelho que possibilite esta comunicação eletrônica, sem a menor dificuldade é possível abrir contas em bancos, transferir fundos, investir no mercado de capitais e realizar incontável série de outras operações bancárias e financeiras, tudo pelo chamado sistema home banking, e sem a necessidade de se deslocar fisicamente a uma agência dessas instituições.
Diante desse cenário, há quem afirme que a globalização é antes de tudo um fenômeno financeiro, ou a 'financeirização' do capitalismo, que se transformou na peça mais importante do Séc. XX para todos que visaram à obtenção do lucro a qualquer preço. E está em franca expansão o novo locus, no qual se multiplicam as relações jurídicas legais e ilegais, ultrapassando os tradicionais limites das costumeiras transações realizadas no ambiente bancário, inclusive no que tange à constituição de sociedades off shore, bem como em relação ao acesso a cassinos e casas lotéricas. Portanto, esse território transfronteiriço também é propício para fomentar a criminalidade organizada mundialmente.
Resulta a chamada criminalidade impulsionada pelo mundo globalizado em que vivemos, no qual a interdependência generalizada faz com que ações locais e singulares tenham conseqüências gerais, longínguas e inesperadas”2).

A sociedade, em virtude do consumismo exacerbado e da busca desmedida pelo prazer, passou a alimentar o crime organizado global. A respeito desta perda de valores morais, discorre Misha Glenny:

“[…] Os europeus têm à sua escolha uma miríade de bens para facilitar sua vida e preencher seu tempo livre. Apesar da oferta ilimitada de bens de consumo lícitos, uma parcela significativa (de ricos e pobres) buscava satisfazer suas necessidade fora desse mercado. O crime organizado só é um negócio tão compensador nos Bálcãs porque os europeus ocidentais comuns gastam proporções cada vez maiores de seu tempo e de seu dinheiro dormindo com prostitutas, fumando cigarros contrabandeados, enfiando notas de 50 euros no nariz, empregando imigrantes ilegais por salários de subsistência, admirando marfim, sentando em teca ou comprando fígados e rins de gente desesperadamente pobre nos países em desenvolvimento”3).

O crime organizado, por sua vez, passou a recrutar seus filiados em áreas pobres das grandes cidades, onde existe pouca possibilidade de ascensão social, prometendo altos salários e progressão na carreira. A esse respeito esclarece Mário Daniel Montoya:

“A criminalidade organizada envolve funções bem pagas, o sonho do dinheiro fácil e a possibilidade de ter carros e motos de grande cilindrada. Para especialistas em assuntos sociais, trata-se de um dado alarmante, porque fala do fascínio que desperta nos jovens tudo o que está relacionado com o crime organizado.
A miséria é uma terra fértil para que a mencionada manifestação criminosa recrute seus filiados, seja nos bairros pobres de Medellín, seja em Hong Kong e sua catacumbas, onde o indivíduo vive em condições infra-humanas.
Isto também acontece em alguns assentamentos carentes, como as favelas do Rio de Janeiro, onde a autoridade e a legitimidade do Estado são questionadas”4).

O sistema criminoso supracitado fez com que a prisão passasse a ser vista, dentro da organização criminosa, como uma etapa na formação do filiado que possibilita uma ascensão profissional no grupo. A substituição do elemento preso é automática, e este não é abandonado pela organização na prisão, já que esta lhe garante a segurança naquele ambiente, assistência jurídica e até mesmo amparo familiar em troca de seu silêncio.

Diante desta realidade, a identificação dos bens da organização e dos criminosos de uma forma geral passou a ser o principal objetivo a ser buscado na repressão ao crime. É preciso fazer com que o descumprimento da lei não se torne uma atividade rentável. É preciso dizer um basta ao crime profissional.

É importante discutir qual o caminho para se atingir tal desiderato.

É cediço que o ordenamento jurídico brasileiro há muito tempo trata do perdimento de bens. A esse respeito discorre William Terra de Oliveira:

“O perdimento de bens foi tratado ao longo da história pelo legislador brasileiro tanto no âmbito constitucional como na esfera legislativa ordinária. Desde a Constituição do Império, como nas subseqüentes, o perdimento de bens foi abordado. A Constituição Federal anterior (art. 153, § 11, CF/67, com a redação dada pela EC 01/69) proibia o confisco de bens como pena. A Constituição Federal de 1988 abordou o perdimento de bens em alguns momentos no âmbito dos direitos e garantias individuais (art. 5º, XLV e XLVI), e tratou especificamente da questão do perdimento de bens no contexto do narcotráfico no art. 243, parágrafo único, ao estabelecer que: ‘Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins será confiscado e reverterá em benefício de instituições e pessoal especializados no tratamento e recuperação de viciados e no aparelhamento e custeio de atividades de fiscalização, controle, prevenção e repressão do crime de tráfico destas substâncias’.
Historicamente, o perdimento de bens foi, em geral, tratado na legislação penal dentro do próprio Código Penal. A parte Geral do Código Penal anterior à reforma de 1984 previa o perdimento em seu art. 74, II, de forma semelhante ao disposto no Código atual (como um efeito da condenação, acarretando a perda em favor da União dos instrumentos e do produto do crime, ressalvados os direitos de terceiro de boa-fé). Especificamente no âmbito legislativo infraconstitucional a matéria já era tratada no art. 34 da Lei 6.368, de 21 de outubro de 1976, que versava sobre a prevenção e repressão dos crimes relacionados a entorpecentes, e em art. 34 disciplinava o perdimento de bens relacionados ao tráfico, porém, de maneira mais ampla que a Parte Geral do Código Penal então vigente, estendia sua aplicação a qualquer instrumento da infração, fossem ele lícitos ou ilícitos. Essa ampliação do espectro de bens passíveis de perdimento, prevista na lei especial antidrogas, dava destaque aos instrumentos utilizados para a prática do delito bem como aos bens ilícitos que houvessem contribuído de qualquer forma para prática da infração (tais como veículos, embarcações, aeronaves e quaisquer outros meios de transporte, assim como máquinas, utensílios, instrumentos e objetos de qualquer natureza utilizados para a prática do crime de tráfico).
Em 1984, por ocasião da reforma da Parte Geral do Código Penal (Lei 7.209, de 13 de julho de 1984), a perda de bens do particular em favor da União foi disciplinada no art. 91, II, como efeito secundário da condenação, ressalvado o direito de lesado ou do terceiro de boa-fé. Tal dispositivo estabelece duas hipóteses: (a) a alínea a prevê a perda dos instrumentos do crime, que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constituam fato ilícito (hipótese em que a perda decorre automaticamente ante a natureza do bem proibido); (b) a alínea b, estende o confisco sobre o produto do crime ou qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso (caso em que a perda depende de prova da relação de causalidade entre o crime e o bem ou valor, produto do próprio fato criminoso ou auferido com os seus proveitos).
Cabe lembrar que houve no decurso da evolução legislativa da matéria a edição da Lei 8.257, de 26 de novembro de 1991, onde foi estabelecido um sistema especial de perdimento de bens em favor da União. Tal lei tratou da expropriação das glebas nas quais se localizem culturas ilegais de plantas psicotrópicas, e estabeleceu um regime jurídico próprio, ainda em vigor, pelo qual a expropriação se dá sem indenização, de maneira parecida a um confisco de bens, mediante ação própria promovida pela União”5).

