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cap8:8-3-5

3.5. Gravação da imagem e do som ambiental no processo de tráfico de drogas


O Estado tem lançado mão de todos os meios para combater o crime, e uma das últimas novidades é a instalação de câmeras pelos logradouros públicos, o que tem sido alvo de muita polêmica. A gravação ambiental, que tanto pode ser do som como da imagem, ou ambas conjuntamente, deve ser diferenciada quanto a seu aspecto legal em duas situações diversas: a gravação de um local público ou aberto ao público e de um local privado. A esse respeito, os ensinamentos do professor Adalberto José de Camargo Aranha:

“Quando a gravação do som ou imagem que é feita em local público ou aberto ao público, não há qualquer divergência possível: trata-se de prova lícita, pois o local é de exposição livre e pública quanto ao som ou a imagem de uma pessoa ou de um acontecimento, sendo que a primeira sabia que estava em um logradouro aberto e de acesso livre, ao menos para certo número de pessoas, ainda que restrito. Aliás, é técnica conhecida usada por portarias de edifícios, por meios de transportes, bancos, supermercados, lojas, etc. e cuja validade nunca se pôs em dúvida”1).

Conforme se deflui, nas filmagens realizadas em locais públicos, não há que se falar em violação dos preceitos constitucionais da intimidade, da vida privada e da imagem.

Como é cediço, são consideradas provas ilícitas as obtidas

  • mediante tortura ou em decorrência de qualquer prática degradante, como chantagem, constrangimento físico ou moral, ameaças, etc. (art. 5º, III);
  • com violação da intimidade ou da privacidade das pessoas (art. 5º, X);
  • com desrespeito à inviolabilidade do domicílio (art. 5º, XI);
  • com desrespeito à inviolabilidade do sigilo da correspondência, das comunicações telegráficas e das comunicações telefônicas (art. 5º, XII); e
  • com violação do direito de propriedade (art. 5º, XXII).

O presente caso não se enquadra em nenhuma das situações supracitadas, visto que a filmagem foi efetuada em via pública, razão pela qual não se pode, nem mesmo, alegar a denominada violação a intimidade ou privacidade, isto porque a filmagem da prática de um crime em via pública independe de prévia autorização judicial. Na realidade as polícias têm-se utilizado de meios tecnológicos para fornecer ao julgador as provas das práticas delitivas, no que hoje se denomina de atividades de inteligência. A esse respeito, escreveu o Doutor e Mestre em Direito pela UFMG, procurador de justiça de Minas Gerais e Professor de direito processual penal Denilson Feitoza Pacheco:

“Quanto à validade das provas obtidas na busca (operação de inteligência), todas as provas obtidas pelas atividades de inteligência em geral e pelas operações de inteligência podem, em princípio, ser utilizadas na investigação criminal, desde que sujeitas às limitações de conteúdo e de forma estabelecidas pela lei processual penal.
Essa possibilidade de utilização decorre do princípio da liberdade probatória do processo penal. Tal aplicabilidade ocorre mais intensamente na fase de investigação criminal, tendo em vista sua finalidade de servir de base à propositura de ações penais e às medidas cautelares pessoais (prisões provisórias, busca apreensão pessoal) e reais (seqüestro, arresto, busca-apreensão de coisas etc.). Assim, uma filmagem com som, feita em público, em que o indiciado declara que irá fugir, inclusive com detalhamento da fuga, servirá para que um juiz criminal decrete sua prisão temporária ou preventiva, conforme o caso, não importando se a filmagem foi feita por uma operação de inteligência ou por uma investigação criminal […]”2).

A respeito da desnecessidade de prévia autorização judicial para gravação de imagens em vias públicas, esclarece o Doutor em direito processual pela Universidad Complutense de Madrid e promotor de justiça do Estado de São Paulo Marcelo Batlouni Mendroni:

Ocorrendo o fato em qualquer área pública ou de acesso ao público, a gravação é permissível, pois a própria natureza do local elimina a sua privacidade. Se por outro lado a situação acontecer em local privado em que o agente captador das imagens não estiver autorização a participar ou ingressar e cuja presença for de desconhecimento das personagens, deverá revestir-se da competente autorização do poder Judiciário, nos exatos termos da Lei n.º 10271/201, pois neste caso invade a privacidade protegida pela Constituição Federal”3).

