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cap9:9-2-1

2.1. A filiação como elemento integrante da dignidade humana

1)


O direito ao conhecimento da ascendência genética não se encontra expresso dentre os direitos fundamentais elencados no art. 5º da Constituição Federal de 1988, mas integra a própria identidade pessoal do indivíduo e, por isso, é um dos traços da dignidade humana.

A atual Carta Magna trouxe um novo conceito jurídico de família, encampando princípios que já eram adotados pela evolução social, pela doutrina e pela jurisprudência. Nesse contexto, outorga uma especial proteção à família, enfatizando os direitos fundamentais da criança e do adolescente2) que, na verdade, são os mesmos de todo e qualquer ser humano (art. 5º), o que demonstra a preocupação do constituinte em proteger a criança e a entidade familiar.

O § 7º do art. 226 da Constituição da República adota a liberdade para o planejamento familiar, mas impõe o respeito a dois princípios essenciais: a dignidade humana e a paternidade responsável. O direito à dignidade da pessoa humana está garantido no art. 1º, inciso III, da Carta Magna, inserido dentre os fundamentos norteadores da República Federativa do Brasil e, desse modo, a dignidade é colocada como o centro, o vértice normativo e axiológico de todo o sistema jurídico, tendo o constituinte reconhecido que o homem constitui a finalidade precípua e não apenas o meio da atividade estatal. A dignidade da pessoa humana, hoje garantida em praticamente todas as constituições como o sustentáculo do Estado democrático de direito, abrange várias categorias de direito, dentre as quais, o direito ao nome e ao estado de filiação determinado. Ana Paula de Barcellos lembra que “o princípio da dignidade da pessoa humana há de ser o vetor interpretativo geral, pelo qual o intérprete deverá orientar-se em seu ofício“3). E é exatamente sob esse prisma que deve ser considerado o direito à filiação determinada, uma vez que, como defende Cláudia Bellotti Moura e Vitor Hugo Oltramari, uma vida digna se inicia “por evidente, pela inserção (do indivíduo) no ambiente familiar”4). E Roberto de Ruggiero chega a afirmar que, em um sentido mais restrito, pode-se dizer que “ao filho de pais incógnitos falta um estado de família”.5)

Quanto à paternidade responsável, ela foi adotada como um princípio norteador e vincula-se ao método interpretativo the best interest of the child, como lembra Guilherme Calmon Nogueira da Gama6). Portanto, todo cidadão brasileiro tem o direito, constitucional, de ter um pai e uma mãe que por ele seja responsável, já que o termo paternidade é empregado em sentido amplo, abrangendo também a maternidade. Assim, se todos têm o direito de ter um(a) pai/mãe responsável, então, aqueles cuja paternidade (ou maternidade) não foi reconhecida espontaneamente, têm o direito de investigar sua ascendência genética.

O direito a uma paternidade/maternidade determinada advém da própria natureza humana e possui um caráter inviolável e universal, por integrar a identidade do indivíduo. É inquestionável que o conhecimento da ascendência verdadeira é um aspecto extremamente relevante da personalidade individual e integra a própria dignidade da pessoa, que tem direito à sua identidade pessoal e ao nome familiar. Adriano de Cupis salienta que

“a identidade constitui um bem por si mesma, independentemente do grau da posição social, da virtude ou dos defeitos do sujeito. A todo o sujeito deve reconhecer-se o interesse a que sua individualidade seja preservada”7).

Ademais, os arts. 7º e 8º da Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Resolução nº 44/25 da Assembleia Geral das Nações Unidas, que foi ratificada no Brasil em 24 de setembro de 1990, garantem à criança o direito a um nome e a preservação de sua identidade, impondo ao Estado o dever de assegurá-los à criança que estiver privada dos elementos constitutivos de sua identidade8). Portanto, sendo a paternidade/maternidade verdadeira um atributo da dignidade humana, o direito à identidade pessoal é um direito fundamental constitucionalmente garantido. O bem jurídico aqui tutelado é a descoberta da origem biológica do indivíduo, considerada um atributo inerente à personalidade humana; o direito ao nome de família, que aponta a sua ascendência genética (historicidade pessoal); e o próprio estado de filiação, que implica, inclusive, a concessão de determinados direitos de cunho patrimonial. Esse direito é reconhecido expressamente na Constituição Portuguesa de 1976 (art. 26, nº 01) e tem obtido uma especial atenção da doutrina e da jurisprudência alemãs, que usam a expressão: Recht des Kindes auf Kenntnis der eigenen Abstammung9).

No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90) dispõe que

“o reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercido contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça”10).

Por sua vez, a Lei nº 8.560/92 regulamentou a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento e revogou o art. 337 do Código Civil de 1916, que trazia o conceito de filhos legítimos, sendo reiterada pelo Código Civil de 2002, o qual repetiu ipsis litteris os termos do art. 227, § 6º, da Lei Maior, que já havia equiparado todos os filhos (art. 1.596), e também tornou imprescritível a contestação da paternidade (art. 1.601).


1)
Sílvio Rodrigues conceitua a filiação como “a relação de parentesco consangüíneo, em primeiro grau e em linha reta, que liga uma pessoa àquelas que a geraram”. RODRIGUES, Sílvio. Direito civil. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 1993. v. 6. p. 291.
2)
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
3)
BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 146.
4)
MOURA, Cláudia Bellotti; OLTRAMARI, Vitor Hugo. A quebra da coisa julgada na investigação de paternidade: uma questão de dignidade. In Revista Brasileira de Direito de Família. Ano VI, n. 27, dez/jan 2005, p. 83.
5)
RUGGIERO, Roberto de. Instituições de direito civil. Tradução de Paolo Capitanio. Atualizado por Paulo Roberto Benasse. Campinas: Bookseller, 1999. p. 487. v. 1.
6)
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Filiação e reprodução assistida: introdução ao tema sob a perspectiva civil-constitucional. In TEPEDINO, Gustavo (Coord). Problemas de Direito Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 522.
7)
CUPIS, Adriano de. Os direitos da personalidade. Tradução de Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004, p. 185.
8)
Art. 7º - 1. A criança é registrada imediatamente após o nascimento e tem desde o nascimento o direito a um nome, o direito a adquirir uma nacionalidade e, sempre que possível, o direito de conhecer os seus pais e de ser educada por eles. Art. 8º - 1. Os Estados Partes comprometem-se a respeitar o direito da criança e a preservar a sua identidade, incluindo a nacionalidade, o nome e relações familiares, nos termos da lei, sem ingerência ilegal. 2. No caso de uma criança ser ilegalmente privada de todos os elementos constitutivos da sua identidade ou de alguns deles, os Estados Partes devem assegurar-lhe assistência e proteção adequadas, de forma que a sua identidade seja restabelecida o mais rapidamente possível. Disponível em: <www6.senado.gov.br>. Acesso em: 17 jul. 2005.
9)
Direito da criança de conhecer a própria ascendência biológica (tradução nossa).
10)
Art. 27
cap9/9-2-1.txt · Última modificação: 2015/02/04 12:06 (edição externa)