Como foi bem ilustrado por William Terra de Oliveira, a Lei nº 6.368/76 representou um considerável avanço na sistemática processual brasileira atinente à perda de bens. No entanto, à época, deu origem a algumas interpretações equivocadas. Nesse diapasão a jurisprudência entendia que o art. 34 da Lei nº 6.368/76 exigia que o meio de transporte utilizado para transportar a droga só poderia ser confiscado para a União se fosse comprovada a destinação especial do bem para o tráfico de drogas; vejam-se algumas decisões:

“Veículo- apreensão- Transporte de entorpecentes- Hipótese em que não ficou demonstrado que o veículo era usado costumeiramente para esse fim-Expressão “utilizados” do art. 34 da Lei antitóxicos que deve ser interpretada restritivamente-Restituição do veículo determinada- Recurso provido para esse fim”6).
“O art. 34 da Lei 6368/76 deu excessiva amplitude ao texto legal- art. 74 do CP ( atual 91) – e exige interpretação restritiva. Para que ocorra o confisco é necessário que fique provado que os veículos eram “especialmente” utilizados para o transporte do tóxico”7).

Felizmente, a Lei nº 11.343/06 acabou com a exigência de que para o confisco do bem fosse comprovada sua destinação especial. Nesse sentido os comentários de Gilberto Thums e Vilmar Pacheco:

“A redação não exige a especial destinação do bem à traficância. Basta que seja um bem utilizado para a prática do crime de tráfico. Diversamente, a antiga lei de Tóxicos (n.º 6.368/76) exigia a destinação especial do bem ao tráfico.
Neste sentido, a jurisprudência vinha se manifestando pela necessidade de comprovar que os objetos apreendidos tivessem sido utilizados exclusivamente para a prática do tráfico. A nova lei muda o cenário quanto ao elemento subjetivo, bastando que o bem seja utilizado para a prática do tráfico, não exigindo mais a especial destinação”8).

A Lei nº 11.343/06 deu mais um passo em direção à melhoria do sistema de perdimento de bens. No entanto poderia ter avançado mais, possibilitando que, assim como nos Estados Unidos, fosse ajuizada uma ação contra o bem de origem suspeita ou com destinação ou emprego no tráfico de drogas. Nesse tipo de ação, o agente passivo é o próprio bem que foi produto ou instrumento do crime de tráfico, bastando comprovar o liame (action in rem). Poder-se-ia perguntar qual a diferença de se mover tal ação contra o “bem” ou contra o “réu”, se aqui no Brasil, ao final do processo, caso ocorra a comprovação de que o bem é proveito ou instrumento do tráfico de drogas, o réu será condenado e o bem, confiscado.

Veja-se então a seguinte situação: uma organização criminosa que trafica drogas coloca seus bens em nome de um de seus integrantes; este é preso e é ajuizada a ação penal contra ele com base na Lei nº 11.343/06. Suponha-se que existam no processo provas cabais de que tais bens sejam produtos e/ou instrumentos do tráfico de drogas e tudo indique que o desfecho da ação penal redundará na condenação do réu e no perdimento dos bens. A organização criminosa sofrerá um grande abalo em seu patrimônio e por isso só lhe restará uma opção: “matar o réu no local onde ele se encontra custodiado”. Após este ser morto, será aplicado ao caso o art. 107, inciso I, do Código Penal (extinção da punibilidade) e o mérito da ação penal não será julgado. Logo, o sequestro de tais bens restará prejudicado, pois não foi possível comprovar que estes foram auferidos com o lucro produzido pelo tráfico ou que o instrumento foi efetivamente empregado no tráfico de drogas. A organização criminosa poderia obter os seus bens dos herdeiros do réu que “de bom grado” os transfeririam para quem lhes fosse “determinado”. Se uma ação fosse ajuizada em face do “bem”, o confisco destes bens ocorreria independente da morte do réu, já que este pode ter o interesse de seus herdeiros representado em tal lide. É claro que surgiriam discussões em torno da aplicabilidade dessa ação em face do dispositivo do art. 5º, inciso LIV, da CF, que assim dispõe: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Ocorre que, com a devida vênia, apesar de o processo estar sendo ajuizado em face do bem, contava com a participação do réu enquanto estava vivo, no que foi substituído por seus herdeiros, o que não viola o dispositivo constitucional. Ademais, esse procedimento encontraria respaldo no art. 5º, inciso XLV, da CF, que assim dispõe:

”nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra ele executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido” (grifo nosso).

Na doutrina existem estudiosos que defendem a possibilidade de se aplicar a action in rem no ordenamento jurídico, desde que editada lei nesse sentido, usando como argumento, entre outros, o dispositivo constitucional insculpido no art. 243 da CF. A esse respeito os ensinamentos de André Prado de Vasconcelos:

“Em verdade, o legislador constitucional autorizou tanto a decretação da perda de bens quanto o perdimento de bens nos incisos XLV e XLVI do art. 5º da CF/88. Autorizou, ainda, a perda de glebas de terra utilizadas para o tráfico ilícito de entorpecentes e o confisco de todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, destinando as primeiras à colonização para fins de reforma agrária e os segundos, para benefício de instituições e pessoal especializados no tratamento e recuperação de viciados e no aparelhamento e custeio de atividades de fiscalização, controle, prevenção e repressão do crime de tráfico dessas substâncias.
É importante esclarecer a perda de bens tal como previsto na atual Constituição tem natureza penal, eis que prevista no art. 43, inciso II, do Código Penal brasileiro, com redação dada pela Lei n. 9.714, de 25 de novembro de 1992. Por tal razão, há de ser fruto de decisão em processo criminal e não pode superar o valor do prejuízo causado ou o proveito obtido pelo criminoso ou por terceiro em razão do crime praticado; ou seja, a autorização constitucional em nada modificou o panorama legislativo que já autorizava o confisco dos instrumentos e produtos do crime, como previsto no art. 91, inciso II, do mesmo Código.
Já o perdimento de bens previsto no inciso XLV do art.5º da Constituição Federal possibilita a ampliação dos casos de desapossamento e expropriação sem qualquer tipo de indenização por parte do Estado, desde que editada lei nesse sentido.
E a tal conclusão chega-se, primeiramente, porque a atual Constituição é bastante sintética ao autorizar o perdimento de bens nos termos da lei. Em outras palavras, caberá ao legislador ordinário tratar das possibilidades de perdimento.
Por outro lado, há autorização expressa de confisco para o caso de bens relacionados ao tráfico ilícito de entorpecentes, como dito.
Ora, se não há vedação, mas, ao contrário, autorização expressa para que lei ordinária trate do assunto e se o próprio texto da Constituição prevê a possibilidade de confisco, não há como não aceitar, no atual momento histórico, a possibilidade de edição de lei que trate de extinção civil de domínio sobre bens cuja utilização em atividade ilícita for demonstrada, criando, por conseqüência, instrumento processual para atingir tal desiderato”9).