Insta observar que, por mais de uma vez, o egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais decidiu pela validade, como prova, de filmagens feitas em via pública. Nesse sentido:

“TÓXICOS - TRÁFICO - AGENTES FLAGRADOS POR CÂMERA NO CENTRO DA CIDADE EXERCENDO O COMÉRCIO ILÍCITO - DELITO CARACTERIZADO - PROVA - DEPOIMENTO POLICIAL - VALIDADE - CAUSA DE AUMENTO DO ART.18, III, DA LEI Nº 6.368/76 - REVOGADO PELA NOVA LEI DE TÓXICOS - Inconcussa a prova do art.12, da Lei nº 6.368/76, se os agentes são presos após serem flagrados por câmera instalada pela polícia, em conhecido ponto de tráfico de drogas, no meio da madrugada, guardando ‘crack’ e trazendo consigo mais de duzentos reais em espécie cuja procedência não souberam explicar. - Os depoimentos dos policiais que atuaram na diligência merecem a mesma credibilidade dos testemunhos em geral. Somente podem ser desprezados se demonstrado, de modo concreto, que agiram sob suspeição. Enquanto isso não ocorra, se não defendem interesse próprio ou escuso, mas, ao contrário, agem em defesa da sociedade, a sua palavra serve como prova suficiente para informar o convencimento do julgador. - A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado. - Recursos conhecidos e parcialmente providos os da defesa”4).
“TRÁFICO. REEXAME DE PROVAS. DEPOIMENTOS DE POLICIAIS. VALIDADE. CIRCUNSTÂNCIAS DO FLAGRANTE. FATOS QUE COMPROVAM A TIPICIDADE. AUTORIA E MATERIALIDADE. REGIME PRISIONAL INTEGRALMENTE FECHADO. RECURSO DESPROVIDO. - Os depoimentos prestados por policiais merecem crédito, como os de qualquer outra testemunha, principalmente quando descrevem complexa operação que resultou na prisão dos réus, inexistindo provas capazes de infirmar suas conclusões.
O policial Sérgio Luiz Alves da Cunha, às fl. 171/172, descreve com detalhes como se deu a operação policial que originou o flagrante, afirmando que somente presenciou o réu vendendo drogas pela filmagem feita na ocasião, relatando, ainda, que o apelante confessou a mercancia ilícita praticada.
Assim, o que se vê é que a prova coligida em juízo está a confirmar o teor da prova indiciária, notadamente as declarações prestadas pelos usuários abordados na operação, que declararam, às fl. 50/51, 52/53, 54/55, terem comprado drogas da pessoa do réu.
Ademais, a complexidade da operação montada, atestada pelos que dela participaram, não deixa dúvidas a respeito dos fatos apurados, que não podem ser desconsiderados e que não poderiam ser fraudados, merecendo a consideração e apreciação de suas conclusões, ao contrário do que alega a combativa defesa“5).

Ainda quanto ao assunto, trazemos à baila as seguintes jurisprudências publicadas por outros tribunais pátrios:

“153074637 – APELAÇÃO CRIMINAL – ARTIGO 12 CAPUT DA LEI 6.368/76 – PRELIMINARES – FILMAGEM DE LOCAL PÚBLICO – Inexistência de violação ao artigo 5º, X, da Constituição Federal. Prova lícita. Flagrante preparado. Inocorrência. Preliminares rejeitadas. Autoria e materialidade plenamente comprovadas. Investigação policial. Ponto de venda de drogas. Depoimentos coerentes e descomprometidos dos policiais civis. Valor probante. Acusada presa em flagrante em posse da droga apreendida. Tráfico plenamente configurado. Condenação e apenamento mantidos. Recurso desprovido”6).
“65025982 – TÓXICOS – AUTORIA E CO-AUTORIA – PROVA – FILMAGEM NÃO AUTORIZADA – EXPOSIÇÃO DA INTIMIDADE – USO RESTRITO – ASSOCIAÇÃO EVENTUAL – É válida a prova obtida por meio de filmagem não autorizada, se externa, de uso restrito no processo, e se fundada em suspeita de crime, sem ferir a garantia de inviolabilidade da intimidade. Mostra-se inseguro a indicar a co-autoria de crime de tráfico ilícito de entorpecentes o contexto probatório fundado em laudo de filmagem inconclusivo na identificação dos agentes, tanto quanto na prática do ilícito, por isso que temerário imputá-la sem mais elementos de prova”7).