Felizmente, as notícias são alvissareiras, já que se encontra na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 5681/2013, o qual disciplina a declaração da perda da propriedade ou da posse adquiridas por atividade ilícita, regulamenta a Ação Civil de Extinção de Domínio para tal fim e dá outra providências. Insta observar que a justificativa apresentada com tal projeto elucida a importância do preechimento dessa lacuna no ordenamento jurídico:

“O Brasil está atrasado, em relação a vários países, na tarefa de dotar a sua legislação de um instrumento eficaz para a recuperação de ativos vinculados à prática de crimes.
Apesar de ter ratificado As Convenções Internacionais de Palermo contra o Crime Organizado, em 2000, e de Mérida contra a Corrupção, em 2003, passou-se mais de uma década sem que nosso país tenha avançado na missão de recuperar bens, direitos e valores frutos de atividades criminosas.
É o que pretende o presente projeto de lei, na esteira dos debates realizados no âmbito da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e Lavagem de Dinheiro (ENCCLA), em cujos trabalhos se inspirou a presente iniciativa.
Como bem sustenta o Procurador da República José Robalinho Cavalcanti, em recente artigo intitulado ‘Recuperação de Ativos Vinculados ao Crime Fora do processo Penal: A ação Civil de Extinção de Domínio’ […] é constitucional, e conveniente e adequado, que seja erigido no ordenamento um instrumento (a extinção de domínio) que permita a recuperação de ativos nos casos em que não se faz possível a ocorrência do processo penal, mas existem suficientes indícios (ou até provas cabais) da origem criminosa dos bens, ou de seu uso em crime, tal como se dá após eventual morte, evasão, fuga, imunidade ou não identificação do autor do delito […]”10).

Outra falha da Lei nº 11.343/06 é o fato de ter possibilitado tão somente a alienação antecipada dos bens ou objetos utilizados pelos agentes na prática do crime (art. 62), ao revés de estender tal hipótese aos bens, direitos ou valores que constituam produto ou proveito do crime (art. 60). Tal assunto será aprofundado nos comentários ao artigo 62 da Lei n.º 11.343/06.

O art. 60 da Lei nº 11343/06 refere-se a bens ou valores que constituam produto ou proveito do crime (por exemplo, os imóveis adquiridos pelo traficante de drogas com o dinheiro auferido na prática criminosa), sobre os quais poderão ser adotadas, no curso do inquérito policial ou da ação penal, a apreensão e outras medidas assecuratórias.

Nota-se que, apesar de o referido dispositivo legal fazer menção à possibilidade de o juiz decretar a medida assecuratória, de ofício ou mediante representação da autoridade policial, sem fazer alusão à prévia oitiva do promotor de justiça nos dois casos, a doutrina pátria tem entendido que tal medida é imprescindível. No primeiro caso (decretação de ofício), não vemos como esta, por exemplo, pode ser decretada pelo juiz à revelia do Ministério Público sem ferir o sistema acusatório. Ademais, como lembram Andrey Borges de Mendonça e Paulo Roberto Galvão de Carvalho, o titular da ação penal é quem tem o interesse em direcionar a coleta das provas; veja-se o comentário:

“O art. 60 prevê, assim, que a autoridade judiciária poderá decretar a apreensão ou o seqüestro dos produtos ou bens que constituam proveito dos crimes tipificados na Lei. A ordem poderá ser dada de ofício, a requerimento do Ministério Público ou diante de representação da autoridade policial. No primeiro caso, apesar do silêncio da Lei, constitui praxe a prévia oitiva do órgão do Ministério Público. Por ser o Parquet o titular da ação penal pública, também tem interesse em dar o direcionamento da coleta de provas e da indisponibilização dos bens. De nada adiantaria o juiz ordenar a apreensão ou o seqüestro de determinados bens se o membro do Ministério Público resolver, por exemplo, não ser cabível o oferecimento de ação penal pelo fato específico que resultou naquele bem.
Pela mesma razão, a decisão do juiz sobre a representação da autoridade policial depende de prévia oitiva do Ministério Público. Veja-se que a Lei acertou ao referir-se a “representação da autoridade de polícia judiciária”, pois não se trata de agente com capacidade postulatória no processo penal brasileiro, não podendo requerer, mas apenas representar pela adoção das medidas”11).

Outra observação importante a ser feita é de que o caput do art. 60 da Lei nº 11.343/06 faz menção à possibilidade de tais medidas assecuratórias serem adotadas em face de bens móveis ou imóveis ou valores que constituam proveito auferido. Nota-se que os §§ 3º e 4º do art. 60 do referido dispositivo legal faz menção à expressão “direitos”. Daí se pergunta se poderiam as medidas assecuratórias recair sobre os “direitos” do investigado/réu. É possível que sim, e esse igualmente é o posicionamento do desembargador Paulo Rangel:

“São medidas assecuratórias de natureza real, pois recaem sobre coisas e não pessoas. A lei se refere a bens móveis ou valores, não mencionando, no caput do art. 60, a expressão “direitos”, como o faz na Lei de lavagem de Capitais.
Não há dúvida de que houve uma falha na técnica legislativa, pois embora não prevista no caput do art. 60, está dito nos §§3º e 4º do mesmo artigo, ou seja, há possibilidade de medida cautelar sobre direitos do acusado, sem que para tanto tenhamos que lançar mão de qualquer interpretação que fira diretos e garantias individuais”12).

Acreditamos que o desembargador Paulo Rangel está correto ao utilizar a interpretação extensiva para solucionar tal questão, já que esta pode ser usada para beneficiar ou prejudicar o réu, tendo-se em vista que tem por escopo apenas buscar o sentido a ser explicitado na norma. Nesse sentido o magistério de Guilherme de Souza Nucci:

“A interpretação extensiva é a ampliação do conteúdo da lei, efetivada pelo aplicador do direito, quando a norma disse menos do que deveria. Tem por fim dar-lhe sentido razoável, conforme os motivos para os quais foi criada. Ex.: quando se cuida das causas de suspeição do juiz ( art. 254, CPP), deve-se incluir também o jurado, que não deixa de ser um magistrado, embora leigo. Onde se menciona no Código de Processo Penal a palavra réu, para o fim de obter liberdade provisória, é natural incluir-se indiciado. Amplia-se o conteúdo do termo para alcançar o autêntico sentido da norma”13).

Insta observar que o § 1º do art. 60 faculta ao acusado, no prazo de 5 (cinco) dias, apresentar ou requerer a produção de provas acerca da origem do produto, bem ou valor objeto da decisão. Tal dispositivo legal gerou muita controvérsia na doutrina; é importante mencionar as diversas interpretações dadas a seu respeito. O desembargador Paulo Rangel se posiciona pela inconstitucionalidade de tal normatização, com os seguintes argumentos:

“O disposto no § 1º acima é manifestamente inconstitucional, por transferir ao acusado ou interessado o ônus que pertence, exclusivamente, ao Ministério Público, qual seja: o de provar a ilicitude dos bens adquiridos com a prática do crime de tráfico de entorpecentes. O MP acusa, mas é o acusado quem tem que provar que o produto dito do crime é ilícito. Nada mais inversor do ônus da prova.
É cediço por todos que o ônus da prova no processo penal é todo do Ministério Público, não sendo lícito que, em pleno Estado Democrático de Direito, o acusado tenha que provar que vive honestamente e que o que possui não é produto de crime. No Estado de exceção, totalitário e limitador dos direitos e garantias individuais e, portanto, no Estado ilegítimo, tal providência poderia ser bem-vinda e aceita. Contudo, no Estado Democrático de Direito, que tem como um de seus fundamentos a cidadania, a dignidade da pessoa, o devido processo legal, e, principalmente, o direito de não produzir prova contra si mesmo, é inadmissível a inversão do ônus da prova”14).

Por sua vez, o promotor de justiça César Dario Mariano da Silva defende a constitucionalidade de tal norma, assim se manifestando:

“Cumprida a medida cautelar, será facultado ao acusado requerer a produção ou apresentar prova da origem lícita do produto, bem ou valor objeto da decisão, no prazo de cinco dias. Provada a origem lícita, o juiz os liberará.
A primeira observação que merece ser feita é que no procedimento cautelar examinado o ônus da prova é invertido. Passa a ser o acusado o responsável por demonstrar que o bem ou valor apreendido tem origem lícita, desincumbindo o Ministério Público de fazer prova deste fato. Bastará que o Órgão Ministerial demonstre apenas indícios da origem espúria do bem ou valor (produto ou proveito do crime). Não se trata de dispositivo inconstitucional, uma vez que a inversão do ônus da prova é apenas no que concerne á apreensão e indisponibilidade, já que para o perdimento (confisco) é exigida certeza da origem criminosa”15).

Em conformidade com César Dario Mariano, estão os comentários, a respeito do § 1º do art. 60 da Lei nº 11.343/06, feitos por Andrey Borges de Mendonça e Paulo Roberto Galvão de Carvalho:

“A ordem judicial encontra fundamento na existência de indícios suficientes, mas estes podem ser infirmados pela apresentação ou requerimento de provas pelo acusado. Não há qualquer violação ao princípio da presunção da inocência nesta medida. Caso o acusado tenha interesse em liberar os bens apreendidos ou seqüestrados durante o curso do processo, deverá comprovar a sua origem lícita, afastando os indícios sobre os quais se embasou a decisão judicial. Porém, caso o acusado não comprove, isto não significará necessariamente a sua perda ao final do processo. Para tanto, continuará sendo ônus do Ministério Público comprovar a origem ilícita dos bens. Caso a instituição não se desincumba deste mister, o magistrado deverá liberar os bens apreendidos ou seqüestrados”16).

Insta observar que o juiz federal Marcello Granado tece importantes considerações sobre a questão:

“Ao apresentar os 'indícios veementes' para a decretação da medida ou, nas palavras de Tornaghi, ‘a suposição vizinha da certeza’, o Ministério Público desincumbiu-se do ônus que é todo seu, o ônus de provar (ainda que por indícios) todos os ‘fatos da acusação’ no que toca a medida restritiva patrimonial.
Assim, exigir que o réu apresente qualquer outro meio de prova, ainda que contra-indícios, acerca da proveniência lícita dos bens não significa inverter o ônus da prova. Nada se está invertendo, mas apenas exigindo, ou, melhor, facultando ao sujeito passivo da medida a apresentação de contra indícios que, se suficientes, afastarão os indícios mostrados pela acusação e a medida restritiva do pleno exercício de propriedade será levantada. Como dito, o debate está aberto”17).

Entendemos que o § 1º do art. 60 da Lei nº 11.343/06, conforme explicitado pelos últimos doutrinadores mencionados, não viola a constituição, pois tal inversão somente se aplica no momento da análise do deferimento da lide cautelar (atinente à medida assecuratória). Como é cediço, as medidas cautelares têm por características:

  • a autonomia – logo, o julgamento da perda do bem demanda análise diferenciada do julgamento do deferimento ou não da cautela;
  • instrumentalidade e por, consequência, o caráter acessório – características que estão ligadas intrinsecamente à autonomia, já que a medida cautelar não tem um fim em si mesma, estando condicionada a sua existência à possibilidade da futura análise de mérito do pedido principal, que é a razão de sua existência;
  • a provisoriedade e, por consequência, revogabilidade – a medida cautelar vige de forma emergencial para garantir que o pedido principal (a perda do bem) poderá ser satisfeito caso o julgamento do mérito seja provido.

Assim, se a emergência cessar, mediante garantias outras que possibilitem tal escopo, a medida poderá ser revogada. Dessa forma, não vemos a existência de nenhuma violação na inversão do ônus da prova da origem lícita do bem que continua a ser do Ministério Público, mas o deferimento da cautelar não pode ter critérios tão rígidos quanto os do julgamento do mérito do pedido principal.

Outro fator que deve ser levado em consideração é que o próprio § 1º do art. 60 da Lei nº 11.343/06 faculta ao acusado que, no prazo de 05 (cinco) dias, apresente ou requeira a produção de provas acerca da origem lícita do produto, bem ou valor objeto da decisão para que o juiz analise se este deve ser liberado ou não (revogabilidade da medida). Acreditamos que não existem palavras inúteis na lei e, portanto, a única explicação plausível para tal diferenciação reside no fato de que os bens móveis têm a sua propriedade transferida pela tradição, enquanto nos bens imóveis a transferência se dá pelo registro do título no ofício imobiliário.

Por isso, quando o Ministério Público requer que, por exemplo, as joias e os objetos caros que foram encontrados dentro de um barraco na favela onde funcionava “em tese” uma boca de fumo sejam sequestrados com fulcro no referido dispositivo legal, é porque presume que, naquelas circunstâncias (indícios veementes), tais bens sejam produtos do crime. A princípio, sem uma análise global dos fatos (que demanda tempo para investigação), o promotor de justiça não terá como, naquele momento, apresentar uma prova inarredável de que aqueles objetos foram roubados e trocados por droga.

Por outro lado, tendo-se em vista que toda medida cautelar é provisória, o investigado poderá comprovar onde comprou tais objetos, apresentando, por exemplo, notas fiscais ou certificados de garantia, o que afastará a necessidade de se manter a medida assecuratória (art. 60, § 2º).

Diversamente, em se tratando de bens imóveis sequestrados, poderá o investigado requerer ao Ministério Público que apresente as provas que possui para afastar o título que lhe transferiu a propriedade. Neste caso a decisão do magistrado só diz respeito à necessidade de se manter a medida provisional ou não e ainda pode ser contestada judicialmente. Neste sentido o magistério do desembargador Paulo Rangel:

“As medidas assecuratórias podem ser adotadas, tanto na fase investigativa como na judicial, pelo juiz de ofício, a requerimento do MP ou mediante representação da autoridade policial. Se adotada a medida e o acusado entender que há violação ao seu direito de propriedade, poderá propor ação de mandado de segurança, a fim de defender seu direito líquido e certo de propriedade (art. 5º, XXII, da CR). Se indeferida a medida, o Ministério Público poderá propor também ação de mandado de segurança para defender o direito líquido e certo à persecução penal a fim de evitar que o crime fique impune”18).