Situação diversa se verifica quando a captação e a gravação de um som ou de uma imagem são feitas em local privado. A esse respeito, valemo-nos, mais uma vez, dos ensinamentos do professor Adalberto Aranha:

“Situação diferente ocorre quando a captação e a gravação de um som ou de uma imagem é feita em local provado, como, a título de exemplo, uma residência. Nessa hipótese, a prova será ilícita por que violado o princípio constitucional da defesa da intimidade, resguardado expressamente pelo art. 5°, X, da Constituição Federal.
‘Como sabemos, o direito à intimidade pode ser traduzido como aquele que nos protege em nossa vida e refúgio privados, sem ser arrastado para o cenário dos acontecimentos mundanos. É a nossa privacidade protegida, sem que sejamos levados à ribalta da vida. ‘A esfera secreta da vida do indivíduo, na qual este tem o poder legal de evitar os demais’, no dizer de René Ariel Dotti.
Costa Júnior oferece a seguinte definição de direito à intimidade: ‘é o direito do indivíduo, querendo, de ser deixado em paz, sem o importuno da curiosidade ou indiscrição’. E, ao depois, arremata com sabedoria: ‘O direito à intimidade, pelo contrário, é o direito de que dispõe o indivíduo de não ser arrastado para a ribalta contra a vontade. De subtrair-se à publicidade e de permanecer recolhido em sua intimidade. Direito ao recato, portanto, não é direito de ser recatado, mas o direito de manter afastados dessa esfera de reserva olhos e ouvidos indiscretos, bem como o direito de impedir a divulgação de palavras, escritos e atos realizados nessa esfera de intimidade’ (Agressões à intimidade, p. 12).
Ora, quem capta som ou imagem de um local privado, sem o consentimento de quem deseja estar só, viola gritantemente a intimidade, resguardada por preceito constitucional, com o que a sua exibição por meio de gravação em processo, de qualquer natureza, ainda que administrativo, será induvidosamente uma prova ilícita.
Há, todavia, uma exceção legal prevista no art. 2° da Lei n.9.034/95, que cuida dos crimes praticados por organizações criminosas. O art. 2°, IV, da citada lei, com a redação que lhe foi dada pela Lei n.10.217/2001, preceitua: ‘Em qualquer fase de persecução criminal serão permitidos, sem prejuízo dos já previstos em lei, os seguintes procedimentos de investigação e formação de provas: IV- a captação e a interceptação ambiental de sinais eletromagnéticos, óticos ou acústicos, e o seu registro e análise, mediante autorização judicial’. O que se exige é apenas a prévia autorização judicial. Ressalta-se que referido dispositivo legal, a toda evidência, diz respeito aos ambientes privados, pois nos locais públicos a gravação é livre, sem a necessidade de qualquer autorização8).

Nesse diapasão, as gravações de imagens e som ambiental são válidas como prova, não podendo ser olvidadas no curso de uma ação penal.


1)
ARANHA, Adaberto José Q. T. de Camargo. Da prova no processo penal. 7.ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 293.
2)
PACHECO, Denilson Feitosa. Direito Processual Penal: Teoria, Crítica e Práxis. 3. ed. Belo Horizonte: Impetus, 2005. p. 974, grifo nosso.
3)
MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime Organizado: Aspectos Gerais e Mecanismos Legais. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002. p. 96-97, grifo nosso.
4)
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Apelação Criminal nº 1.0024.05.844310-2/001 (1). Relator: Des. Gudesteu Biber. Belo Horizonte, 5 de dezembro de 2006. Minas Gerais, 10 jan. 2007, grifo nosso.
5)
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Apelação Criminal nº 1.0024.03.089930-6/001(1). Relator: Des. Herculano Rodrigues. Belo Horizonte, 13 de outubro de 2005. Minas Gerais, 4 nov. 2005, grifo nosso.
6)
PARANÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Apr. 0308701-0 – 3ª Câmara Criminal. Relatora: Des(a). Sonia Regina de Castro. Curitiba, 9 de fevereiro de 2006, grifo nosso.
7)
RONDÔNIA. Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia. Apelação Criminal nº 100.002.2004.005684-0. Relator: Des. Eliseu Fernandes. Porto Velho, 12 de abril de 2006, grifo nosso.
8)
ARANHA, 2006, p. 293-294.
cap8/8-3-5.txt · Última modificação: 2015/01/13 10:59 (edição externa)