A respeito das peculiaridades do direito brasileiro no que tange a transferência da propriedade, esclarecem os professores Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:

“A tradição é modo derivado de aquisição de propriedade mobiliária, consistindo na entrega de bem móvel pelo transmitente ao adquirente, com a intenção de transferir-lhe a propriedade, em razão de título translativo oriundo de negócio jurídico (art. 1267 do CC). Se, no linguajar coloquial, o termo tradição significa a simples entrega de bem móvel, na acepção jurídica concernente à entrega da coisa o exclusivo objetivo de transmitir a propriedade.
Portanto, no direito brasileiro há uma evidente distinção entre as formas de transmissão da propriedade mobiliária e imobiliária. Para se transferir bens imóveis não é bastante o contrato, pois ele só produz efeitos obrigacionais. Necessário será o registro do título no ofício imobiliário, a fim de que se surja o direto real (art. 1245 do CC)”19).

Outro fato relevante quanto ao dispositivo do § 1º da Lei nº 11.343/06 é a contagem do prazo de 05 (cinco) dias que parece ser da decretação da medida, mas na realidade não o é (até por uma questão de razoabilidade). Neste sentido esclarecem os procuradores da República Andrey Borges de Mendonça e Paulo Roberto Galvão de Carvalho:

“O § 1º do art. 60 afastou-se das disposições do CPP. Enquanto neste o acusado ou indiciado terá os embargos para demonstrar a origem lícita do seu bem (art. 130 do CPP), a nova Lei dispensou tal medida, criando um procedimento próprio regulado no parágrafo único do art. 60, no qual o indiciado ou acusado terá o prazo de cinco dias, após a apreensão, para requerer ou produzir provas da licitude dos bens. Porém, em verdade, este prazo deve começar a contar apenas da efetivação da medida e não, como parece indicar o texto, da decretação. Seria estranho que, antes de efetivar a medida, o juiz intimasse o acusado ou indiciado para se defender, pois existiria grave perigo de ineficácia da medida assecuratória (dilapidando-se os bens, por exemplo)”20).

O dispositivo do art. 60, § 3º, da Lei nº 11.343/06 é motivo de críticas e de elogios por parte da doutrina. O professor Sídio Rosa de Mesquita Júnior tece suas críticas sob os seguintes argumentos:

“O réu foragido não poderá pedir a restituição, porque o pedido só poderá ser conhecido mediante seu comparecimento pessoal. O objetivo, obviamente, é facilitar a prisão, ou seja, essa é um forma disfarçada de se tentar empreender eficácia à prisão provisória decretada, mas não cumprida. Essa é uma possibilidade que poderá, in concreto levar à odiosa fórmula ‘os fins justificam os meios’”21).

Por sua vez, o professor Jorge Vicente Silva elogia a medida e busca justificá-la com os seguintes argumentos:

“No § 3º do art. 60, da nova lei, encontramos novamente uma inovação em termos de processo. Tal qual a lei anterior, ali está previsto que ‘nenhum pedido de restituição será conhecido sem o consentimento pessoal do acusado’.
Isto quer dizer que o autor do requerimento para a restituição de bem ou valor apreendido em medida cautelar assecuratória, somente poderá pleiteá-la mediante comparecimento pessoal no processo. Não basta outorgar para terceira pessoa e até mesmo para advogado, poderes através de instrumentos procuratórios, autorizando buscar em juízo a liberação do patrimônio. Terá que se fazer presente pessoalmente. Assim, além do pedido subscrito por advogado com poderes para atuar em juízo, também é requisito para a admissibilidade do pedido o comparecimento pessoal do autor em juízo. Esta providência pode ser registrada através de ata de audiência ou certidão da escrivania, a qual deve estar devidamente assinada pessoalmente, também pelo requerente.
Cremos tratar-se de exigência elogiável porque tem por finalidade administrar os cuidados e preocupações no momento de liberação de patrimônio constrito, procurando evitar que seja devolvido patrimônio a infrator, e este continue a utilizar dele, ou do produto com ele obtido no caso de alienação, para cometimento de novos crimes.
Ademais, a pessoa que procura ficar à margem da justiça, negando-se a comparecer perante ela, não merece, desta mesma justiça tutelar (sic) para sua pretensão deduzida em juízo”22).

Não obstante o exposto, é assunto pacificado na doutrina que o terceiro de boa-fé não poderá ter a sua pretensão de reaver o bem obstaculizada em virtude do não comparecimento do réu. Neste sentido as esclarecedoras palavras dos procuradores da República Andrey Borges de Mendonça e Paulo Roberto Galvão de Carvalho:

“O que ocorre se a decisão atingir bens de terceiros? Mesmo comprovando a origem lícita de seus bens, ficariam os terceiros à mercê do comparecimento do acusado para obter a restituição?
Parece óbvio que, nesta hipótese, não será necessário o comparecimento pessoal do acusado, até porque os arts. 129 e 130, II, do CPP, aplicáveis por disposição expressa do art. 60, permitem a interposição de embargos de terceiro. A finalidade destes é comprovar o engano da decisão judicial, demonstrando–se que os bens têm origem lícita e o terceiro estava de boa fé. A constrição de bens de terceiros de boa-fé e a sujeição de sua restituição a requisito inteiramente alheio à vontade do terceiro não tem amparo na cláusula do devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF)”23).

Contudo, sem querer discordar da posição supracitada que também comungamos, deve ser feita a análise, no caso concreto, da boa-fé do terceiro. As organizações criminosas que atuam em aglomerados, em regra, não se utilizam de esquemas complexos de lavagem de ativos. O bem simplesmente é colocado em nome de terceiro, mas quem o utiliza é o traficante de drogas, não saindo da fase de colocação (placement). Sérgio Fernando Moro tece considerações sobre as etapas do delito de lavagem de dinheiro:

“Variadas condutas podem amoldar-se ao tipo penal. Da clássica colocação de bens em nome de pessoas interpostas à mais complexa estruturação de transações para evitar uma comunicação obrigatória.
É usual no estudo da lavagem de dinheiro a referência às fases ou às etapas do crime. Seriam elas a colocação (placement), a dissimulação ou circulação (layering) e a integração (integration). Na primeira etapa, o produto do crime é desvinculado de sua origem material; na segunda, o numerário é movimentado por meio de diversas transações de modo a impedir ou dificultar o rastreamento e pela terceira é reintegrado em negócios ou propriedades, com simulação de investimentos lícitos”24).

Daí a importância de investigar a utilização do bem (que se deseja sequestrar) pelo investigado, já que, no caso de este ter utilizado um “laranja” para ocultar o produto auferido com o crime, certamente, este não só não tem acesso ao bem que está em seu nome, como muitas vezes nem sequer sabe de sua existência. Muito comum, também, é a colocação do bem em nome de um parente, o qual, na maioria das vezes, apesar de saber da existência do bem, não o utiliza e sua situação financeira é completamente incompatível com o valor do bem adquirido. Nos casos supramencionados, o promotor de justiça deve denunciar o traficante de drogas não só pelos tipos descritos na Lei nº 11.343/06, mas também pelo crime descrito no art. 1º, § 1º, I, da Lei nº 9.613/98 sem olvidar-se de denunciar o “laranja”. Além da citada denúncia, deve-se fazer o sequestro de tais bens com base na lei de lavagem de dinheiro (Lei nº 9.613/98 com a nova redação da Lei nº 12.683/2012), o que impossibilitará o “laranja” de ajuizar embargos de terceiro, afinal de contas, ele também é réu (a respeito dos exemplos dados, verificar casos similares aos citados que foram objeto de denúncias e pedido de sequestro feitos na 13ª Promotoria de Justiça de Belo Horizonte/MG, que se encontram nos anexos).

Além dos “laranjas”, é comum aparecer nas tipologias de lavagem (conceito utilizado pelo Grupo de Acción Financeira de Sudamérica (GAFISUD) para designar, no contexto do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo, a classificação e a descrição das técnicas utilizadas pelas organizações criminosas para dar uma aparência de legalidade aos fundos de proveniência lícita ou ilícita e transferi-los de um lugar para o outro ou entre pessoas para financiar as suas atividades criminosas) a figura do “testa de ferro”, o qual é definido pelo procurador de justiça Marco Antônio de Barros da seguinte forma:

“Testa-de-ferro, por sua vez, é o indivíduo que se apresenta como sendo responsável por atos ou empreendimentos de outrem, cuja figura pode ser também encontrada em operação de lavagem”25).

O “testa de ferro” difere-se do “laranja” pela sua maior participação na atividade criminosa.

Por fim, ainda no que tange ao terceiro de boa-fé, devemos falar sobre os veículos adquiridos pelos traficantes de droga sob a forma de alienação fiduciária. Tais criminosos valem-se de um instituto cujo objetivo é facilitar as relações comerciais para inviabilizar o perdimento de tal bem. Isto porque, no presente caso, o domínio é resolúvel, possibilitando ao credor, no caso a instituição financeira, pleitear o levantamento do sequestro para poder recuperar a posse direta do bem, com o escopo de vendê-lo e aplicar o preço apurado no pagamento do crédito e das demais despesas, com a entrega ao devedor do saldo apurado, se existir. Nestas situações em que exista “saldo” para ser devolvido ao devedor (o traficante ou o “laranja”), solicita-se ao juízo que, após prévia avaliação do bem, com a apuração do cálculo do saldo a ser devolvido ao devedor, seja autorizada a entrega do veículo à instituição financeira sob a condição de esta depositar o saldo apurado em conta judicial para ser confiscada no caso de condenação (veja-se modelo similar ao exemplo citado de requerimento feito ao juízo da 1ª Vara de Tóxicos de Belo Horizonte/MG, quando ainda em vigor a Lei nº 10.409/2002).

O art. 60, § 4º, da Lei nº 11.343/06 dispensa comentários; serve apenas para lembrar a necessária sintonia que deve existir entre aqueles que investigam (sejam eles da polícia judiciária ou não) e o responsável pelo ajuizamento da ação penal.

O art. 61 da Lei nº 11.343/06 restringe a utilização dos bens descritos no art. 60 da Lei nº 11.343/06 (produtos do crime) às entidades ali relacionadas. Ressalte-se que o art. 62 da Lei nº 11.343/06 (que trata dos bens utilizados na prática do crime) só possibilita a utilização dos bens ali relacionados pela autoridade de polícia judiciária (salvo as armas de fogo); após o ajuizamento da ação penal, é possível sua colocação para uso e custódia da autoridade de polícia judiciária, de órgãos de inteligência ou militares, envolvidos nas ações de prevenção ao uso indevido e operações de repressão à produção não autorizada e ao tráfico de drogas.

Cotejando-se os dois dispositivos legais, é possível concluir que os órgãos ou entidades que atuam na prevenção do uso indevido, na atenção ou na reinserção social de usuários e dependentes de drogas só poderão utilizar os bens que sejam produtos de crime. Assim, o veículo adquirido com os valores auferidos com a venda ilícita de drogas poderá ser usado, por exemplo, por uma das supracitadas entidades, mas o veículo que foi utilizado para transportar a droga somente poderá ser utilizado pelos órgãos disciplinados no art. 62 da Lei nº 11.343/06 após o ajuizamento da ação penal (a exceção é a autoridade de polícia judiciária que, por deter a custódia do bem desde o início da investigação, poderá utilizá-lo). Por fim, os produtos ou proveitos do crime poderão ser utilizados, também, pelos órgãos elencados no art. 62 da Lei nº 11.343/06, já que são órgãos responsáveis pela repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas (depois da atuação das Forças Armadas na pacificação das favelas do Rio de Janeiro não há mais dúvida quanto ao fato de estes militares fazerem parte deste contexto).

Insta observar que não existe restrição quanto ao momento de ser autorizada a utilização dos produtos (ou bens auferidos) do crime de tráfico pelos elencados no art. 61 da Lei nº11343/06. Neste sentido as explicações dos procuradores da República Andrey Borges de Mendonça e Paulo Roberto Galvão de Carvalho:

“Veja-se que a autorização pode ser dada tanto no curso do inquérito policial quanto durante a ação penal, recaindo sempre sobre o juiz competente. Antes de instaurada a ação penal, a fixação do juiz competente dependerá da legislação de organização judiciária local, mas será o mesmo que for competente para o acompanhamento do inquérito policial”26).

Interessante a observação feita pelo desembargador Paulo Rangel quanto ao dispositivo do art. 61, parágrafo único, da Lei nº 11.343/06, que deveria ser seguida por todos os magistrados, razão pela qual convém colacioná-la:

“A autoridade judiciária deverá comunicar aos órgãos de trânsito a expedição de certificado provisório de registro e licenciamento a fim de que o referido veículo fique livre de todo e qualquer multa, encargos e tributos anteriores. Com isso se evitam os problemas que surgiam, anteriormente, com a utilização dos veículos sem que o órgão próprio de trânsito tivesse conhecimento daquela utilização.
A autoridade policial, por exemplo, deverá se certificar de que tais bens estejam, realmente, atendendo aos interesses da administração pública e não aos interresses (sic) pessoais de determinados agentes que usam viaturas para fins pessoais.
O auto de depósito expedido pelo juiz deverá demarcar a utilização do bem evitando sua tredestinação, ou seja, sua destinação desconforme com o plano inicialmente previsto.27).

O art. 62 da Lei nº 11.343/06 relaciona os bens ou objetos utilizados pelos traficantes de droga na prática do crime (instrumentos do crime).

Questão controversa que divide a opinião dos estudiosos diz respeito ao fato de o art. 62, caput, da Lei nº 11.343/06 não fazer distinção quanto à possibilidade de utilização pela autoridade policial dos bens ali elencados, sejam eles lícitos ou ilícitos.O promotor de justiça Willian Terra de Oliveira tece ferrenha crítica a tal situação e conclui pela impossibilidade da utilização dos bens ilícitos. Neste sentido:

“O legislador cometeu uma falha ao não mencionar a proibição da utilização de bens ilícitos ou de uso proibido pela autoridade policial. O texto da lei faz expressa referência aos ‘bens mencionados neste artigo’ (leia-se: ‘os veículos, embarcações, aeronaves e quaisquer outros meios de transporte, os maquinários, utensílios, instrumentos e objetos de qualquer natureza’ conforme o art. 62, caput).
Poderia ocorrer autorização judicial para a utilização de armas proibidas, instrumentos de espionagem de uso restrito das Agências de Inteligência, elementos de manejo perigoso (que comportem radiações ionizantes, ou explosivos, por exemplo), enfim, materiais cujo uso é comumente proibido? Possivelmente não”28).

Já o desembargador Paulo Rangel apresenta opinião diversa, defendendo o uso de tais bens ilícitos pela polícia. Neste sentido:

“A pergunta que pode ser feita é: podem ser objeto de apreensão e, conseqüente, utilização pela polícia as armas proibidas, ou aparelhos de espionagem, bem como outros instrumentos cujo uso é proibido, se houver autorização judicial?
Estamos que sim, pois é exatamente isso que irá distinguir um perfeito combate ao narcotráfico utilizando, contra ele, as mesmas armas que são usadas contra a sociedade organizada. Se o tráfico tem a posse de uma aparelhagem de última geração de escuta telefônica, por exemplo, que deixa a polícia em situação de desvantagem, não há razão para tal aparelho, uma vez apreendido regularmente, não ser usado pela polícia.
A utilização pela polícia de bens apreendidos somente poderá ocorrer com autorização judicial e esta deverá especificar quais são os bens a serem utilizados e a autoridade policial deverá prestar contas, pensamos mensalmente, do trajeto das embarcações, aeronaves, veículos, evitando que haja uso desmesurado”29).

É importante ainda indagar se seria possível a utilização da própria droga. A própria Lei nº 11.343/06 determina a posse da droga como crime diante da inexistência de autorização ou da discordância do ato com a determinação legal ou regulamentar. Assim, é possível autorizar judicialmente o uso da droga, desde que atenda a uma finalidade pública. Tal pedido normalmente é feito pelas polícias para utilizar a droga no adestramento de cães que serão futuramente utilizados para farejar drogas. Neste caso a medida é necessária para dotar tais instituições de meios para combater o tráfico de drogas. A fim de disciplinar essa situação, existe um projeto de lei (PL nº 4450/2012) em tramitação na Câmara dos Deputados de autoria do deputado Jair Bolsonaro, que pretende acrescentar um parágrafo único ao art. 72 da Lei nº 11.343/06 no seguinte teor:

“Parágrafo único. A requerimento de autoridade de polícia judiciária ou policial-militar, o juiz autorizará a cedência de drogas apreendidas para o adestramento de cães em instituições públicas, cabendo ao órgão cessionário proceder à sua destruição, logo que desnecessária ou inútil, com informação para o processo”.

O art. 62, § 4º, da Lei nº 11.343/06 possibilita, após o ajuizamento da ação penal, a alienação dos bens apreendidos, em caráter cautelar, exceto aqueles que a União, por intermédio da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD), indicou para serem colocados sob uso e custódia da autoridade de polícia judiciária, de órgãos de inteligência ou militares envolvidos nas ações de prevenção ao uso indevido de drogas e operações de repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas. É a denominada alienação antecipada.

Insta observar, conforme comentado alhures, que uma das falhas da Lei nº 11.343/06 consiste no fato de ter possibilitado tão somente a alienação antecipada dos bens ou objetos utilizados pelos agentes na prática do crime (art. 62), ao revés de estender tal hipótese aos bens, direitos ou valores que constituam produto ou proveito do crime (art. 60). Essa situação tem feito com que alguns doutrinadores busquem soluções criativas para tal situação; vale a pena trazer a lume os comentários de Andrey Borges de Mendonça e Paulo Roberto Galvão de Carvalho:

“Ao tratar da disciplina dos bens que constituam produto ou proveito auferido pelo agente com a prática dos crimes de drogas, a Lei deixou de prever a possibilidade de alienação cautelar desses bens, fazendo-o apenas para os bens que tenham sido utilizados para a prática dos crimes. Não vemos razoabilidade na distinção feita. É plenamente possível que tenham sido apreendidos bens que sejam produto ou proveito do crime e que não interessem de forma alguma às atividades policiais ou de entidades relacionadas. Nesses casos, não há razão para manter os bens em custódia, apreendidos ou sequestrados, sem utilização, ao aguardo da sentença condenatória que irá decretar o seu perdimento em favor da União. A depreciação econômica do bem atingiria tanto o interesse do Estado, que receberia bem de valor menor após a condenação, quanto o interesse do acusado-proprietário, que também teria prejuízo em caso de absolvição. Conforme as precisas lições de Samuel Miranda Arruda (ob. cit., p.173): ‘Dificilmente se poderá cogitar de uma hipótese em que a manutenção do bem em custódia, inutilizado, seja mais vantajosa do que a alienação. Temos que o risco de desvalorização é quase presumido, sendo do interesse do próprio investigado que a alienação se dê com o fim de preservar o valor real do patrimônio acautelado’. Assim entendemos plenamente cabível a aplicação do regime de alienação cautelar, previsto no art. 62 para os instrumentos do crime, aos produtos e proveitos que não se destinem à utilização por entidades relacionadas às atividades previstas na Lei, incluindo as policias. Como as normas que tratam da alienação cautelar são normas processuais, relacionadas ao poder de cautela do magistrado, é plenamente possível a utilização da analogia, como expressamente permite o art. 3º do CPP. Relembre-se, por fim, que o CNJ expediu a Recomendação 30, em 10 de fevereiro de 2010, orientando os magistrados a realizar a alienação antecipada de bens apreendidos em qualquer feito criminal, com força no poder geral de cautela. Por fim, a nova redação dada ao art. 4º, § 1º, da Lei de lavagem pela Lei 12.683/2012 e a Lei 12.694/2012, ao incluir o art. 144-A no CPP, previram expressamente a alienação antecipada, conforme será tratado em tópico próprio”30).

Não obstante o exposto, esta abordagem ousa discordar do posicionamento supracitado e não crê na possibilidade de se buscar a solução para tal problema (alienação antecipada dos bens que sejam produto ou proveito do crime) por meio da aplicação da analogia ou por força do disposto na Lei nº 12.683/2012 (nova lei de lavagem) e no art. 144-A do CPP, conforme a redação da Lei nº 12.694/2012, pelos argumentos a seguir. A assertiva de que a depreciação econômica é prejudicial ao Estado é válida, mas, no tocante ao acusado-proprietário, não é crível que a alienação antecipada sanará seu prejuízo nem que seja de seu interesse. Caso este venha a ser absolvido, até que o Estado tenha feito o leilão e possibilitado o depósito do valor para posterior restituição (valor normalmente objeto de questionamento) ao absolvido, este já terá sofrido, no mínimo, prejuízos decorrentes da privação do bem que, de qualquer forma, ensejarão a ação de indenização em face do Estado. A respeito desta situação específica, discorre Sídio Rosa de Mesquita Júnior:

“O locupletamento é defeso na CF. Nem mesmo os entes públicos poderão enriquecer ilicitamente. Por isso, somente os bens atingidos pela sentença condenatória não resultarão em indenização. Ainda que os bens sejam devolvidos em ótimo estado, o poder público deverá indenizar a pessoa atingida pela privação do direito cautelar e que depois venha a ser absolvida pelo tribunal”31).

Quanto à utilização da analogia (com base no art. 3º do CPP) para se efetivar a alienação cautelar dos produtos e proveitos auferidos com o tráfico de drogas, o entendimento aqui postulado é de que se trata de uma solução inaplicável no presente caso. É cediço que a analogia processual pode ser usada contra ou a favor do réu. Neste sentido os ensinamentos de Guilherme de Souza Nucci:

“No processo penal, a analogia pode ser usada contra ou a favor do réu, pois não se trata de norma penal incriminadora, protegida pelo princípio da reserva legal, que exige nítida definição do tipo em prévia lei”32).

No entanto, os dispositivos processuais que tratam de perdimento de bens, para esta abordagem, são normas processuais heterotópicas, ou seja, não obstante suas regras serem previstas em diplomas processuais, possuem conteúdo material. O art. 5º, inciso XLVI, alínea “b”, da CF dispõe:

“a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:
[…]
(b) perda de bens”.

Em se tratando de uma norma nitidamente de caráter penal, a perda de bens não admite a aplicação da analogia em prejuízo do réu.

Quanto à possibilidade de se aplicar o art. 4º, § 1º, da lei de lavagem, entende-se aqui que tal dispositivo só se aplica aos casos previstos naquela norma; do mesmo modo, por uma questão de coerência com o entendimento deste trabalho, explicitado no módulo II quanto ao rito a ser adotado na Lei nº 11.343/06, entende-se que o art. 144-A do CPP não se aplica à lei de drogas, que é especial.

Por fim, o artigo 63, caput, da Lei n.º 11.343/06 assim dispõe:

“Art. 63. Ao proferir a sentença de mérito, o juiz decidirá sobre o perdimento do produto, bem ou valor apreendido, seqüestrado ou declarado indisponível”.

Vê-se que o caput do art. 63 da Lei nº 11.343/06 refere-se à decisão de 1º grau e em seu § 2º estabelece que cabe à Senad a alienação dos bens apreendidos e não leiloados em caráter cautelar, bastando que tenha sido decretado seu perdimento em favor da União.

Nota-se, ainda, que não precisa ocorrer trânsito em julgado para ser encetada tal alienação que possui caráter cautelar, tanto que o § 4º do aludido artigo 63 trata da destinação dos bens que tenham sido perdidos em favor da União com caráter definitivo, já que menciona neste parágrafo a expressão “transitada em julgado a sentença”.

Nesse diapasão, tanto para os bens perdidos em caráter provisório em razão de sentença condenatória (§ 2º do art. 63 da Lei nº 11.343/06) quanto para os bens declarados perdidos em favor da União em caráter definitivo (§ 4º, do art. 63 da Lei nº 11.343/06), cabe à Senad autorizar o uso deles, já que poderão aliená-los, seja de forma cautelar seja definitiva.

Por isso a doutrina dos processualistas Andrey Borges de Mendonça e Paulo Roberto Galvão de Carvalho conclui:

“O procedimento, até a condenação, ocorre intra processo, não havendo qualquer tipo de ingerência de outros órgãos governamentais na destinação preliminar do bem. Por isso, para decidir basta que o juiz tenha ouvido o Ministério Público. E quanto à Senad, não é necessário que se manifeste – é suficiente que seja cientificada de decisão judicial, apenas para o fim de manter controle estatístico (ver previsão do art. 17)”33).

A contrario sensu do exposto pelos ilustres processualistas, após a sentença condenatória, deverá sempre ser ouvida a Senad.

Em resumo, antes da condenação, o magistrado apenas informa à Senad a autorização para o uso dos instrumentos do crime. No entanto, após tal decisão, os pedidos de utilização dos bens deverão ser concedidos depois de ouvida a SENAD.


1)
NAÍM, Moisés. Ilícito: o ataque da pirataria, da lavagem de dinheiro e do tráfico à economia global. Tradução Sérgio Lopes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. p. 17-18.
2)
BARROS, Marco Antônio de. Lavagem de capitais e obrigações civis correlatas: com comentários, artigo por artigo, à Lei 9.613/1998 de acordo com a Lei 12.683, de 9 de julho de 2012. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 35-36.
3)
GLENNY, Misha. McMáfia: crime sem fronteiras. Tradução Lúcia Boldrini. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 63.
4)
MONTOYA, Mário Daniel. Máfia e crime organizado: aspectos legais, autoria mediata, responsabilidade penal das estruturas organizadas de poder, atividades criminosas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 72.
5)
GOMES, Luiz Flávio (Coord.). Lei de drogas comentada artigo por artigo: Lei 11.343, de 23.08.2006. 5. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 256-257.
6)
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça de São Paulo. ACA nº 126.697-3. Relator: Des. Álvaro Cury. RJTJSP 138/451.
7)
RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. AC nº 8664. Relator: Des. Barros Franco.
8)
THUMS, Gilberto; PACHECO, Vilmar. Nova lei de drogas: crimes, investigação e processo. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2007. p. 307.
9)
VASCONCELOS, André Prado de. Extinção civil do domínio: perdimento de bens . Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 23-24.
10)
Justificação ao projeto de Lei nº 5681/2013.
11)
MENDONÇA, Andrey Borges de; CARVALHO, Paulo Roberto Galvão de. Lei de drogas: Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006 comentada artigo por artigo. 3. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012. p. 321.
12)
RANGEL, Paulo; BACILA, Carlos Roberto. Comentários penais e processuais penais à lei de drogas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 250-251.
13)
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal comentado. 8. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 68-69.
14) , 18)
RANGEL; BACILA, 2007, p. 251.
15)
SILVA, César Dario Mariano da. Lei de drogas comentada. São Paulo: Atlas, 2011. p. 165.
16) , 20)
MENDONÇA; CARVALHO, 2012, p. 322.
17)
GRANADO, Marcelo (Coord.). A nova lei antidrogas: teoria, crítica e Comentários à Lei nº 11343/06. Rio de Janeiro: Impetus, 2006. p. 216.
19)
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: reais. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 362-363.
21)
MESQUITA JÚNIOR, Sídio Rosa de. Comentários à lei antidrogas: Lei nº 11.343, de 23.8.2006. São Paulo: Atlas, 2007. p. 165.
22)
SILVA, Jorge Vicente. Comentários à nova lei antidrogas: manual prático. Curitiba: Juruá, 2007. p. 512-513.
23)
MENDONÇA; CARVALHO, 2012, p. 323.
24)
MORO, Sérgio Fernando. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 32.
25)
BARROS, 2012. p. 59.
26) , 33)
MENDONÇA; CARVALHO, 2012, p. 326.
27)
RANGEL; BACILA, 2007, p. 253.
28)
GOMES, 2013, p. 279.
29)
RANGEL; BACILA, 2007, p. 256.
30)
MENDONÇA; CARVALHO, 2012, p. 327-328.
31)
MESQUITA JÚNIOR, 2007, p. 166-167.
32)
NUCCI, 2008, p. 69.
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